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quinta-feira, junho 16, 2011

Violência, impunidade e meio ambiente

Num momento em que se debate a aprovação do projeto do novo Código Florestal, a Revista de História entrevista a historiadora Regina Beatriz Guimarães Neto, professora do programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. Na entrevista, ela aproxima as relações entre política, meio ambiente e violência no campo, destacando a necessidade de uma mobilização civil para que a situação brutal que ocorre há decadas no norte do país seja revertida.


Revista de História: Qual a sua posição acerca do projeto do novo Código Florestal?

Regina Beatriz Guimarães Neto: O debate acerca das alterações do novo Código Florestal felizmente extrapolou os corredores do Congresso Nacional e se transformou numa questão que se coloca para amplos setores da sociedade civil. É como cidadã, professora universitária, historiadora e pesquisadora do CNPq, que me alinho a este debate. Há aí uma equivalência dessa participação com a noção de cidadania. Especialistas, entre eles, pesquisadores da Academia Brasileira de Ciência (ABC) e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), alertam para os riscos oferecidos às Áreas de Proteção Permanente (APP) e às Reservas Legais (RL), com graves implicações para a conservação da biodiversidade, a preservação dos recursos hídricos, erosão da terra, etc. Interessa-me particularmente discutir a dimensão política do documento, inseparável de todos os problemas ambientais apresentados, num momento em que os interesses dos ruralistas se sobrepõem aos interesses sociais, em que a preservação ambiental, patrimônio da nação, fica para segundo, terceiro planos... Reaparecem fantasmagoricamente cenas de uma “volta ao passado” colonial, com comerciantes gananciosos fazendo de uma rica terra recém descoberta um amplo posto de venda... Dizimação indígena, exploração da madeira e logo depois utilização da mão-de-obra escrava pelos fazendeiros para suprir os mercados europeus de açúcar... A infernal monocultura exportadora.

Hoje presenciamos o agronegócio que devasta as nossas florestas e cerrados e ainda chega, até mesmo, a utilizar trabalho análogo a de escravo. Mas, como antes, falta a estes “fazendeiros” o próprio “sentido de cidadania”, para usar a expressão do historiador José Murilo de Carvalho, em seu livro a Cidadania no Brasil (editado pela Civilização Brasileira). E este mesmo autor nos alerta, “em suas mãos [fazendeiros], a justiça, que é a principal garantia dos direitos civis, tornava-se [torna-se] simples instrumento do poder pessoal.” São muito oportunas as suas palavras quando diz que “o poder do governo terminava [termina] na porteira das grandes fazendas”. O passado e o presente juntam suas pontas num movimento incandescente. Na minha e creio que na de muitas pessoas o novo Código Florestal traz tudo isso inscrito na tabuleta colada à capa do documento.

RH: Enquanto se discutia o código em Brasília, no Norte do país, ambientalistas eram assassinados por pessoas possivelmente ligadas à ruralistas locais. A senhora acha que, de alguma forma, a sanção deste projeto pode aumentar ainda mais a violência histórica que acontece principalmente no Pará?

RBGN: O assassinato dos líderes extrativistas José Claudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva, que ocorreu no Pará, em fim de maio, não pode ser visto apenas como mais um caso de violência que se soma à extensa lista de assassinatos no campo nestes últimos anos no Brasil. É simbólico que exatamente no dia da votação no Congresso Nacional tenha havido o crime. Não interessa discutir – discussão vazia – se os crimes têm uma ligação direta ou indireta com a aprovação ou debate do novo Código Florestal, deve-se vê-los como uma violação dos direitos do estado democrático.

Pode-se traduzir estes crimes como uma espécie de declaração de uma parcela significativa de ruralistas comportando-se como se estivessem “acima da lei”, acima da Constituição Brasileira, que garante aos cidadãos os direitos civis, políticos e sociais. Vejo o crime como uma declaração de poder desse segmento de proprietários de terra, latifundiários, madeireiros, negociantes diversos envolvidos com a grande agricultura de exportação; segmentos que acionam um poder simbólico, ao se organizarem em consórcios criminosos para contratação de pistoleiros, que emite claros sinais de que o Estado não tem poder para governá-los.

