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quinta-feira, abril 26, 2012

A formação dos EUA e sua presença no mundo

Nos dias 9, 10, 16 e 17 de março, o professor Reginaldo Moraes, do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os EUA (INCT/Ineu), esteve no Rio para ministrar um curso sobre o desenvolvimento dos Estados Unidos, desde a formação da nação até sua constituição como império. Após as aulas ele conversou rapidamente com o BoletimNPC sobre alguns temas abordados no curso, como a diferença da atuação do Governo norte-americano em relação às imposições neoliberais feitas aos demais países, e as limitações da “democracia” dos EUA, começando, por exemplo, com uma eleição presidencial bastante restrita. Ele também falou sobre a direita norte-americana, armada e “muito mais organizada” que a brasileira; sobre a indústria cultural norte-americana, na exportação de valores individualistas; e sobre a importância da guerra para a economia do país. Por fim, falou sobre as consequências do modelo de desenvolvimento, gerando cada vez mais desigualdade, miséria e desempregos. 

BoletimNPC: Durante o curso você acabou desconstruindo alguns mitos propagados pelos Estados Unidos para o mundo, como o liberalismo e o Estado Mínimo.  Ao falar sobre o século 19 e o momento de formação da nação norte-americana, por exemplo, foi ressaltada a importância da forte presença do Estado na doação de terras para a construção de ferrovias e escolas. Outra questão foi a extinção da competição no momento em que os empresários viram que ela era prejudicial, e começaram as concentrações. Ainda hoje, no entanto, o discurso é da ausência do Estado e da importância da competição. Existe essa contradição entre o discurso e as ações?
Reginaldo Moraes: Existe sim. Por exemplo, no século 19 o governo federal americano doava terras para expandir o país, ocupar o território. Construíam-se ferrovias, caminhos para as diligências de colonos ocupantes e... o Exército federal vinha atrás para que? Para empurrar os índios, enquanto os colonos iam se instalando. Milhões morreram. Não se sabe exatamente, mas calcula-se que de 6 a 11 milhões de índios foram exterminados. Era a mão do Estado expandindo para o Oeste. Aí vem a questão da competição. No século 19, as ferrovias começam a se destruir por causa da competição. Desde então viram que essa história da competição era boa apenas no discurso, pois um projeto destruía o outro. Só havia um jeito: racionalizar, fundir, cartelizar. E aí foram cartelizadas as ferrovias. Isso aconteceu com o aço também.  Foi feita uma combinação de cada empresa pegar um pedaço do mercado, especializar neste ou naquele ramo específico, e assim passa a se controlar os preços, administrar o mercado. Houve, então, cartelização das ferrovias, do aço, do petróleo... Esse foi o caminho.

 
BoletimNPC - Mas até hoje esse é o discurso do neoliberalismo...
Sim, a chamada lei da competição é importante para legitimar a ideia de que todo mundo pode subir na vida se for esforçado. Serve para justificar a desigualdade da sociedade. Se você não sobe é porque é vagabundo ou não é criativo: falta engenho ou falta empenho. Quem consegue é mais inteligente, mais esforçado... O defeito, portanto, passa a ser seu, individualmente. Tem gente que diz isso com convicção, mas na prática não é bem isso o que acontece.
 
BoletimNPC - Então o liberalismo é cínico?
Depende do que entendemos por cinismo. As pessoas criam ideias para convencer os outros e para convencer a si mesmo. É necessário criar mecanismos para justificar os seus atos, dar a eles uma aparência de racionalidade e justiça, imparcialidade, não necessariamente para mentir para os outros apenas. Essa “mentira” é uma convicção necessária para se viver. Depois da 2ª Guerra Mundial os Estados Unidos pregaram muito a história de que o mundo era uma comunidade de nações livres e soberanas. A ONU foi criada para ser esse fórum de todas as nações, na qual todas poderiam participar. Mas o que acontece é que, apesar de todos terem um voto, são os EUA que mandam na verdade. Eles controlam esses polos de poder, nomeiam os dirigentes, ignoram os votos se forem contrários a seus interesses. A ONU pode condenar Israel e criticar a guerra no Iraque que nada acontece.

