Valoriza herói, todo sangue derramado afrotupy!

sábado, outubro 26, 2013

‘4x0’ ou a vida










Em homenagem à varada, comi um picanha-burger, atração dos ‘food teams’, que é como chamam os bares nesse novo Maracanã


Quando o Flamengo marcou o terceiro gol, no início do segundo tempo, dei meia- volta e mirei a rampa.

Antes, em homenagem à varada que tínhamos levado, comi um picanha-burger com cheddar, uma das atrações dos food teams, que é como chamam os bares nesse novo Maracanã, que é tão nosso quanto insosso.

Perto da lancheria, um jovem botafoguense baixo e parrudo deu uma saraivada de socos no azulejo do banheiro. Minha mão sangraria fartamente. Desci a rampa num passo calmo e firme, certo de que os táxis mais espertos correriam para a saída Sul, de onde imigravam os primeiros fugitivos da goleada.

Foi fácil. Nem dez minutos de espera. No carro, respirei aliviado.
— Pra onde, campeão?
Não entendi se era sarcasmo, mas preferi manter minha crença no semelhante.
— Leblon.

Viera de Metrô e aspirara, na passarela da Estação Maracanã, um ar cívico, de satisfação e cidadania. A maioria dos cidadãos, no entanto, eram flamenguistas entoando cânticos que se dirigiam, de algum modo, a mim.

— E ninguém cala, esse chororôôô-ô...

Outros refrães aludiam à ausência da torcida, na base do “cadê você”? “Eu” estava lá, mas achei melhor calar e seguir rumo ao Sul — terra da torcida alvinegra —, único setor para o qual ainda restavam alguns ingressos. Ou melhor, muitos ingressos.

Vamos ser claros: toneladas.

Pensei positivo. Neste aspecto, é até uma vantagem ser o que sou. Sair do trabalho, pegar o metrô, comprar o tíquete rapidinho e subir a rampa cercado por alguns saltimbancos entusiasmados empunhando bumbos e bambus, em vez de uma multidão em júbilo. Oba!

Um correligionário me abordou.
— Isso aqui parece um cemitério.
— Está cedo. Ainda vem gente.
— O povo não vem.

Vi que era a oportunidade de lançar mão, mais uma vez, de minha teoria sobre como a condição alvinegra se assemelha à chamada “condição judaica”.

— Somos o povo da estrela, de cinco pontas em vez de seis, mas estrela mesmo assim. Predestinados, temos uma missão. Fomos perseguidos através da História. Somos supersticiosos e tememos a fúria dos céus. Nos tempos de grandes ameaças e fome, ficamos entocados em nome da autopreservação. E, frequentemente, somos profetas, loucos e barbudos.

Não sei se o sujeito entendeu, mas, com certeza, ficou um tempo atordoado. Ao cair em si, despediu-se com um tapinha no ombro, ansioso para escapar logo da encrenca.
— Sim, sim, claro, claro.

A encrenca, porém, já estava armada, escrita, inscrita, subscrita, reescrita ou como Deus e o diabo quiserem. No apito inicial, havia até uma quantidade digna de devotos da estrela, o barulho estava bom, os gritos de guerra soavam viris mesmo diante da massa rival — que lotava não apenas o seu setor, norte, mas também as cadeiras centrais, caríssimas, cobertas de vermelho e negro. Se eu tivesse um daqueles binóculos de ópera com um cabo de madrepérola, talvez surpreendesse ali um ou outro botafoguense perdido na numerosa burguesia da Gávea.

O resto foi o resto, e não vou entrar aqui em nenhum detalhe técnico nem tático, apenas voltar àquele momento em que, feito o terceiro gol, desci a rampa e peguei o táxi. O motorista, solícito ou cruel, tentou ligar o rádio.
— Não! Não faça isso! — implorei. — Vamos logo embora daqui, por favor.

O trajeto foi tranquilo como um voo espacial. Deserto, o Rebouças era um túnel do tempo: eu avançava rumo ao futuro, e toda a vida pregressa ficava no passado.