É a quase certeza da impunidade. Situação que conta com a articulação de uma oligarquia política e seus representantes no congresso nacional que, tradicionalmente, tem o domínio da terra, dos homens e das mulheres trabalhadoras. Mas esquecem que estes homens e mulheres trabalhadoras combatem, mesmo que essa luta signifique uma sentença de morte decretada pelos seus algozes, os grandes e poderosos donos da terra no Brasil.No entanto, a resistência à impunidade se organiza em diferentes instâncias: nos sindicatos, nas associações, nas pastorais sociais, no meio universitário, entre intelectuais e artistas, além de algumas ONGs, entre outros diferentes segmentos da sociedade civil.

Por outro lado, quando o Código prevê a transferência de competências do Conselho Nacional do Meio Ambiente para os governos federal, estaduais e municipais, com o poder de editar decretos e atos normativos sem controle da sociedade, evidencia a gravidade política e social, dispara o estado de alerta, o sinal de grande perigo. As oligarquias políticas fortificadas nos estados terão ainda maior poder decisório. É o estado de direito legislando o arbítrio, a truculência, o modus operandi de uma parcela significativa de grandes proprietários. No caso do estado do Pará, campeão de violência no campo, campeão de desmatamentos, historicamente atrelado às oligarquias políticas do estado (assim como os demais estados brasileiros...), para legislar sobre política ambiental é necessário partir de outras bases, políticas e sociais, amparados pela participação ampla de outros atores sociais. A aprovação do código pode ser sinônimo de uma grande vitória do crime e da impunidade, que terá seus desmandos acobertados por lei. A questão ambiental não é apenas técnica, que envolve o debate ambiental, preservação, biodiversidade, estes temas são essencialmente políticos. E como podem ser analisadas as ações deste estado para coibir as violações dos direitos civis?

RH: Quanto a esta violência no Norte, a senhora vê alguma melhora desde os tempos da ditadura de 1964? Quais foram as medidas legais adotadas pelo governo ao longo dos anos que contribuíram para uma melhora nas relações nestas áreas de tensão (se houve melhora, no caso)?

RBGN: Esta é uma questão muito complexa para dizer em apenas algumas palavras ou numa curta resposta. Desde os tempos da ditadura, do regime civil-militar, instaurado em 1964, que indígenas, camponeses da agricultura familiar, ribeirinhos, extrativistas, entre vários outros segmentos sociais continuam sem direito pleno de cidadania, sobretudo, direitos civis. Contudo, a democracia avançou e garantiu maior liberdade, liberdade de imprensa, em que denúncias e importantes debates são postos em circulação. Não se pode negar que houve por parte dos governos democráticos um combate ao desmatamento no Brasil e na Amazônia, em particular. Nosperíodos governados por Lula (e esperamos que isso ocorra com o governo de Dilma), nos seus dois mandatos, os índices de desmatamento diminuíram ano a ano. Na Amazônia, onde o governo concentrou seus esforços, de 2004 a 2010, foram criadas cerca de 261 mil km² de unidades de conservação e homologadas aproximadamente 180 mil km² de terras indígenas; foram cancelados, nos cadastros do Incra, posses ilegítimas e inscritos novos procedimentos para os registros de posse.

É louvável as operações do Ibama integradas com a Polícia Federal e polícias ambientais dos estados que agiram decididamente na apreensão de madeiras, no desmonte de máfias da madeira e na especulação de terras públicas, prendendo funcionários públicos dos governos federal e estaduais e diversas pessoas envolvidas nos negócios ilegais. Não poderia deixar, ainda, de destacar a importância, o reconhecimento e o combate legal e político ao trabalho análogo a de escravo, empreendido pelos poderes Judiciário e Executivo, sobretudo, por meio das ações desencadeadas pelos magistrados da Justiça Federal e da Justiça do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho (MPT) e do Ministério do Trabalho e Emprego ( através dos seus auditores).