BoletimNPC - Podemos dizer que os Estados Unidos são um Estado realista com um discurso liberal?
Sim. O discurso só convém quando é para o outro. Tem um coreano, Ha-Joon Chang, que escreveu um livro chamado Chutando a escada, para tratar do que os países desenvolvidos fazem com os mais atrasados. E o que é isso? Contam a sua própria história de um jeito nada verdadeiro. Tudo que orientam e mandam para que os outros não façam é exatamente o que fizeram. Ou seja: usaram uma escada para subir e, quando chegaram, chutaram e impediram os outros de fazer o mesmo. A história dos vencedores é essa: recomendar sempre aos retardatários que não façam o que fizeram. Contar a história deles de um jeito diferente, que parece outra.
 

BoletimNPC - Um outro mito propagado pelos Estados Unidos é o da democracia, inclusive usado para justificar invasões em outros países... 
Pois é. Apesar de defenderem isso, nos Estados Unidos, por exemplo, existe uma grande quantidade de gente que não tem direito de voto. Ele é bastante restrito. Em alguns Estados, a pessoa que foi presa alguma vez, por qualquer coisa, pode ser proibida de votar na eleição presidencial. Isso aconteceu na eleição do Al Gore contra o Bush. Em dois Estados, Texas e Flórida, os governadores usaram esse recurso para impedir o voto de milhares de pessoas, os quais eles sabiam que iriam para o Al Gore, pois a maioria era de negros – já que o sistema penitenciário norte-americano, assim como o daqui, é bem seletivo... Tem uma preferencial especial por pobres, pretos, los latinos...

BoletimNPC - Essa foi a fraude? 
Uma delas, mais indireta. A outra eram as urnas contestadas, aquelas que tinham que ser recontadas e não foram. A questão é que as eleições são bem pouco representativas nos EUA por conta de várias restrições. Historicamente é assim. Por exemplo: até a década de 1970, muitos Estados do Sul diziam que o negro, para se inscrever eleitoralmente, tinha que ir a um juiz, fazer um juramente, recitar um artigo da Constituição e explicá-lo. Daí o juiz podia ou não liberar o seu voto. Outra questão: a eleição para presidente é feita em um dia comum de trabalho. Não é sábado, domingo ou feriado.  Então o trabalhador tem que sacrificar esse dia e ir votar. Muitos trabalhadores não votam, porque perdem um dia de trabalho  e, em alguns casos, fica difícil os patrões liberarem. Em alguns Estados você só pode votar na eleição pra presidente se você votou na primária, que é a eleição para escolher os candidatos do partido. Quando Obama foi candidato um de seus desafios iniciais foi convencer os negros a votarem nas primárias. Foi assim que ele conseguiu virar a eleição.


BoletimNPC - Tudo isso em um país que grita a democracia... 
A eleição lá é coisa de maluco. Não é a mesma em cada cidade. Tem lugares que o eleitor precisa responder a umas 30 perguntas. Além de eleger o xerife, decide se a ponte X vai ser construída etc. É uma série de questões sobre as quais tem que se manifestar, e uma delas é sobre o presidente. A cédula eleitoral em alguns condados chega a ter três, quatro páginas. Isso varia praticamente de cidade para cidade, e isso também restringe muito. A votação também é diferente, em muitos lugares é manual. Quer dizer: dificilmente um cara vai faltar um dia de trabalho e preencher uma cédula com 35 perguntas. E ainda tem a questão do analfabetismo funcional, que não é uma coisa brasileira, não. Lá nos Estados Unidos também tem muito. Os cientistas políticos conservadores dos EUA até acham boa essa apatia, justificam isso, dizendo que “uma democracia estável depende de uma grande alienação das massas”, de baixa militância. Ou seja: essa eleição tem bem pouco de democrática. É mais um acerto entre dois partidos. Metade dos eleitores já é excluída. E o restante é chamado a escolher entre laranja pera e laranja baiana. Mas tem que ser laranja...