Que cidade boa, o Rio! Sem engarrafamento, sem flamenguistas e até sem botafoguenses. Claro que, em algum momento entre a Lagoa e a Conde de Bernadote, ouvi os urros de glória que, de todos os cantos da cidade, como araras, vinham anunciar o quarto gol.

Mas eu já estava em outra dimensão, na qual não há futebol, nem estrela, e “eles” foram engolidos por um buraco rubro-negro.
Estava em casa antes do fim do jogo. Tomei um pequeno copo de um shiraz madurão português metido a vinho de sobremesa late harvest mas que era um Porto com gosto de terra meio safado, perfeito para a doce tumba. E fui ao leito imerso na paz dos justos.

No dia seguinte, de manhã, um torpedo de minha mãe eclodiu no celular. Uma colega sua havia feito um bolo de fubá fabuloso, fofo e ainda quente. Eu tinha almoço marcado com o pai. A mãe propunha que eu passasse no seu trabalho para pegar o bolo.

Estava ocupado e não respondi. Quando cheguei à casa do pai, ela estava lá, aflita e ofendida, com o bolo. Viera do trabalho só para isso. A vida continua. Não há de faltar alimento nem amor.

Como o amor de Dona Nena por Sérgio França, amigo de uma multidão, editor, jornalista e alvinegro. Dona Nena, que se foi, era de uma alegria firme que cativava a galera desbundada desde os anos de faculdade.

Ela era da galera. Saudações.


FONTE: O GLOBO / ARNALDO BLOCH

domingo, outubro 13, 2013

Use sua desilusão







Acreditei que às vésperas de 2014 o Galeão seria um aeroporto moderno, e não um labirinto com canos e fios aparentes como o cenário de um filme de terror


O país do futuro
O Brasil é um país pródigo em desilusões. No entanto, nós, brasileiros, nunca somos vistos — nem por nós mesmos — como um povo desiludido. O que é uma pena. Temos a aprender com a desilusão.
Ilusão
Os Guns N’ Roses lançaram na década de 1990 dois discos de muito sucesso e inspiração chamados “Use your illusion I e II”. O título, “Use sua ilusão”, remete à ideia de que a ilusão — erro de percepção ou de entendimento; engano dos sentidos ou da mente; interpretação errônea — pode ser usada de forma criativa e construtiva, já que a percepção “errada” de um fato pode revelar novos e surpreendentes ângulos desse mesmo fato. Quando nos divertimos e nos emocionamos com filmes como “Toy story” ou com livros como “A metamorfose”, estamos usando nossa ilusão.
A semântica não mente
Paradoxalmente, a desilusão nunca é compreendida como o avesso da ilusão, ou seja, uma maneira correta de entendimento. Desilusão expressa sempre descrença e perda de esperança. E isso não é mera semântica. Resistimos a nos desiludir e, mesmo quando nos desiludimos, demoramos a admitir. Por que temos vergonha de aceitar que estamos desiludidos? Por que encaramos a desilusão como uma derrota?
Use sua desilusão
Em 1968 James Brown lançou uma música que fez muito sucesso no mundo todo. Sua estrofe principal, um grito de guerra que é também o refrão e o nome da canção, diz assim:
“Say it loud
I’m black and I’m proud”
(“Diga com um grito
Sou preto e me orgulho disso”, numa tradução livre e descuidada).
O funk exuberante do Rei do Soul exorta negros oprimidos à insubmissão e à valorização de seu orgulho próprio. Não à toa tornou-se uma espécie de hino informal do movimento Black Power. Inspirado por James Brown e Guns N’ Roses, orgulhoso de minha desilusão, lanço um outro grito de guerra, destinado aos desiludidos anônimos do Brasil: Use sua desilusão!
O caminho da ilusão leva ao palácio da desilusão
Faço uma breve lista de algumas de minhas recentes ilusões. Sou um daqueles ingênuos — se preferir chamar de otário fique à vontade — que acreditaram, entre outras coisas, que a realização da Copa do Mundo no Brasil e das Olimpíadas no Rio trariam investimentos para o país e para a cidade, e que eles seriam revertidos em melhorias nos transportes, aeroportos, hotéis e infraestrutura em geral.

