A Audiência Pública convocada por iniciativa do ministro Ricardo Levandowski, relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186/2009, movida pelo Partido Democratas contra as cotas na Universidade de Brasília (UnB), já é uma vitória de todos os que, ao longo dos últimos anos, levantaram a bandeira das políticas públicas em favor da maioria da população – que é negra – e que ocupa os piores lugares na pirâmide social, segundo todos os indicadores disponíveis.
Será uma oportunidade extraordinária para que todos os que consideram fundamental este debate para o aprofundamento da democracia no país, façam chegar suas vozes à mais alta instância da Justiça – o Supremo Tribunal Federal; momento de ouro para que, por meio do contraditório que se estabelecerá, os ministros do STF formem ou consolidem opiniões e ou impressões, fundamentais para os votos que proferirão.
Entretanto, convém não cair em velhas tentações, que poderão transformar esse momento de ouro em um enorme passo atrás, com as conseqüências previsíveis, a mais importante delas, o rechaço, por parte do Supremo, da idéia generosa das ações afirmativas.
Messianismo inútil
A primeira tentação a evitar é o triunfalismo de setores que, sob um esquerdismo infantil, pretendem, sempre que se discute o tema, transformar as cotas para negros e indígenas em questão de princípios. De forma despolitizada e messiânica projetam a idéia de que os que não estão a favor, são automaticamente racistas, que devem ser esconjurados e transformados em alvos de nossas maldições e anátemas. Não lhes ocorre que, muitos dos que se colocam contra hoje, provavelmente o façam por falta de informações e que, neste caso, somos nós, também responsáveis.
Já alertamos, mais de uma vez, que esse clima de “nós” – os negros – x “eles” – o resto da sociedade é, além de falso, um equívoco profundo que só tem feito jogar a população contra bandeiras justas.
A racialização de um debate que tem profundas implicações no aprofundamento da democracia no país – que é de interesse de todo o povo brasileiro –, além de um equívoco, só tem servido a causa dos setores beneficiários dos privilégios, mantidos há séculos às custas da exclusão majoritariamente negra.
A política de cotas nunca foi princípio de coisa alguma; é apenas espécie do gênero Ações Afirmativas, estas, sim, conhecidas em todo o mundo e recomendadas pelas Convenções, Resoluções e Tratados Internacionais dos quais o Brasil é signatário – o mais recente deles, o de Durban.
Uma certa postura tão oportunista quanto messiânica, contudo, insiste em rezar uma cartilha que está francamente na contramão da história, inclusive porque, grosseiramente, falsifica conceitos e faz a apologia da vitimização, apenas para manter o séquito de seguidores bem intencionados, porém, ingênuos.
Esquerdismo infantil
A outra tentação sempre presente é a tendência de setores que pretendem ver na luta por ações afirmativas a ante-sala da revolução socialista e, neste misturar de alhos com bugalhos, de palavra de ordem em palavra de ordem, vão projetando a idéia de que a aprovação das cotas é um passo decisivo para a derrocada do último bastião do capitalismo no Brasil.
A postura não é nova no campo da velha esquerda, que – a exemplo da direita conservadora – sempre viu a questão racial como um tema lateral, sem importância, baseada numa interpretação tosca e anacrônica do marxismo, segundo a qual “o que importa é a questão de classe”.
Não por acaso, o espaço dedicado aos negros nos Partidos – da direita à esquerda - no Estado, na Academia, ainda é o espaço dos “puxadinhos”, o modelo perverso e cínico da subalternidade.
Esse marxismo de segunda mão fez com que a esquerda e a direita no Brasil dedicassem à questão racial o espaço do simbólico. O que é novo é a importação dos mesmos equívocos por uma espécie de sub-esquerda negra, tão hábil na verborragia quanto na inconseqüência.
Audiência, não palanque
E por último, convém evitar a tentação de transformar o STF em um palanque para o desgaste do Partido autor da ação – o Democratas – herdeiro das posições da Casa Grande, vocalizador do conservadorismo “dejavù”, porta-voz da velha elite patrimonialista e dos privilégios, e em processo de erosão política profunda. Transformar a audiência do STF em palanque político-eleitoral para aprofundar o desgaste do DEM e aliados – em especial, os tucanos, em fase de notória desorientação -, será - se ocorrer - um gol contra, um "tiro no pé".
A causa das Ações Afirmativas – das quais, repita-se, as cotas são apenas uma espécie – é grande e generosa. É o único caminho de um ajuste de contas com a herança maldita do escravismo, 122 anos após a Abolição feita para “inglês ver”; é o caminho para o reencontro do Brasil com a maioria do seu povo – alvo e vítima dos crimes contra a humanidade praticados em 350 anos de escravidão negra.
A causa das Ações Afirmativas não é contra, é a favor do Brasil. Não queremos tirar de ninguém, mas acrescentar. Não queremos privilégios, mas, precisamente, combatê-los para que o país acerte o passo, se torne solidário e com mais igualdade.
Eis a semente que precisamos – nas mais variadas e diferentes intervenções que serão feitas - plantar em plena Praça dos Três Poderes, no coração do Planalto Central, no plenário da mais alta Corte da República. Portanto, não é vencer que precisamos, mas convencer.
Os amantes dos holofotes, da visibilidade à qualquer custo na mídia, tão fácil quanto efêmera, os que acham que conquistaremos posições levando para o plenário o clima passional e os métodos de torcida organizada, deveriam lembrar disso ao desembarcar em Brasília.
FONTE: AFROPRESS
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