Projeto da Fiocruz em Moçambique é o mais longo e que mais consumiu recursos brasileiros na África
O mais emblemático projeto de cooperação brasileiro na África completa dez anos em novembro e vive hoje seu momento mais decisivo. É uma fábrica pública de medicamentos contra a Aids, instalada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Moçambique. Em agosto, ela finalmente realizou seu objetivo: produziu pela primeira vez um remédio genérico que faz parte do coquetel anti-HIV, a lamivudina. Em outubro, repetiu a dose com um segundo componente do coquetel, a nevirapina. Toda a operação foi feita por moçambicanos, com a supervisão da Fiocruz.
A Sociedade Moçambicana de Medicamentos (SMM), o nome oficial da fábrica, é a única unidade pública de produção de medicamentos contra a Aids na África, o continente mais afetado pelo vírus e onde o acesso ao tratamento é escasso. No caso de Moçambique, a SMM é também a primeira indústria farmacêutica. Todos os medicamentos consumidos no país são importados.
Agora, os medicamentos precisam obter um selo de qualidade do órgão regulador em Moçambique. Enquanto isso, a fábrica deve começar a embalar um antibiótico e um medicamentos contra o HIV produzidos pela Fiocruz no Brasil e doados para que as vendas já possam ser iniciadas. No próximo ano, a fábrica deve tentar obter certificação da Organização Mundial da Saúde. A organização Médicos Sem Fronteira (MSF), que atua na área do HIV no país, diz que "ainda é cedo para tecer comentários profundos sobre como a fábrica irá beneficiar as pessoas que vivem com HIV em Moçambique".
Nenhum outro projeto de cooperação do Brasil na África está em curso há tanto tempo ou consumiu um volume tão alto de recursos. A Fiocruz estima que ele terá custado ao País cerca de US$ 20 milhões. "Demorou muito? Eu olho para trás e digo: ninguém tem noção do quanto a gente trabalhou", afirma a coordenadora do projeto, Lícia de Oliveira, da Fiocruz.
"Nem Moçambique nem o Brasil sabíamos onde estávamos nos metendo", diz ela. O País não tinha experiência na realização de um projeto de cooperação de tão grande porte no exterior. Além disso, a operação de uma indústria farmacêutica é um processo de alta complexidade. Toda a tecnologia de produção foi transferida para Moçambique, que vai operar a fábrica sem a intervenção do Brasil. A expectativa é que ao final de cinco anos a venda dos remédios custeie as operações e que a produção atenda a todo o mercado da parte sul da África.
"A fábrica é a primeira aqui em Moçambique, até em África. Temos muita expectativa e muita responsabilidade. Depois de vermos essa fábrica cheia, com movimento, nós vamos ficar já descansados, felizes da vida. Porque realmente é difícil, é muito difícil para chegar nessa fase", diz Feniosse Macuacua, operador da fábrica que atuou nas primeiras produções de medicamentos.
Aids. A incidência de HIV em Moçambique é uma das maiores do mundo - 13% das mulheres e 9% dos homens, totalizando 2,4 milhões de pessoas infectadas. No Brasil, calcula-se que 630 mil pessoas são soropositivas, menos de 1% da população.
É a comunidade internacional que custeia 100% do coquetel anti-Aids, a maioria deles genéricos comprados na Índia a preço baixo. "Até hoje me surpreendo com as dificuldades que esse país enfrenta quanto ao financiamento para a área da saúde, que depende de doadores internacionais", diz a enfermeira brasileira Kelly Cavalete, que trabalha no MSF no país.
A fábrica prevê a transferência de tecnologia e conhecimento para a produção de 21 medicamentos. Além dos usados para tratar a infecção por HIV, há remédios para atenção básica – entre julho e setembro, foram produzidos os primeiros, contra hipertensão. A capacidade instalada é de 400 milhões de comprimidos por ano.
A estrutura da fábrica é pequena, mas de ponta. Em um corredor vedado do exterior, com luz artificial, ar condicionado e protegido por portas de segurança codificadas, ficam as salas de produção e embalagem. Os equipamentos são iguais aos usados pela Fiocruz no Brasil. Segundo a fundação, é que há de melhor no mundo. São duas linhas de produção: uma específica para componentes do coquetel anti-HIV e outra para medicamentos em geral, além de uma unidade de soros.
História. Assinado em novembro de 2003 durante a primeira viagem do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva à África, o projeto da fábrica se tornou um símbolo das dificuldades do Brasil em realizar projetos de cooperação de grande porte. A primeira delas foi a concorrência com a China. Apenas cinco meses depois da assinatura, um grupo chinês começou a negociar com o governo moçambicano a construção de uma fábrica de antirretrovirais privada. Prevaleceu o projeto do Brasil.
De 2003 a 2007, as características do projeto foram discutidas e foi realizado um estudo de viabilidade. Depois, haviam dúvidas sobre como financiar a fábrica. Em 2008, o governo brasileiro encaminhou para o Congresso um projeto de lei para a doação de R$ 13,6 milhões. Um ano e dois meses depois, ele foi aprovado. "Nunca na minha vida eu tinha lidado tanto com advogados e procuradores. Virei figurinha fácil da Câmara dos deputados", lembra a doutora Lícia.
O parecer favorável do senador Eduardo Azeredo ao projeto de lei evidencia a importância da cooperação para o avanço brasileiro no continente. "A eventualidade de apropriação do projeto da fábrica de antirretrovirais por terceiros países acarretaria a perda de valioso instrumento de cooperação e de afirmação dos interesses brasileiros na África", escreveu Azeredo. A Vale, que já estava operando em Moçambique, doou outros UR$ 4,5 milhões. De 2009 a 2012, a infraestrutura física da fábrica foi preparada, os equipamentos adquiridos e os funcionários treinados no Brasil.
A fábrica é citada em discursos de governantes brasileiros como exemplo da ajuda que o Brasil pode dar à África e o diferencial da cooperação brasileira em relação a outros países. Enquanto a Europa e os Estados Unidos doam medicamentos, o Brasil doaria toda a tecnologia de produção. Apesar da importância dada ao projeto, ele ainda é um desconhecido em Moçambique. A largada da venda de medicamentos pode ampliar sua visibilidade.
Antes do início da produção, a comunidade internacional era descrente que o projeto pudesse dar certo. "Não sei se os medicamentos moçambicanos vão ser mais baratos que os indianos, se o preço vai ser competitivo", afirmou em 2010 o então coordenador do MSF em Moçambique, Alain Kassa. Agora que a produção finalmente começou, o desafio é manter a fábrica no âmbito público. Indústrias farmacêuticas privadas, sobretudo indianas, estão interessadas no projeto - visto como uma porta de entrada para o mercado de medicamentos na África.
FONTE: Amanda Rossi - Especial para o Estado
Nenhum comentário:
Postar um comentário