1- Acreditei que às vésperas de 2014 o Galeão seria um aeroporto moderno, e não um labirinto com canos e fios aparentes como o cenário de um filme de terror de baixo orçamento.
2- Acreditei que em 2014 eu iria até São Paulo num trem-bala contemplando pela janela as comunidades pacificadas.
3- Acreditei que o Santos poderia até, quem sabe, empatar com o Barcelona.
4- Acreditei que o Supremo Tribunal Federal tinha mudado os paradigmas e dado uma lição de democracia ao condenar os mensaleiros e que no dia de hoje eles estariam lendo O GLOBO na cadeia e não comendo pizza na casa do… como é mesmo o nome dele?
5- Acreditei que os policiais das UPPs eram diferenciados e que o Amarildo não desapareceria.
6- Acreditei que as manifestações de junho tinham despertado o povo brasileiro e nos ejetado da letargia bovina em que chafurdamos há séculos.
7- Acreditei que os black blocs eram apenas um grupo de manifestantes mais exaltados e que, com a ajuda deles — que são muito mais eficientes em meter medo nos políticos do que os manifestantes pacíficos — caminharíamos juntos “hasta la victoria”.
8- Acreditei que depois da ditadura militar nunca mais eu veria policiais descendo o cacete em professores.
9- Acreditei, acreditei, acreditei.
Bananão
Ivan Lessa, o grande cronista desterrado, chamava o Brasil de Bananão. Embora seja possível denotar algum carinho na definição, o sarcasmo agudo do apelido é inegável. Bananão, além de lembrar que nunca deixamos realmente de ser uma república das bananas em escala continental, alude também à acepção de “banana” como o sujeito covarde e sem iniciativa, o popular bundão. Ivan Lessa foi um dos muitos brasileiros que optaram pelo autoexílio mesmo depois de restaurada a democracia no país. Num de seus textos, revela um dos motivos que o levaram a deixar o Brasil: “Achava que, de uma maneira ou de outra, estava embromando ou sendo embromado por alguém.”
Não é assim que todos nos sentimos por aqui?

FONTE:O GLOBO / TONY BELLOTTO

sábado, outubro 12, 2013

‘Não pode haver tribunal racial’, diz médico aprovado por cotas no Itamaraty












  • Uma entrevista com Mathias Abramovic, o candidato de pele branca e olhos verdes que se declarou negro ao se inscrever no concurso
  • Ex-aluno de colégio de elite e morador de bairro nobre, ele passou na primeira fase graças à reserva de vagas para afrodescendentes
  • ‘Bisavó por parte do meu pai é negra. Por parte da minha mãe, tenho avós pardos’, conta ele. ‘Sou uma concentração de minorias’

  • Escoltado pela cadela fox paulistinha Penélope, Mathias Abramovic tem nas mãos um exemplar de “Casa grande e senzala”, herdado de um avô, médico — a mesma profissão escolhida por ele, por seu pai e por seu irmão. A clássica obra de Gilberto Freyre, que acompanhava Mathias nesta entrevista, faz parte da bibliografia do concurso de admissão à carreira diplomática no Instituto Rio Branco, o Itamaraty, e aborda um tema que colocou o carioca na berlinda no último mês: a miscigenação como parte da formação da sociedade brasileira.

    Desde 2011, quando o Itamaraty instituiu cotas para afrodescendentes como benefício na primeira fase do concurso, Mathias opta pela autodeclaração. Naquele ano, o médico de olhos verdes e declarada ascendência negra e índia não apareceu na lista dos 30 cotistas, pois obteve uma nota alta o suficiente para figurar entre os 300 candidatos da listagem geral. Ele foi aprovado em três das quatro fases do concurso. Em 2012, foi reprovado na primeira fase. Este ano, figurou entre os dez afrodescendentes aprovados na primeira etapa, candidato a um salário de R$ 13.623,19. Na segunda etapa, Mathias obteve 59.89 pontos, onze décimos abaixo da nota de corte para a convocação, no dia 21, para a fase seguinte. Ele entrou com recurso para revisão da nota da prova escrita de língua portuguesa e aguarda o resultado.