BoletimNPC - É possível ganhar sem receber a maioria de votos, não é? 
Sim, pois a contagem não é proporcional. Quem ganhar a maioria leva todos os votos do Estado. Tem vários lugares que em que isso acontece. Se você tiver 51% dos votos você leva 100% dos delegados. A regra do colégio eleitoral é essa. Outra dificuldade é o filtro para ser candidato de um dos dois partidos. O Obama só conseguiu sair pelos democratas porque teve que fazer muitos acordos. Foram tantos que, quando eleito, teve que entregar grande parte dos cargos para a direita, o grupo mais tradicional e conservador do partido democrata.


BoletimNPC - E como está a disputa presidencial dos EUA atualmente? 
A rigor, nessa eleição, os conservadores estão contra o Obama, apesar de ele não ser nenhum revolucionário, muito pelo contrário. Ele tentou fazer uma reforma na saúde, mas era moderadíssima. O Nixon tinha apresentado um programa de reforma muito mais agressivo e mais avançado que este. Também a ajuda do Obama aos bancos e às empresas falidas, as concessões que ele fez para contornar a crise, foram mais generosas, em alguns casos, do que o governo Reagan!  E a política externa não apresentou nada de novo. Então por que os conservadores estão contra o Obama? Acredito que não seja pelas políticas específicas, mas sim pelo simbolismo, pelo significado que a eleição dele adquiriu para alguns setores das massas excluídas. É como se os conservadores dissessem: “Não queremos um presidente que represente a esperança de um projeto de serviço público, saúde pública e educação pública. O país tem que ser mais branco, com serviços pagos por quem pode”. Guardadas as proporções, é o cenário atual do Brasil, do Governo Lula e agora da Dilma. As políticas sociais do Governo Federal são poucas, mas fazem uma grande diferença para quem está na pior. O próprio Bolsa Família, que foi muito criticado pela classe média, corresponde ao valor que essa mesma classe recebe mensalmente com a dedução no Imposto de Renda da educação privada de seus filhos. Se você fizer a conta, dá quase um bolsa família para as classes médias, essa é a lei, faz 50 anos. Ou seja: quem fala mal ganha a mesma transferência, há muito tempo. Quando falam em bolsa família, os conservadores a chamam de esmola. Quando falam de subsídio para empresas ou descontos para a classe média não usam esse termo. É “incentivo”.


BoletimNPC - A direita brasileira pode ser comparada à norte-americana?
A direita dos Estados Unidos é muito mais forte, mais organizada. E armada. Estou falando sério, não é um jogo de palavras. A ultra-direita nos Estados Unidos é armada e luta pelo “direito às armas” como um direito constitucional. A ideologia de direita é sustentada e defendida por muitos grupos organizados, praticamente milícias armadas contra o governo. Para se ter uma ideia, o estado de Nova York tem mais de mil grupos armados desse gênero. E são grupos ligados à ala conservadora. A Associação Nacional de Rifles é a principal doadora do partido republicano. A maior parte do dinheiro da campanha presidencial norte-americana vem daí. A premissa é a de que todo mundo tem direito de ter arma. E a direita se manifesta em cada detalhe das políticas públicas. Por exemplo, é grande o movimento que quer destruir as escolas públicas e multiplicar os investimentos na escola privada.


BoletimNPC - E quais as perspectivas para essas eleições? 
O Obama vai ganhar e pode ser até que no segundo mandato ele tenha mais condições de fazer pequenas mudanças, porque no primeiro ele estava completamente preso. Já entrou como uma equipe econômica de direita. A mobilização de base ou de massas nos Estados Unidos é muito pequena, a alternativa é pouca. Mesmo quanto aos movimentos sociais e sindicais, a mobilização é muito pequena, muito frágil. Esse grupos ficaram muito comprometidos.



BoletimNPC - E esses movimentos de ocupação, como o Occuppy Wall Street? 
É uma coisa pequena, né? São jovens que vão expor seu descontentamento, mas não estão organizados para desafios maiores, que confrontem o sistema. Alguns intelectuais chegam a aparecer para contribuir com o movimento, mas não é uma coisa significativa, que se possa dizer que está mexendo com a sociedade norte-americana. Em certos aspectos, a sociedade norte-americana é mais retrógrada politicamente que a brasileira, tanto a elite quanto a base. Como eu disse, a direita deles, que é mais conservadora, está mais organizada e chega a modelar a nossa. 