Ganha cada vez mais notoriedade e legitimidade a prática da fiscalização e autuação daqueles que infringem a lei (estipulada pelo código penal), destacando-se o papel dos auditores fiscais nas perigosas ações de fiscalizar in lócus as denúncias, contando ainda com a participação imprescindível do Ministério Público do Trabalho e da Polícia Federal. Em uma sociedade desigual como a nossa, os avanços democráticos foram significativos, mas a questão agrária (que nos governos militares, registrávamos como a “militarização da questão agrária”, segundo escreveu o sociólogo da USP, José de Souza Martins) se constitui ainda um ponto central da violenta disputa política pela terra, que mobiliza as questões mais importantes da questão ambiental.

RH: Quais seriam as raízes desses embates e por que eles continuam ocorrendo ao longo das décadas?

RBGN: As raízes se encontram na história do Brasil, por demais conhecidas, que consagra o domínio dos latifundiários, da monocultura exportadora, do trabalho escravocrata, do analfabetismo, da ignorância política e cultural dos proprietários rurais e seus representantes políticos.“Fazendeiros no poder”. A questão agrária no Brasil sempre foi o ponto crucial dos conflitos sociais e da violência no campo. Mas vamos falar das condições políticas do presente, apesar das ressonâncias com o passado, “um passado que teima em não passar”, na trilha do pensamento de um filósofo alemão tão caro aos historiadores, Walter Benjamin. Nas condições políticas, em que o Congresso Nacional opera com uma “bancada ruralista”, identificada com o atraso, a barbárie e a violência, e outros políticos que não estão comprometidos com as garantias de direitos, atrelados às barganhas partidárias, locais, vazias de projetos políticos. A possibilidade da vitória no Congresso Nacional do crescimento econômico a qualquer custo, a quantas vidas de trabalhadores e trabalhadoras rurais se façam necessárias, projeta diante de todos nós a dura pergunta: afinal o estado tem ou não poder para controlar e cercear os desmandos da “reprodução ilimitada do capital”.

Considero que sem garantias dos direitos civis e da cidadania não há como obter consenso. Por outro lado, quando sindicalistas e demais lideranças que atuam na defesa dos trabalhadores rurais, dos camponeses, das comunidades quilombolas, das comunidades ribeirinhas, dos extrativistas, ambientalistas, dos indígenas, entre outras categorias, são assassinados (e mesmo aqueles que em suas atividades diárias não atuam em nenhuma frente de liderança) significa que a sociedade civil tem que se manifestar politicamente de todas as maneiras, pressionar o Congresso Nacional a debater com a sociedade. Não podemos naturalizar estes atos bárbaros, e jamais pensar que isso ocorre “longe de nós”. Em todos os estados brasileiros, e não apenas nos estados da Amazônia Legal, há crimes contra lideranças, religiosos, advogados e tantos outros que lutam pela defesa dos direitos civis, políticos e sociais. De acordo com dados dos Conflitos e da Violência no Campo,divulgados pela CPT (Comissão Pastoral da Terra), até 2010, foram assassinadas no Brasil 1580 pessoas, em 1186 ocorrências. É a lei do poder dos “fazendeiros”, crime contra a Constituição Brasileira. Quando homens como José Claudio Ribeiro da Silva e mulheres como Maria do Espírito Santo da Silva (tantas vezes citados pelos relatórios da CPT, como ameaçados de morte) têm sido silenciados no seu direito político de oferecer denúncia contra a entrada de madeireiros nas áreas extrativistas e debater o desmatamento em vários fóruns nacionais e internacionais; quando são destituídos de seus direitos civis de garantia à vida; quando são retirados deles – pelo crime – os direitos sociais de reivindicar educação pela defesa do ambiente, educação cidadã, não se pode pensar que haja consenso. No entanto, a descrença não deve nos assolar. Torna-se importante reivindicarmos o reconhecimento e titulação dos territórios das populações e comunidades na Amazônia e em outras partes do Brasil, denunciar e exigir limites à ação das madeireiras e empresas do agronegócio em sua truculência e ganância voraz sobre homens e mulheres e bens da natureza.