    Ex-aluno do Colégio Santo Agostinho do Leblon, um dos mais tradicionais do Rio, e formado em Medicina pela Uerj em 2003, Mathias mora com a mãe no Jardim Botânico, na Zona Sul, enquanto divide sua rotina de estudos para o Itamaraty com dois plantões por semana como clínico geral em uma unidade emergencial pública. O médico, que prefere não dizer há quanto tempo estuda para ingressar no Itamaraty, é bolsista no curso preparatório Clio, benefício concedido àqueles que obtêm boa classificação nas provas internas da escola.

    A história sobre Mathias e as cotas do Itamaraty veio à tona em uma reportagem do site de Educação, do GLOBO, há um mês, e agora o médico fala sobre ela pela primeira vez. Ele responde às questões sobre a polêmica de forma diplomática, argumentando pausadamente e, de vez em quando, consultando anotações que levou a uma praça calma do Jardim Botânico, onde a entrevista foi concedida. Embora colegas de Mathias no curso afirmem que o estudante emitia opiniões contrárias às cotas raciais no Itamaraty, o médico afirma se enquadrar nessa política no aspecto legal e moral, justificando que há na árvore genealógica de sua família avós e bisavó negros. Segundo ele, critérios socioeconômicos seriam mais interessantes para promover a inclusão.

    O GLOBO: Você se formou em Medicina na Uerj, mas desistiu duas vezes da residência em oftalmologia. Por quê?
    Mathias Abramovic: A primeira vez foi involuntária, porque no ano em que passei (na residência), em 2004, o serviço militar era obrigatório, e não existia ainda a reserva de vagas (para médicos no programa de residência em que se classificaram). Em 2005, como já não era o meu ano obrigatório de servir, passei novamente (na residência), mas escolhi fazer o curso de paraquedista no Exército. Por isso, abri mão da minha residência pela segunda vez. Acabei gostando e servi ao Exército durante cinco anos e meio. Tinha muitas viagens, muitas missões, pude conhecer o resto do país.

    Por que você, na terceira geração de uma família de médicos, decidiu tentar o concurso para diplomata?
    Apesar de eu ter gostado muito de servir ao Exército, já sabia, desde que cheguei ali, que era temporário. Achei bem interessante, bastante aventura, mas sabia que não queria fazer carreira ali. Então, em 2007, comecei a procurar saber sobre o concurso, um pouco depois comecei a tentar as provas e estou insistindo desde então.

    O que o encantou nessa carreira? A estabilidade?
    Não foi uma questão nem de dinheiro, como é para alguns, nem de estabilidade. Eu provavelmente conseguiria mais dos dois na área médica. Foi uma questão de me identificar com a carreira. Sempre gostei de conhecer novos lugares e não apenas de passar por eles. Sempre tive uma certa facilidade para fazer amizades, para me relacionar, e por isso escolhi a carreira diplomática. Além disso, desde o segundo grau (atual ensino médio) eu tinha o interesse. Só que alguém me aconselhou a fazer Direito para isso, e, na época, a única coisa que eu sabia é que eu não queria fazer Direito. Então, tirei da mente o Itamaraty, mas, depois, quando vi que era aberto a qualquer carreira, resolvi me empenhar.

    Você se autodeclara afrodescendente desde que o Itamaraty instituiu essa política, em 2011?
    Eu não me lembro exatamente quando começou, mas desde o primeiro ano em que houve a opção de autodeclaração, eu me autodeclaro.

