Cantor fala sobre preconceito, a morte do pai e a vida em família afetada pela carreira, temas das músicas ‘Crisântemo’ e ‘Hoje cedo’
Artista recebe Tulipa Ruiz e Wilson das Neves no Circo Voador, este sábado, durante primeiro show no Rio após lançamento de disco novo
Os óculos escuros não tiravam o cansaço do rosto. Músico e empresário de si mesmo, dono de um selo e responsável pela produção de tudo na sua turnê, Emicida chegou à sede do GLOBO com cara de escritório, num dia dedicado a entrevistas para divulgar seu show deste sábado no Circo Voador.
Vai ser a primeira apresentação no Rio depois do lançamento de “O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui”, primeiro disco de estúdio do rapper que há anos é o protagonista do seu gênero no Brasil. Extremamente confessional, o álbum exigiu do artista coragem pra abordar de forma direta assuntos pessoais como a morte do pai, tema de “Crisântemo”; e os danos que a carreira causou no convívio com suas próprias mulher e filha, enredo de “Hoje cedo”.
Em 40 minutos de entrevista, Leandro Roque de Oliveira, de 28 anos, falou abertamente sobre esses e outros temas, como preconceito racial, as acusações de machismo por causa da faixa "Trepadeira" e o sonho de publicar uma HQ.
Leia, abaixo, a entrevista.
Depois de toda a projeção que você já conquistou, qual a importância desse primeiro disco de estúdio?
Só conseguimos estrutura pra gravar o disco agora, e esse processo também foi de amadurecimento musical. As minhas mixtapes foram feitas de forma rápida, barata e solitária. O beatmaker mandava o instrumental pela web e eu gravava a voz. Ele na solidao dele e eu na minha. Mas música tem que gerar uma historia, o convívio no estudio faz a música evoluir, e a energia dessa vivência também vai para o álbum. Conversei muito com o Felipe Vassão (produtor) sobre o Norte do CD, que é a musica brasileira dos últimos 100 anos com a pegada contemporânea do rap.
As participações de Tulipa Ruiz, Wilson das Neves, MC Guimê, Pitty e vários outros mostram influências de diferentes gêneros no disco...
Foi natural, tem a ver com São Paulo. Minha música é um espelho de São Paulo, caótica, com informação bombardeando a gente o tempo todo. Às vezes, parece desconexo. Queria que os convidados contribuíssem com as verdades deles. Quando terminei “Hoje cedo”, percebi que a Pitty era a garota que poderia imprimir aquela verdade, que sentiria a importância de se contar essa historia.
“Crisântemo” tem participação da sua mãe e fala sobre o alcoolismo do seu pai, que morreu numa briga de bar. Como foi pra você lidar com o tema?
Rap fala muito de vencedor, o cantor dizendo “olha como sou foda”. “Crisântemo” fala sobre uma derrota. Uma derrota que não diminui uma pessoa, mas é a derrota de uma familia para um mundo violento. Se aproxima muito de “Iracema”, do Adoniran Barbosa, que fala de morte, solidão e lembrança. “Crisântemo” fala disso também, da perspectiva de uma criança que virou adulto e de uma mulher que ficou sozinha com quatro filhos, segurando esse BO. No final das contas, sou um contador de histórias.
Qual a história por trás desse rap?
É a minha história e da minha mãe. Perdi meu pai com 6 anos, em 1991, e nunca mais tocamos nesse assunto. A morte nunca foi um tema. Muita gente da minha família morreu, a gente foi nos velórios, mas nunca falou disso. Pulei de cabeça nesse assunto e quis muito trazer a perspectiva da minha mãe. O disco todo tem muita participação feminina mas, no caso dessa música, com a minha mãe, isso ganha tom visceral. A presença dela também expõe a perspectiva da mulher preta da favela, pra falar de ausência do estado, da periferia, da violência, do candomblé...
Sua história também é uma história de racismo?
Sim. Sofri mais na infância. O racismo é muito mais cruel com as crianças, porque ele destrói a autoestima num momento em que a gente não faz idéia do que seja racismo. Falei disso na música “Cê lá faz ideia” (da mixtape “Emicidio”, de 2010), que diz “Cê sabe o quanto é comum dizer que preto é ladrao, antes mesmo de saber o que é um”. Mas enfrento o racismo até hoje e não vou deixar de enfrentar até eu morrer. Talvez o filho da minha filha seja livre. Minha geração ainda colhe os frutos ruins das anteriores, que ouviram dizer que a escravidão tinha acabado e que a miséria era culpa deles. Nossas cotas raciais estão 127 anos atrasadas.
