Em homenagem à varada, comi um picanha-burger, atração dos ‘food teams’, que é como chamam os bares nesse novo Maracanã
Quando o Flamengo marcou o terceiro gol, no início do segundo tempo, dei meia- volta e mirei a rampa.
Antes, em homenagem à varada que tínhamos levado, comi um picanha-burger com cheddar, uma das atrações dos food teams, que é como chamam os bares nesse novo Maracanã, que é tão nosso quanto insosso.
Perto da lancheria, um jovem botafoguense baixo e parrudo deu uma saraivada de socos no azulejo do banheiro. Minha mão sangraria fartamente. Desci a rampa num passo calmo e firme, certo de que os táxis mais espertos correriam para a saída Sul, de onde imigravam os primeiros fugitivos da goleada.
Foi fácil. Nem dez minutos de espera. No carro, respirei aliviado.
— Pra onde, campeão?
Não entendi se era sarcasmo, mas preferi manter minha crença no semelhante.
— Leblon.
Viera de Metrô e aspirara, na passarela da Estação Maracanã, um ar cívico, de satisfação e cidadania. A maioria dos cidadãos, no entanto, eram flamenguistas entoando cânticos que se dirigiam, de algum modo, a mim.
— E ninguém cala, esse chororôôô-ô...
Outros refrães aludiam à ausência da torcida, na base do “cadê você”? “Eu” estava lá, mas achei melhor calar e seguir rumo ao Sul — terra da torcida alvinegra —, único setor para o qual ainda restavam alguns ingressos. Ou melhor, muitos ingressos.
Vamos ser claros: toneladas.
Pensei positivo. Neste aspecto, é até uma vantagem ser o que sou. Sair do trabalho, pegar o metrô, comprar o tíquete rapidinho e subir a rampa cercado por alguns saltimbancos entusiasmados empunhando bumbos e bambus, em vez de uma multidão em júbilo. Oba!
Um correligionário me abordou.
— Isso aqui parece um cemitério.
— Está cedo. Ainda vem gente.
— O povo não vem.
Vi que era a oportunidade de lançar mão, mais uma vez, de minha teoria sobre como a condição alvinegra se assemelha à chamada “condição judaica”.
— Somos o povo da estrela, de cinco pontas em vez de seis, mas estrela mesmo assim. Predestinados, temos uma missão. Fomos perseguidos através da História. Somos supersticiosos e tememos a fúria dos céus. Nos tempos de grandes ameaças e fome, ficamos entocados em nome da autopreservação. E, frequentemente, somos profetas, loucos e barbudos.
Não sei se o sujeito entendeu, mas, com certeza, ficou um tempo atordoado. Ao cair em si, despediu-se com um tapinha no ombro, ansioso para escapar logo da encrenca.
— Sim, sim, claro, claro.
A encrenca, porém, já estava armada, escrita, inscrita, subscrita, reescrita ou como Deus e o diabo quiserem. No apito inicial, havia até uma quantidade digna de devotos da estrela, o barulho estava bom, os gritos de guerra soavam viris mesmo diante da massa rival — que lotava não apenas o seu setor, norte, mas também as cadeiras centrais, caríssimas, cobertas de vermelho e negro. Se eu tivesse um daqueles binóculos de ópera com um cabo de madrepérola, talvez surpreendesse ali um ou outro botafoguense perdido na numerosa burguesia da Gávea.
O resto foi o resto, e não vou entrar aqui em nenhum detalhe técnico nem tático, apenas voltar àquele momento em que, feito o terceiro gol, desci a rampa e peguei o táxi. O motorista, solícito ou cruel, tentou ligar o rádio.
— Não! Não faça isso! — implorei. — Vamos logo embora daqui, por favor.
O trajeto foi tranquilo como um voo espacial. Deserto, o Rebouças era um túnel do tempo: eu avançava rumo ao futuro, e toda a vida pregressa ficava no passado.
Que cidade boa, o Rio! Sem engarrafamento, sem flamenguistas e até sem botafoguenses. Claro que, em algum momento entre a Lagoa e a Conde de Bernadote, ouvi os urros de glória que, de todos os cantos da cidade, como araras, vinham anunciar o quarto gol.
Mas eu já estava em outra dimensão, na qual não há futebol, nem estrela, e “eles” foram engolidos por um buraco rubro-negro.
Estava em casa antes do fim do jogo. Tomei um pequeno copo de um shiraz madurão português metido a vinho de sobremesa late harvest mas que era um Porto com gosto de terra meio safado, perfeito para a doce tumba. E fui ao leito imerso na paz dos justos.
No dia seguinte, de manhã, um torpedo de minha mãe eclodiu no celular. Uma colega sua havia feito um bolo de fubá fabuloso, fofo e ainda quente. Eu tinha almoço marcado com o pai. A mãe propunha que eu passasse no seu trabalho para pegar o bolo.
Estava ocupado e não respondi. Quando cheguei à casa do pai, ela estava lá, aflita e ofendida, com o bolo. Viera do trabalho só para isso. A vida continua. Não há de faltar alimento nem amor.
Como o amor de Dona Nena por Sérgio França, amigo de uma multidão, editor, jornalista e alvinegro. Dona Nena, que se foi, era de uma alegria firme que cativava a galera desbundada desde os anos de faculdade.
Ela era da galera. Saudações.
FONTE: O GLOBO / ARNALDO BLOCH
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