    Por que fez essa opção?
    Porque eu me identifico. Realmente é uma questão de criação. Desde bem pequeno, minha família, minha mãe, meu pai sempre frisaram nossa origem multiétnica. Minha mãe, especificamente, sempre falava que a gente tem negro, índio... Ela mesma é nordestina, vinda do interior do Piauí. Veio para cá quando criança com o resto da família. Meu pai também tem origens variadas. Uma bisavó por parte do meu pai é negra. Por parte da minha mãe, eu tenho avós pardos. Na família da minha mãe, são dez filhos, e há grande variedade de tipos, de ruivo de olho azul até mulata ou mulato, e todos filhos da mesma mãe e do mesmo pai. Isso só é possível para famílias que têm uma carga genética muito variada, muito misturada. Acho que é a comprovação de que a origem multiétnica é indiscutível. Meu sobrenome não deixa esconder que tem uma origem judaica também. Então, eu sou de repente uma concentração de minorias. Negro com ascendência negra, indígena, nordestina e judaica.

    Mas você se percebe dentro da sociedade como um afrodescendente? Alguma vez já foi discriminado ou teve menos oportunidades por causa de sua origem?
    Eu me identifico como afrodescendente pelos motivos que já expliquei. E, é claro, dependendo da situação em que você está, as pessoas podem te olhar de uma maneira não tão enaltecedora. A experiência como afrodescendente é algo muito pessoal, personalíssimo. Nenhuma pessoa, independentemente da tonalidade de pele, por mais clara que seja, por mais escura que seja, vai poder dizer de outra se teve uma experiência mais afrodescendente ou menos afrodescendente. E, por esse motivo, eu concordo com a política de cotas que seja baseada em autodeclaração. Não pode haver outra maneira de implementar essa política.

    E como você traduziria sua experiência afrodescendente?
    Eu tenho um orgulho muito grande de ter essa origem, incluindo a africana, misturada com todas as outras.

    As políticas afirmativas de cotas foram idealizadas pelo governo para pessoas com trajetórias de exclusão ou de dificuldades de inserção no mercado. Você acredita ser um alvo dessa política?
    Eu acredito que a política de ações afirmativas, de maneira geral, é uma conquista importante e tem que ser mantida. Ela já existia antes, voltada para os portadores de necessidades especiais. Então, não é algo novo em essência. A gente não pode levar ao pé da letra o artigo quinto da Constituição que fala que todos são iguais perante a lei. A própria Constituição já impõe diferenças, por exemplo, o auxílio-maternidade. Não tem como se tratar de maneira absolutamente igual todas as pessoas. A política afirmativa foi discutida no Congresso, então a sociedade, por seus representantes, decidiu que a política deveria ser implementada e que as regras seriam essas. E escolheram esse termo afrodescendência especificamente. Eu, pessoalmente, acho que deveria ser mais abrangente ou então voltada, principalmente, para o critério socioeconômico.

    Mais abrangente em que sentido?
    Indígenas… E hoje em dia é um pouco menos, mas existe ainda uma carga, uma dívida histórica, como se fala, com os nordestinos. Eles imigraram para o Sudeste e para o Sul e até hoje são alvo de discriminação. A gente ouve falar de nordestinos agredidos na rua, e não existe uma política voltada especificamente para eles. Acho que a política ainda é tímida nesse aspecto.

    O Brasil é um país miscigenado por natureza. Você acha que uma política que leva em conta a declaração dessas origens variadas é eficaz?
    Acho que ela ajuda à medida que facilita que uma população que normalmente tem uma menor oportunidade consiga uma chance maior de aprovação no concurso. Quanto a se ela poderia ser melhor ou não, é uma questão que requer muito estudo, muita pesquisa em cima disso, e eu realmente não tenho conhecimento para argumentar. Com certeza, se o pessoal do Itamaraty optou por essa, foi depois de algum estudo aprofundado sobre o assunto. Não tenho base de conhecimento para poder argumentar exatamente como ela poderia ser melhorada.

    Você citou que essa política é voltada para uma população que teve menos oportunidades. Você se sente enquadrado nesse objetivo da política de cotas?
    Claro que me sinto. Uma vez que ficou definido que a cota é para afrodescendentes, eu me encaixo. Se eu me encaixo, não é apenas por uma questão legal, de autodeclaração, mas é uma questão moral de eu ter essa origem na minha família e de a lei ter sido voltada para isso. Então eu me encaixo. Eu me considero alvo da política.