“Hoje Cedo” aborda um tema também pessoal, sobre como a sua carreira afetou a vida com sua família...
“Hoje cedo” fala sobre algo que vivi desde o barraco na favela até hoje. Sobre a ilusão das pessoas de achar que a vida do artista é uma festa. Não, sou um guerrilheiro de rua. “Hoje cedo” fala de eu sentir minha ausência com minha filha. Abri mão de estar com ela pra fazer o que mais amo, mas o que mais amo hoje é estar com ela. É como se as duas coisas conflitassem.
Quando você percebeu isso?
Não vi a gravidez da minha mulher nem os primeiros anos da minha filha. Me tornei pai no momento em que minha carreira ascendeu. Estava rodando o país, programando mixtape, me tornando um artista internacional. Mas, como a minha mãe diz, de nada adianta conquistar o mundo, olhar pra trás e dizer “vou dividir isso com quem?”. Me desconectei da vida pessoal para abraçar as responsabilidades de representante do rap nacional. Tenho orgulho desse papel, mas aprendi que, hoje, posso abdicar de certas coisas, adiar uma entrevista ou até um show, para ficar mais tempo com a minha filha. Hoje, entendo que tudo tem seu tempo e que a gente tem todo o tempo que precisa.
A música “Trepadeira” gerou críticas de grupos feministas, que acharam a letra machista e ofensiva a mulheres
Adoro trepadeira (risos). Na vida real e na musica... Acho importante não desqualificar o tema, precisamos debater o machismo, mas, nesse caso, foi um equívoco da parte das feministas. A música fala do fim de um relacionamento, de um homem traído. É um flerte com a ficção, inspirado em Moreira da Silva, Dicró e outros que me influenciaram muito. Além de tudo, é horrivel ter que explicar uma piada.
Mas como você recebeu as críticas? Se sentiu patrulhado?
Eu nunca tinha sido vidraça na mídia. Aprendi que as pessoas são bem crueis quando querem. Mas as pessoas que cruscificaram o Emicida por trepadeira não têm ideia do que estou fazendo. Minha musica é uma viagem. Se você chegar lá e não entender, não é culpa do motorista. Eu só proponho o tema. Cheguei a pedir desculpas no Facebook, dizendo que não queria ofender ninguém com a música. Mas, quando vi as pessoas ironizando minhas desculpas, percebi que a intenção não era o diálogo. As pessoas perdem o tema de vista pra atacar uns aos outros. Na rede social todo mundo é policia. Se você coçar a cabeça, vão dizer que tem piolho.
Você acha suas letras difíceis?
Minha musica é chata, cara. É dificil, não é o lugar comum que as pessoas esperam do rap. Algumas têm flerte mais simples, como “Zoião” (incluída na trilha sonora da novela “Sangue bom”). Mas minhas referências são lugares esquisitos pra muita gente. Quando vejo que tem muito jovem no meu público, penso que é porque não perderam a curiosidade. Muitos sentem mas não entendem. Se for perguntar o que achou, o cara pode falar de outra coisa. Pior coisa é as pessoas saberem o que você vai dizer no palco. Digo coisas às vezes desconexas, mas que fazem sentido no contexto, são o entender e o sentir. Não busque ordem no que faço.
Fala um pouco desse primeiro show no Rio com o CD novo...
O show vai ser foda, pela primeira vez na vida tenho o disco que eu queria e o show que eu queria. Montamos um formato sem bateria, com percussão monstra e DJ dando o Norte. Tem baixo, guitarra, cavaco... É a sintese do poder da rítmica brasileira, mas com algo da música internacional, que é a maneira como as bases soam. Essa mistura cria uma identidade até com as pessoas que não estão muito acostumadas com o rap. Vamos ter também participações de Tulipa Ruiz, Wilson das Neves, Quinteto em Branco e Preto e uma surpresa. O show vai ter toda a nossa estrutura de luz e som. Sempre quis fazer algo especial assim no Rio.
Para terminar, quais são seus próximos planos?
Quero escrever meus quadrinhos. Voltei a desenhar, estou estudando, quero contar historia de outro jeito. Não tem obrigação de ficar só no rap. Eu dirigi um clipe este ano. Sou teimoso... Gostaria de reverberar na literatura como na música, fazer a mesma galera que vai ao show discutir de literatura. Preciso fazer isso.
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