BoletimNPC - Como? 
Quem são os consultores do PSDB e do DEM? São americanos! Na eleição do Serra eles chegaram a trazer um consultor de lá, mas que foi embora logo, parece que veio de olho na grana e percebeu logo que entrara em canoa furada. Entrando no campo da religião, a direita evangélica americana é modelo para a brasileira. Inclusive o mapa religioso é bem interessante. O número de católicos é muito grande, e a Igreja Católica americana é, em geral, muito conservadora. É claro que há grupos de esquerda no catolicismo. A Universidade de Notre Drame, por exemplo, é tradicionalmente alinhada com a esquerda católica. Bem, há também as igrejas protestantes tradicionais, como os metodistas, batistas, mórmons, presbiterianos... esses também são muito fortes. Aí tem os mais “novos”, os pentecostais e neopentecostais, que pregam uma ligação pessoal e forte com a palavra de Deus, uma relação menos racional e mais ritualística, mais emocional. O pentecostalismo cresceu muito em varias regiões dos Estados Unidos, inclusive nas áreas católicas dos imigrantes latinos, que são regiões muito conservadoras, que valorizam a igreja e a família. Muitos desses católicos latinos estão se rendendo às igrejas protestantes pentecostais. E há um investimento dos evangélicos nesses grupos, através de recursos midiáticos, por exemplo.

Essa direita evangélica pentecostal foi a que mais se antecipou no uso de meios de comunicação avançados, como rádio e TV. É o chamado “Televangelismo”. Eles perceberam há muito tempo o poder da mídia. Um líder é o Billy Graham,guru do Bush filho, aquele que teria salvo o ex-presidente do alcoolismo, segundo o próprio Bush. Pioneiro da televisão evangélica,chegou a ter um programa aqui no Brasil, na TV Bandeirantes, já na década de 1970. Os mais velhos devem lembrar...

BoletimNPC - Essa questão da mídia, da indústria cultural, é muito importante para pensarmos a sociedade dos Estados Unidos...
Não apenas para pensarmos os Estados Unidos, mas para pensarmos o mundo inteiro, já que, além da igreja, eles exportaram a cultura e, com isso, sua visão de mundo. Hollywood é um exemplo clássico disso, e as séries de TV também. Os valores mais difundidos pelos filmes norte-americanos são os relacionados à tradição familiar. Um clássico é o “Father knows Best”, aqui no Brasil traduzido como “Papai sabe tudo”. Esta foi uma série de TV feita para isso, para difundir os valores da família norte-americana: uma família competitiva, que quer ganhar dinheiro. Outro exemplo interessante é a Seleções do Reader’s Digest. Uma revista que existe no mundo inteiro, criada por protestantes para difundir a crença e os valores da família e do individualismo. A Mary Junqueira, professora da USP, escreveu um livro muito interessante sobre esse assunto. Chama-se Ao sul do Rio Grande. Outra pessoa que trata dessa questão da cultura é o Antonio Pedro Tota, historiador que escreveu O Imperialismo sedutor. Vale a pena estudar isso, porque muitos dos nossos hábitos tem raiz nisso – o que comemos e bebemos, ouvimos, cantamos, dançamos, vestimos, fumamos...


BoletimNPC - O cinema foi o grande carro-chefe nesse momento?
Sim, o cinema e a TV. Como se difundiu o chiclete, o cigarro? Tudo pelos filmes. Todo galã de cinema fumava, então era chique ter um cigarro. Depois, as mulheres charmosas e sedutoras também fumavam. Como foi que você aprendeu a história de que os índios eram os bandidos e os brancos eram os mocinhos? Nos filmes também. Hoje os malvados são os imigrantes, principalmente os mexicanos, latinos, “chicanos” em geral. Ao exportar essas ideias, os filmes foram difundindo e naturalizando conceitos. Até hoje a TV brasileira é praticamente americana. Muitos de nossos programas de TV são cópias de modelo norte-americano. As novelas também seguem o modelo americano, embora alguns até achem que melhoramos esse modelo e por isso passamos até a exportar.