    Você imaginava a repercussão que teve sua opção pela autodeclaração?
    Não imaginava essa repercussão tão grande e confesso que fiquei perplexo. Não pelo assunto em si, mas pela reação das pessoas. Fiquei perplexo com o preconceito do qual fui alvo. Pessoas que não conheciam nada sobre mim, sobre as minhas origens, e, baseadas em apenas uma foto, não hesitaram um minuto em me julgar mais ou menos apto a me declarar afrodescendente. O mais importante é que é um preconceito que a política procura evitar, que é o preconceito visual, o preconceito de aparência. Julgar a pessoa baseado naquilo que você vê, se ela é mais ou menos digna de se declarar afrodescendente, se é mais ou menos digna de entrar no Itamaraty. Também fiquei perplexo com as propostas que as pessoas davam, segundo eles, para melhorar a seleção. Você pode usar qualquer nome bonito, eufemismo, mas para mim é instituir um tribunal racial. Qualquer comissão avaliadora de aptidão afrodescendente, no fim das contas, estará sempre instituindo um tribunal racial, e as experiências que a gente teve, que são vistas na História, foram na Alemanha nazista e no apartheid sul-africano. A gente não precisa ser muito estudioso de História para saber que o resultado não foi muito bom.

    As críticas em relação à sua escolha não foram apenas por você ter pele branca, mas também pelo fato de ser médico, pertencer a uma família de médicos, morar na Zona Sul do Rio. Questionam se você seria alguém que realmente precisaria de uma cota para entrar no Itamaraty.
    Esse questionamento tem que ser feito ao Itamaraty, para que eles mudem a política de cotas deles para uma política socioeconômica, e não racial. Inclusive existe um problema prático muito grande de você determinar se uma pessoa é afrodescendente ou não, ou então preta, parda, amarela ou branca. Até o IBGE, que usa uma nomenclatura mais objetiva, baseia-se no critério de autodeclaração. Qual seria a outra opção? Trazer um mostruário de tinta igual ao de carros? A partir do “pardo seis”, a pessoa é afrodescendente? Além de ser um absurdo em si, dá margem ao favorecimento. Além disso, você tem variações que são naturais. Se eu ficar um mês pegando sol, vou ficar bem moreno. Quando eu fui me alistar na Marinha, olharam para mim e não me perguntaram o que eu era. Botaram lá: cútis parda. É uma questão, é claro, que só acontece com quem tem uma genética muito variada. A questão é que eu não tenho podido ir à praia justamente porque estou me dedicando aos estudos. Um critério objetivo, por mais que seja um anseio das pessoas, se não for socioeconômico, corre o risco muito grande de cair num tribunal racial e institucionalizar uma comissão que vai atribuir à pessoa uma raça A, B, C ou D, cada uma com direitos e deveres diferentes. Acredito que daí não pode sair coisa boa, principalmente num Estado que se espera democrático de direito.

    Então você acredita que o critério socioeconômico é mais eficiente para uma política de inclusão?
    Se o Itamaraty julgar que é mais adequado o critério socioeconômico, então deve mudar sua política de ação afirmativa e incluir critérios socioeconômicos. O critério socioeconômico, em teoria, poderia também ser motivo de uso de má-fé. A pessoa tentar falar que ganha menos do que ganha, mas isso é mais difícil. Você pode pedir uma declaração de renda, alguma comprovação de ganho ou de falta de rendimento. De alguma maneira, isso já é usado, por exemplo, no Bolsa Família. Você tem que dar uma declaração de que você tem limitação de meios para poder fazer jus ao programa. Isso seria uma maneira mais objetiva de selecionar os candidatos.