Estampar – “Brasil mostre a sua cara” – o quanto “ruralistas” (políticos do Congresso e outras categorias não atreladas a partidos) são incivilizados e estão na contramão da construção da cidadania no Brasil. Agir significa também pressionar o sistema judiciário, a impunidade reforça o cinismo dos ruralistas e seus representantes maiores e menores.

RH: Quais são os principais personagens destas disputas?

RBGN: É uma disputa histórica, é uma disputa pela terra e pelos bens da natureza, relacionada às “raízes” de que falamos há pouco. As principais personagens encontram-se vivas no relatório de Aldo Rebelo (PCdoB-SP) que saiu vencedor, com 410 votos a favor, 63 contra e uma abstenção. Relatório que significou uma vitória para a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e uma derrota para as entidades ambientalistas, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e Academia Brasileira de Ciências (ABC), o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), entre outras instituições. Além de considerarmos a dura realidade para as representaçõesindígenas, camponeses da agricultura familiar, ribeirinhos, extrativistas, trabalhadores sem terra, grupos militantes dos movimentos sociais em luta pelos direitos civis, políticos e sociais, ONGs, pastorais sociais, de intelectuais e artistas, universitários, e tantas pessoas que entendem e empreendem de diversas maneiras a causa da cidadania no Brasil.

Seguramente não haverá aumento da fiscalização ao desmatamento no Brasil, principalmente na Amazônia com a aprovação do novo Código Florestal. É notório o desmatamento para atividades econômicas como pecuária, soja, cana entre outras. Só para ter uma idéia, segundo o Boletim nº 5, de dezembro 2005, do Imazom [Pecuária e Desafios para a Conservação Ambiental na Amazônia www.imazom.org.br] entre 1990 e 2003, o rebanho bovino da Amazônia Legal teve um crescimento de 140%, passando de 26,6 milhões para 64 milhões de cabeças. Provavelmente tem aumentado nos últimos anos. Casado ao desmatamento está a prática de trabalho análogo a de escravo. O município de São Felix do Xingu, por exemplo, tem mais de 1.000.000 de cabeças de boi. É o município que tem taxa elevada de desmatamento e prática de trabalho análogo a de escravo. Em 2009, no Pará, 38 das 44 fazendas que constavam na “lista suja” do MTE criavam bois. Se antes da aprovação do código florestal havia desmatamento em áreas de extrativistas, áreas de proteção ambiental e terras indígenas como tem apontado os relatórios do Imazom, com uma lei flexível, o desmatamento poderá aumentar, assim como a violência no campo.

RH: Gostaria de acrescentar alguma coisa?

RBGN: Gostaria de enfatizar que há um fato novo, para não naturalizar a tese de que “isto sempre ocorreu” na história política brasileira, que concentra o passado e as expectativas futuras da nação. Torna-se fundamental analisar historicamente as novas condições políticas e sociais do Brasil, os grandes interesses do capital internacional e osembates políticos que se encontram no centro das atenções da vida nacional, e, sobretudo, o seu significado para a construção da cidadania. Não podemos deixar de avaliar que estamos diante de um Congresso bem aparelhado, que mobiliza uma miríade de informações para produzir um “fato verdadeiro”, ou seja, a positividade do novo Código Florestal; um relator experiente e preparado, de um partido de esquerda, o PCdoB-SP, com grande conhecimento dos processos legislativos (cinco mandatos consecutivos); relatórios gozando de autoridade de várias instituições, apontando resultados discutíveis, mas úteis aos interesses ruralistas. A maquinaria política se esmera a convencer o Brasil, em pleno século XXI, a seguir na contramão do estímulo à vida no planeta Terra.

FONTE: revista de historia

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