BoletimNPC - As produções culturais acabam justificando as guerras promovidas pelos EUA. Durante o curso você falou sobre a importância da guerra para a economia norte-americana, principalmente durante a 2ª Guerra Mundial...
Essa dependência vem desde antes da 2ª Guerra Mundial. No final do século 19 os norte-americanos se expandiram para o mundo, conquistando parte do México pelas armas. O argumento utilizado foi inclusive muito parecido com o do Hitler quando ocupou a Tchecoslováquia: autoridades americanas diziam que as minorias norte-americanas estavam sendo oprimidos nesses territórios. Depois foram indo para outros lugares: Cuba, Filipinas, Havaí, São Salvador, Nicarágua, Panamá... Quando entra no século 20 há uma divisão na própria sociedade: uma parte muito intervencionista, e outra isolacionista.  Os EUA, por exemplo, demoraram a entrar oficialmente na guerra. Isso só aconteceu em 1917, mas desde 1914 eles eram os grandes fornecedores de material bélico e de alimentos para França e Inglaterra. Tornaram-se credores dos países europeus.

Quando os alemães foram condenados, pagavam a indenização para a França e a Inglaterra, os quais, por sua vez, pagavam sua dívida para os EUA, país interessado em espoliar a Alemanha. Outra estória instrutiva dessa época é a das patentes. Eles aproveitaram a 1ª Guerra Mundial para roubar as patentes da indústria química alemã. Então, grande parte da indústria norte-americana vive, desde então, para produzir para a guerra. Durante a 2ª Guerra Mundial produzia arma, roupa, farda, botas, munição, comida, tudo para levar para os combates. Foi assim que os Estados Unidos desenvolveram sua tecnologia, e por isso precisam de tanta guerra para poder sustentar o tipo de crescimento que escolheram. Para se ter uma ideia, o Eisenhower, herói da 2ª Guerra Mundial, quando terminou o mandato fez um famoso discurso de despedida, no qual dizia que era necessário cuidado para que os EUA não fossem abocanhados pelo complexo militar industrial. Em seguida vêm todas aquelas guerras, que já conhecemos: a Guerra da Coreia, do Vietnã, a campanha do Reagan para a Guerra nas Estrelas, as Guerras do Iraque, do Kwait, depois a Guerra da Bósnia, do Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria e por aí vai. Porque a economia norte-americana depende disso. E possui uma força tal que influencia o próprio governo; existe um lobby enorme dos setores que defendem e precisam das guerras. São muitos os senadores e deputados eleitos pela indústria da guerra.



BoletimNPC - E a guerra tem pautado inclusive as pesquisas em universidades...
A maior parte dos centros de pesquisa científica e tecnológica norte-americanos foi criada pela Marinha, Exército e Aeronáutica. O resto é praticamente um subproduto disso, um efeito colateral. Ou seja, a indústria civil é efeito colateral dos estudos para a guerra realizados em laboratórios financiados pelos militares.  

BoletimNPC - Pelos gráficos apresentados nas últimas aulas, você mostra uma queda das linhas de emprego, níveis de vida, produção etc. Quer dizer: mostrou como o modelo de desenvolvimento adotado pelos EUA vem gerando cada vez mais consequências negativas para a população, como o aumento da desigualdade e da pobreza. Você chegou a usar a expressão “cidades mortas”, do Mike Davis. Pode falar um pouco sobre essa mudança nos últimos anos?
Na segunda parte do curso procurei comparar dois momentos diferentes do “modelo”, no pós-guerra. O primeiro, de 1945 a 1970, mais ou menos, é a chamada Era Dourada do capitalismo americano. Crescimento, inovação, redução relativa da desigualdade, isto é, até os trabalhadores participaram desse crescimento, melhorando sua renda e sua participação nos serviços sociais – como educação, por exemplo. A segunda fase, pós 1970,  tem uma cara inteiramente diferente. Não apenas cai a produtividade da economia, a produção fica estagnada, pioram as contas etc. Também piora a distribuição de renda – aumentam a desigualdade e a pobreza.  Esta segunda fase teve consequências dramáticas para os trabalhadores e, particularmente, para algumas regiões do pais. Um exemplo é o velho cinturão industrial do nordeste do país, como NY , Massachusets e Filadelfia, ou o meio-oeste, Ilinois, Michigan etc). O caso de Flint, que é abordado no filme Roger e eu, do Michael Moore, não é único[1]. Flint se transformou numa espécie de cidade morta ou moribunda, decadente. Falei do livro do Mike Davis porque ele relata alguns dos aspectos dramáticos dessa crise. E mostra como algumas cidades tiveram seu crescimento associado a mais desigualdade, a mais guetos de pobreza e violência, de degradação dos serviços e das condições de vida, do meio ambiente. 