    Você acha que a política racial é frágil?
    A política racial no Brasil é difícil de ser implementada por causa da miscigenação. Em todos os extratos sociais, você vai ter brancos e negros. Em proporções diferentes, com aparências diferentes. Mas mesmo as pessoas mais abastadas vão ter algum traço do negro. Eu até trouxe aqui o “Casa grande e senzala” justamente para mostrar uma citação do Gilberto Freyre. Ele fala: “Todo brasileiro, mesmo alvo de cabelo loiro, traz na alma e no corpo a sombra ou pelo menos a pinta do indígena e do negro”. É um livro que faz parte da bibliografia do concurso. E você vê que na década de 1930, quando foi lançado o livro, já se percebia isso, que é difícil separar as raças aqui no Brasil. De lá para cá, você teve uma tendência cada vez maior de não ter uma segregação, mas uma mistura. Então, só posso acreditar que tem ficado cada vez mais difícil você separar as raças. A meu ver, aqueles críticos da minha autodeclaração, principalmente aqueles que prestam o concurso também, mostram que, no mínimo, não têm estudado a bibliografia indicada.
    O conceito de raça dentro da Sociologia e da Ciência Política já foi superado, mas ainda é usado para políticas públicas porque existe discriminação...
    Na verdade, cientificamente não existe uma divisão da raça humana. Só que existe um ranço muito grande, uma resistência — e eu não ouso dizer de onde ela vem — mas até hoje as pessoas usam. Desigualdade racial, critérios raciais ou então cotas raciais. Se a gente for olhar por esse lado, essa divisão já é equivocada desde o início. Se você não tem uma divisão de raças, você também não pode esperar que haja uma política de raças. Agora, se tem uma divisão socioeconômica, você pode implementar uma política de autoafirmação socioeconômica. O Itamaraty, como subordinado à Presidência da República, tem a obrigação de seguir suas determinações. Se a Presidência julgou por bem uma política de autoafirmação racial, então não seria correto o Itamaraty não seguir. Agora, se existe um questionamento quanto a se seria melhor um critério socioeconômico ou racial, aí é uma discussão que deve ser mais ampla, que abranja a sociedade inteira, e aí sim repercutir no Executivo e no Itamaraty.

    Mas você, Mathias, acredita na política de cotas raciais?
    Eu acho que seria melhor uma política de cotas que não deixasse de lado o critério socioeconômico. Claro que isso (a condição socioeconômica baixa) é mais ceifador de oportunidades.

    Você não tem medo, caso entre no Itamaraty, de ser visto como alguém que teve uma atitude oportunista?
    Não tenho receio porque as pessoas que eu conheço, que já estudaram comigo e passaram, não são preconceituosas, têm uma bagagem muito grande sobre o assunto. Seriam pessoas que, se fizessem isso, estariam incorrendo numa incoerência, porque se eu tiver, por algum motivo, que um dia me envergonhar de ter me candidatado por meio de cotas, então qualquer pessoa, independentemente da cor da pele, por mais escura que seja, deverá também que se envergonhar. E acho que não é o caso. Acho que todo mundo reconhece que não tem por que uma pessoa de pele escura se envergonhar. E se essa pessoa não tem que se envergonhar, eu também não tenho. Sou tão afrodescendente quanto ela.

