Criado para ser o grande termômetro da educação brasileira, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) foi inchado até perder seu foco principal. Atualmente servindo também como critério de avaliação para algumas faculdades e universidades, avaliação para as bolsas de estudo do Pró-Uni e certificação do EJA (Programa de Educação de Jovens e Adultos), o ENEM acaba servindo para tudo, porém, serve mal.
Mais que isso: por conta do seu tamanho, o Ministério da Educação não está dando conta da infra-estrutura necessária para um exame do tamanho do ENEM.
Ao menos é nisso que acredita Maria Luiza Abaurre, ex-formuladora de questões do vestibular da Unicamp e ex-assessora do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), orgão do MEC que atualmente responde pela prova do ENEM. Abaurre participou de duas grandes revoluções dos vestibulares do Brasil.
Primeiro, em 1986, Abaurre era corretora de provas da Unicamp quando esta mudou o foco do vestibular, priorizando a redação e a capacidade de raciocínio dos candidatos em detrimento somente do conhecimento adquirido – fórmula radicalizada pelo Enem anos mais tarde. Segundo, quando viu o próprio Exame Nacional do Ensino Médio tomar corpo e se transformar também em vestibular. “Uma prova que serve para avaliar a média do Ensino não pode ser a mesma que seleciona os melhores alunos. São objetivos diferentes. Esse modelo não tem como funcionar bem”, diz.
Veja os principais trechos da entrevista de Maria Luiza Abaurre ao site de CartaCapital.
CartaCapital: O Enem hoje atinge os objetivos para os quais foi criado?
Maria Luiza Abaurre: Acho que o hoje Enem tem muitos objetivos que são díspares. Isso dificulta que a prova garante todos eles. Primeiro: prova de seleção de vestibular é uma prova que tem que eliminar candidatos, porque são poucas vagas e muitos inscritos. Ao mesmo tempo, é uma prova que seleciona para o Pro-Uni, ou seja, uma outra função diferente, de pessoas que concorrem a bolsas, não a vagas. E o Enem também tornou-se uma prova de certificação para o EJA (Educação de Jovens e Adultos), que é certamente é uma prova que não poderia ter caráter de seleção. Isso faz com que fique muito difícil pro elaborador pra conseguir um perfil do que de fato precisa ser medido pelas questões que ele prepara.
CC: Ou seja, quando há muitos focos, na realidade não há nenhum. Seria isso?
MLA: Exatamente isso. Não dá pra atender a todos ao mesmo tempo.
CC: As universidades que usam esse modelo do Enem como seleção podem sair prejudicadas?
MLA: A seleção pode ser pouco eficiente. Não se trata de um prejuízo real, que a universidade vai escolher mal os alunos que concorrem à vaga. Apenas não faz uma escolha suficiente, pois cria faixas de desempenho em que há muitas pessoas concentradas, e a universidade precisa buscar outros mecanismos que apoiem essa seleção que digam “olha, é o João que passou, não é a Maria”.
CC: Qual modelo você entende ser mais adequado para selecionar alunos para as universidades?
MLA: Não vejo problema em se pensar em uma prova nacional. Agora, se isso for decidido, é preciso que se declare que ela seja a única finalidade dela. Seria preciso também garantir que o grau de dificuldade das questões seja compatível com o processo de seleção, que é um pouco diferente de uma prova que pretende medir habilidade de alunos com formações muito diferentes, que vieram de escolas diferentes. Portanto, fazer uma questão de física, ainda que seja para medir a habilidade, para um aluno que teve ao longo da sua vida escolar uma boa formação é uma coisa. Fazer uma questão de física para um aluno cuja formação você sabe que não é tão boa, você tem que dosar a mão na hora de formular a questão. Por isso que esse pacotão que virou o Enem torna-se uma coisa pouco eficiente.
CC: E quanto a avaliação do Ensino Médio, ela também é comprometida com essa estratégia do Enem?
MLA: Sim, está, porque, numa prova de seleção, ainda que você tenha como base de elaboração desta prova, uma matriz de habilidades, é inevitável que o elaborador acabe focando mais sua atenção nos objetos de estudo, que são os conteúdos específicos. No momento de elaborar a questão – e isso fica visível no momento de analisar item a item da prova – você vê que o elaborador está pensando muito mais num conteúdo específico que no saber fazer, que é a habilidade. Se a ideia é medir que tipo de construção cognitiva que se alcança com um aluno que cursa todos os anos da educação básica, até o ensino médio, o foco está mais nas habilidades. É o saber fazer que interessa mais, e não o conteúdo em si. Agora, se vou selecionar, eu tenho que aumentar a dificuldade, então vou focalizar outro objeto, que também é referência, que é o objeto de estudos, que é ter isso com o guia.
CC: Que alternativas existem pra se avaliar o ensino no país?
MLA: Podemos ter um exame nacional de orientação geral focada em habilidades, como já existem em alguns vestibulares. O problema é que o Enem é grande demais, é um processo que dificulta imensamente o controle de qualidade dessa prova. Para você ter um banco de questões com um número suficiente de itens dentro dos quais a prova possa ser montada aleatoriamente, você precisa de um grande número de pessoas para elaborar estes itens. Tudo é feito numa escala muito grande. E qual o processo de análise disso? Na edição 2010, houve um caderno cuja montagem está comprometida e ninguém viu isso. Portanto, não se revisou adequadamente. E de repente o MEC diz “quem se sentir prejudicado, deverá fazer outra prova”. Isso não é razoável num contexto de vestibular, pois não posso selecionar, num contexto de vestibular, dois alunos que concorrem a uma mesma vaga por provas com questões diferentes. Não há justiça nessa seleção. Quando se pensa nessa questão, o MEC está se empenhando a dar ao ENEM uma dimensão muito grande, mas está evidente que eles não estão dando conta da infra-estrutura necessária. São problemas atrás de problemas.
FONTE: CARTA CAPITAL
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