BoletimNPC - Ainda pensando em relação às consequências de um modelo histórico de desenvolvimento, pautado na concentração de renda, especulação, bolhas financeiras etc, quais seriam, na sua opinião, as expectativas em relação ao futuro desse país?
A segunda fase que mencionei não é filha da crise da fase anterior, simplesmente. De certo modo, é resultado do “sucesso” daquele modelo. Aquela época “dourada” retratada no começo do filme Roger e Eu era baseada num desenvolvimento econômico predatório, que dependia de exploração violenta do terceiro mundo (para obter minérios e combustível barato, por exemplo) e, de certo modo, distribuía migalhas da expansão imperialista para acomodar a classe trabalhadora e seus sindicatos.

Em 1972, Barrington Moore fez um comentário ainda atual:
“Para aqueles que se beneficiam com o sistema, a guerra e o desperdício têm a grande vantagem de suavizar os piores golpes no ciclo econômico e não transformar a ordem social, forçando uma redistribuição de privilégios e renda. Por outro lado, os benefícios do sistema estão suficientemente espalhados para tornar o capitalismo americano popular: de Oscar Lange, Baran toma emprestada a expressão ‘imperialismo do povo’ para caracterizar o sistema como um todo.”
A expressão de Paul Baran é dura, mas realista. Ela mostra como a expansão imperialista soube seduzir a classe trabalhadora americana e seus sindicatos. Como a despolitização dos sindicatos e suas lideranças – que em sua maioria apoiaram agressões imperialistas como a guerra do Vietnã e muitas outras – desarmou-os para reagir quando os efeitos chegassem neles.

BoletimNPC - Parece que o país está caminhando para o caos. O que podemos esperar? É possível surgir alternativas? 
Não sei se o país está caminhando para o caos. É preciso ter mais cuidado decretando o caos, a derrocada americana, o fim do capitalismo. O Estado e a economia americana estão se embrenhando em dificuldades cada vez maiores, sim. Mas, ao mesmo tempo, seu andar de cima continua mandando e ganhando, inclusive no governo Obama, que conseguiu “emparedar” e imobilizar. E continuam com força suficiente para mandar a conta para outros pagarem, inclusive, claro, os países pobres. O que podemos esperar?  Não sei, mas boa coisa não é. A política “doméstica” de Obama foi tímida, para dizer o mínimo. A política externa, igualmente conservadora, recuando em quase tudo o que prometera. Como eu disse antes, pode ser que um segundo mandato lhe dê mais autonomia. Daí, quem sabe, possa fazer algumas políticas mais inovadoras e, mais ainda, que estimulem a mobilização de forças sociais progressistas que até aqui estão ausentes ou fragmentadas, pouco entusiasmadas com a política. Uma outra possibilidade é que tais mudanças venham a ser impulsionadas pelas dificuldades e dores da sociedade norte-americana, ou de seu choque, cada vez mais claro, com o resto do mundo, não apenas com os competidores (União Europeia, China), mas com os países do Terceiro Mundo que ousarem resistir.



[1] Reginaldo Moraes participou, no dia 29/3, da sessão inaugural do ciclo de debates sobre a destruição neoliberal no mundo. A atividade está sendo organizada pelo NPC e pelo Sindicato dos Engenheiros do Rio (SENGE). O filme debatido neste dia foi Roger e eu, do documentarista Michael Moore, que mostra o impacto do fechamento da General Motors na vida de várias famílias em Flint.

FONTE: BoletimNPC / Por Claudia Santiago, Sheila Jacob e Vito Giannotti

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