    O presidente do Supremo Tribunal Federal (STJ), Joaquim Barbosa, afirmou este ano que o Itamaraty é uma das instituições mais discriminatórias do Brasil, ao lembrar que foi eliminado na prova oral. Você acha que o perfil do diplomata brasileiro deveria mudar, buscando alterar esse funil destinado a uma elite?
    A declaração do Joaquim Barbosa fazia referência à época em que ele passou pela seleção, que era diferente da atual. Era uma seleção que incluía a prova e uma entrevista oral. E, claro, qualquer entrevista dá margem para o favorecimento, seja pela aparência, pelo apadrinhamento ou por qualquer critério. Ele faz referência a uma época que já passou. Há alguns anos o concurso é totalmente escrito, e as provas não são identificadas pelo nome. São feitas pelo Cespe, uma instituição de reputação ilibada, e, até onde eu sei, há plena confiança de que há isenção no concurso atual. Quanto ao fato de ser uma instituição elitista, é inegável. Só as pessoas que têm uma condição mais favorecida, que puderam ter uma graduação, além de dedicar quatro ou cinco anos de estudo para o concurso, conseguem passar. Mas isso não é particular do Itamaraty. Não é todo mundo que tem condições de sustentar o filho depois do segundo grau (ensino médio) por mais seis anos numa faculdade de Medicina. Outras carreiras também são muito elitistas, como a de juiz. E, assim, poderíamos enumerar várias outras que são elitistas no plano socioeconômico, porque não há como ser de outra maneira. Outra opção, supondo deselitizar os juízes, seria começar a colocar pessoas que só têm o segundo grau? Realmente não tem o menor cabimento. E por essa exigência de bagagem de estudo e experiência é que acaba havendo essa seleção, essa elitização. É fazer uma bolsa com critérios socioeconômicos (como o próprio Itamaraty já faz) para a pessoa se preparar para prestar o concurso: de juiz, da escola de Medicina ou qualquer outro. Acho que seria interessante o governo prover algum tipo de política, uma bolsa, para custear os estudos, seja em nível de graduação ou no preparatório para o vestibular, e depois nos concursos.

    Quando se fala em uma política de cotas raciais, ela não teria um efeito mais rápido, principalmente numa instituição como o Itamaraty, para que a miscigenação seja representada no nosso corpo diplomático lá fora?
    Um dos argumentos para a política de cotas raciais é que você tem um maior percentual de negros entre aquelas pessoas menos favorecidas do que entre as mais favorecidas. Se o Itamaraty ou qualquer outro órgão optar por uma política de cotas ou de auxílio de bolsas favorecendo pessoas com condição socioeconômica mais complicada, naturalmente você vai ter um favorecimento maior de negros e também das outras minorias que sofrem discriminação. Elas vão estar todas sendo favorecidas no mesmo grau, e você vai ter uma tendência a diminuir essa disparidade, essa elitização baseada tanto em critérios socioeconômicos como raciais ou de origem.

    O Itamaraty deveria fazer uma mudança nesse sentido?
    Como eu falei, tenho pouco conhecimento sobre o assunto. Acredito que há pessoas muito competentes dentro do Itamaraty, que devem ter estudado muito sobre o assunto, e eles devem ter o motivo deles para terem escolhido a política de cotas raciais. Não quer dizer que a política de cotas não precise ser revista ou melhorada.

    Se hoje a política de cotas para afrodescendentes é a única forma de colocar pessoas que têm menos oportunidades nessa peneira, você não se sente tirando uma vaga?
    O fato de eu ter me autodeclarado afrodescendente não me faz pensar que estou tirando vaga de outra pessoa que mereceria mais o lugar do que eu. Agora, o fato de eu ocupar uma vaga, seja como afrodescendente ou não, inevitavelmente tira a vaga de alguém. E, se foi alguém que não passou no concurso, provavelmente foi alguém que teve menos estudo do que eu. A gente também não pode cair no erro de, pensando em uma política de favorecimento, jogar na lata de lixo a meritocracia. Pessoas que estão estudando há mais tempo e tiveram melhores estudos merecem passar. A prova é feita para selecionar as pessoas que tiveram melhor desempenho. Então, normalmente, em qualquer prova séria, as pessoas que passaram tiveram melhores oportunidades de estudo, seja porque tiveram uma facilidade na criação, seja porque elas souberam usar a oportunidade delas. Se a gente quiser esquecer isso é melhor fazer sorteio. As pessoas se candidatam ao concurso, sorteia-se na loteria federal, e quem tirar o bilhete premiado entra no Itamaraty.

    Você está estudando há quanto tempo?
    Há um bom tempo. É que nem idade de mulher. Já chega uma hora em que fica constrangedor perguntar. Há mais tempo do que deveria.

    Se você não passar desta vez, pretende continuar tentando o Itamaraty e se autodeclarando afrodescendente?
    Eu, por enquanto, não tenho previsão de desistência.