A discussão sobre os últimos acontecimentos com a realização do Enem engloba uma série de interesses particulares que quase ninguém assume claramente. O exame foi criado, inicialmente, para aferir a qualidade do ensino médio e, de forma indireta, do ensino fundamental. Só quem não é educador não percebe que ambos estão intimamente relacionados. Depois, não por acaso, já com a concessão de direito de votação aos jovens de 16 anos, o exame foi galgado ao status de conceder uma vaga nas universidades que o utilizassem como forma de ingresso (com nítidas pressões políticas). Dessa forma, passou a ser um sucesso de audiência, chegando atualmente, aos 4 milhões de inscritos. Tudo sob o guarda-chuva das chamadas políticas compensatórias ou políticas de inclusão social típicas dos últimos governos, tanto do PSDB quanto do seu disfarçado homônimo, o PT.
Um dia passaremos para a análise curricular de um indivíduo ao longo dos seus anos de estudos, e ela, somente ela, lhe dará ou não o direito ao ingresso nas universidades
Neste contexto, três vertentes precisam ser analisadas não sob a paixão partidária, mas sim sob a ótica de uma boa prática educacional, ou seja, do ponto de vista de uma política educacional. A pergunta que se deve fazer é: o Enem é o substituto ideal para os antigos processos de ingressos às universidades ou é apenas uma disfarçada forma de engordar as estatísticas educacionais para melhorar a imagem do governo? A primeira questão diz respeito ao que é necessário para conceder aos jovens direitos e condições igualitárias ao ingresso no ensino superior, sendo uma responsabilidade do Estado. Neste campo, creio, salvo melhor juízo, que o investimento sério, não demagógico, nas escolas públicas, fazendo-as boas tanto para quem poderia estudar em escolas particulares ou não, é a melhor escolha.
Não sou partidário daqueles que abominam as escolas particulares. Elas cumprem a sua função num país democrático, mas não entendo o abandono das escolas públicas pelo governo. A lógica capitalista não pode interferir na educação, ou seja, não é soberano acabar com a qualidade das escolas públicas para vender a escola particular. Mas o que aconteceu nos últimos 30 anos foi exatamente isso: aviltaram o magistério, com salários que tornam os professores motivo de deboche para alunos em sala de aula, aviltaram a qualidade da escola pública sistematicamente com claro planejamento, perverso por sinal, e nas barbas da população, que nada fez.
Concedida a primazia da qualidade de ensino à escola particular, fica pronto o cenário para a instalação, agora, de políticas pseudo-educacionais, como o Enem, o PROUNI e o SISU. E a lógica, que me parece perversa, é facilitar o ingresso nas universidades brasileiras aos jovens que, coitados, tiveram que estudar em escolas públicas (embora milhares não o façam, quem está no magistério sabe disso, quem está fora, faz proselitismo político). Ou seja, os governos estaduais, municipais e federais apresentam, em quase todas as escolas, péssima qualidade de ensino.
Explicando de outra forma, a lógica é a seguinte: como não invisto na educação pública de qualidade, faz-se uma política compensatória. Ora, já passou da hora de inverter essa lógica, investindo na educação para não ser preciso enterrar a meritocracia, valorizando os jovens que realmente estudam dia após dia, para realizar seus sonhos. Então, nos remetemos à uma segunda questão: a quem interesse a existência de políticas compensatórias, atalhos educacionais, em detrimento de um real investimento na Educação Pública?
Ouço diversas opiniões de que o Enem está "acabando" com os interesses dos cursinhos vestibulares. Acho uma tolice, como se já não existissem cursinhos de preparação para o Enem. A questão é maior. O interesse de ONGs pouco sérias e de grupos políticos partidários, interessadíssimos nos votos da juventude, perderam de vez a vergonha de impor goela à baixo qualquer coisa que faça as suas popularidades aumentarem. Não acho que os antigos vestibulares sejam a melhor forma de ingresso. Um dia passaremos para a análise curricular de um indivíduo ao longo dos seus anos de estudos, e ela, somente ela, lhe dará ou não o direito ao ingresso nas universidades. Mais isso, logicamente, demanda o óbvio: a convivência competitiva sadia entre a escola pública e a particular, o aperfeiçoamento das avaliações, evitando-se apadrinhamentos, e principalmente, com a profissão do magistério sendo considerada como a mais importante para o país (ao lado dos médicos), com salários equivalentes a esta importância.
Mas mesmo com todos os defeitos, os vestibulares ainda são mais dignos que o famigerado Enem, pois eles não facilitam a vida daqueles jovens que optaram, por livre arbítrio, não estudar como deveriam. Sem falar que, malgrado toda carga tensional dos vestibulares, eles conferem liberdade para as universidades, descentralizam o processo, respeitando a autonomia universitária de decidir, sem pressão de partidos e sem a pressão do Estado, a sua vida administrativa.
Enfim, se o vestibular não é, ainda, a melhor forma de ingresso, pelo menos, ele se decide por mérito e ponto final. Pois no final das contas, criar mecanismos para ocultar o descaso com a escola pública nos últimos trinta anos é um desserviço à sociedade. Não sou radical a ponto de afirmar que o Enem não presta para nada, mas posso afirmar, sem medo de errar, que ele é apenas uma descarada maneira do governo se livrar de sua responsabilidade de investir em educação, propiciando escola gratuita de qualidade para todos e, consequentemente, igualdade de oportunidades, sem paternalismos ou facilitações de qualquer espécie. O lamentável disso tudo é que as partes envolvidas, com interesses bem particulares, abandonam a discussão da coisa pública. A educação precisa ser pensada longe das urnas e perto da ética. Educação é prioridade e garante a liberdade para que a população não dê ouvidos àqueles que desrespeitam a coisa pública, mesmo travestidos de salvadores da pátria.
FONTE: O GLOBO / Artigo do leitor Waldir Pinto de Araujo Filho
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