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domingo, novembro 17, 2013

MISSA DOS QUILOMBOS










Apresentação

Em nome de um deus supostamente branco e colonizador, que nações cristãs tem adorado como se fosse o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, milhões de Negros vem sendo submetidos, durante séculos, à escravidão, ao desespero e à morte. No Brasil, na América, na Africa mãe, no Mundo.

Deportados, como "peças", da ancestral Aruanda, encheram de mão de obra barata os canaviais e as minas e encheram as senzalas de indivíduos desaculturados, clandestinos, inviáveis. (Enchem ainda de sub-gente -para os brancos senhores e as brancas madames e a lei dos brancos- as cozinhas, os cais, os bordéis, as favelas, as baixadas, os xadrezes).

Mas um dia, uma noite, surgiram os Quilombos, e entre todos eles, o Sinaí Negro de Palmares, e nasceu, de Palmares, o Moisés Negro, Zumbi. E a liberdade impossível e a identidade proibida floresceram, "em nome do Deus de todos os nomes", "que fez toda carne, a preta e a branca, vermelhas no sangue".
Vindos "do fundo da terra", "da carne do açoite", "do exilio da vida", os Negros resolveram forçar "os novos Albores" e reconquistar Palmares e voltar a Aruanda.

E estão aí, de pé, quebrando muitos grilhões -em casa, na rua, no trabalho, na igreja, fulgurantemente negros ao sol da Luta e da Esperança.
Para escândalo de muitos fariseus e para alivio de muitos arrependidos, a Missa dos Quilombos confessa, diante de Deus e da História, esta máxima culpa cristã.
Na música do negro mineiro Milton e de seus cantores e tocadores, oferece ao único Senhor "o trabalho, as lutas, o martirio do Povo Negro de todos os tempos e de todos os lugares".

E garante ao Povo Negro a Paz conquistada da Libertação. Pelos rios de sangue negro, derramado no mundo. Pelo sangue do Homem "sem figura humana", sacrificado pelos poderes do Império e do Templo, mas ressuscitado da Ignomínia e da Morte pelo Espírito de Deus, seu Pai.
Como toda verdadeira Missa, a Missa dos Quilombos é pascal: celebra a Morte e a Ressurreição do Povo Negro, na Morte e Ressurreição do Cristo.

Pedro Tierra e eu, já emprestamos nossa palavra, iradamente fraterna, à Causa dos Povos Indígenas, com a "Missa da Terra sem males", emprestamos agora a mesma palavra à Causa do Povo Negro, com esta Missa dos Quilombos.

Está na hora de cantar o Quilombo que vem vindo: está na hora de celebrar a Missa dos Quilombos, em rebelde esperança, com todos "os Negros da Africa, os Afros da América, os Negros do Mundo, na Aliança com todos os Pobres da Terra".

Pedro Casaldáliga


I.- A DE Ó (ESTAMOS CHEGANDO). ABERTURA

(Coro–Cantado)

Estamos chegando do fundo da terra,
estamos chegando do ventre da noite,
da carne do açoite nós somos,
viemos lembrar.

Estamos chegando da morte nos mares,
estamos chegando dos turvos poroes,
herdeiros do banzo nós somos,
viemos chorar.

Estamos chegando dos pretos rosários,
estamos chegando dos nossos terreiros,
dos santos malditos nós somos,
viemos rezar.

Estamos chegando do chao da oficina,
estamos chegando do som e das formas,
da arte negada que somos
viemos criar.

Estamos chegando do fundo do medo,
estamos chegando das surdas correntes,
um longo lamento nós somos,
viemos louvar.

A de Ó (Recitado)

-Do Exílio da vida,
das Minas da Noite,
da carne vendida,
da Lei do açoite,
do Banzo dos mares...
aos novos Albores!
vamos a Palmares
todos os tambores!!!

Estamos chegando dos ricos fogões,
estamos chegando dos pobres bordéis,
da carne vendida nós somos,
viemos amar.

Estamos chegando das velhas senzalas,
estamos chegando das novas favelas,
das margens do mundo nós somos,
viemos dançar.

Estamos chegando dos trens dos suburbios,
estamos chegando nos loucos pingentes,
com a vida entre os dentes chegamos,
viemos cantar.

Estamos chegando dos grandes estádios,
estamos chegando da escola de samba,
sambando a revolta chegamos,
viemos gingar.

A de Ó (Recitado)

Estamos chegando do ventre das Minas,
estamos chegando dos tristes mocambos,
dos gritos calados nós somos,
viemos cobrar.

Estamos chegando da cruz dos engenhos,
estamos sangrando a cruz do Batismo,
marcados a ferro nós fomos,
viemos gritar.

Estamos chegando do alto dos morros,
estamos chegando da lei da Baixada,
das covas sem nome chegamos
viemos clamar.

Estamos chegando do chao dos Quilombos,
estamos chegando do som dos tambores,
dos Novos Palmares só somos,
viemos lutar.

A de Ó (Recitado)



EM NOME DO DEUS

(Solo–Cantado)

Em nome do Deus de todos os nomes
-Javé
Obatalá
Olorum
0ió.

Em nome do Deus, que a todos os Homens
nos faz da ternura e do pó.

Em nome do Pai, que fez toda carne,
a preta e a branca,
vermelhas no sangue.

Em nome do Filho, Jesus nosso irmão,
que nasceu moreno da raça de Abraão.
Em nome do Espírito Santo,
bandeira do canto
do negro folião.

Em nome do Deus verdadeiro
que amou-nos primeiro
sem dividição.

Em nome dos Três
que sao um Deus só,
Aquele que era,
que é,
que será.

Em nome do Povo que espera,
na graça da Fé,
à voz do Xangô,
o Quilombo-Páscoa
que o libertará.

Em nome do Povo sempre deportado
pelas brancas velas no exílio dos mares;
marginalizado
nos cais, nas favelas
e até nos altares.

Em nome do Povo que fez seu Palmares,
que ainda fará Palmares de novo
-Palmares, Palmares, Palmares
do Povo!!!


RITO PENITENCIAL


(Coro - Cantado)

Kyrie eleison, Christe eleison, Kyrie eleison.

Alma não é branca,
luto não é negro,
negro não é folk.

Kyrie eleison.

- Senhor do Bonfim
do bom começar:
não seja a alegria
apenas de um dia;
não seja a folia
para desfilar
na avenida sua.
Que seja, por fim,
a tua Alforria
e nossa a rua,
Senhor do Bonfim!

Kyrie eleison, Christe eleison, Kyrie eleison.

(Recitado)

Da raça maldita
gratuitamente,
a raça de Cam.
Secular estigma
da escrava Agar,
Mãe espoliada,
Ismael dos Povos,
denegrida Africa.

(Coro - Cantado)

Terras de Luanda,
Costa do Marfim,
Reino de Guiné,
Patria de Aruanda
Awa de! (Estamos aqui)

(Recitado)

Carne em toneladas,
fardos de porão.
Quota da Coroa
fichas de Batismo,
marcados a ferro
para a Salvação.
Entregues à Morte,
sendo Cristo a vida.
Humanos leilões,
pecas de cobiça,

300 milhões
de africanos mortos
na Segregação
Caça das Bandeiras,
do Esquadrão da Morte.
Exus do destino,
capitães-do-mato.
Quantos Jorge Velho
de todos os Lucros,
de todos os Tempos,
de todas as Guardas!
Quantas Aureas Leis
da Justiça Branca!

(Coro– Cantado)

Queimamos, de medo
-do medo da História-
os nossos arquivos.
Pusemos em branco
a nossa memória.

(Recitado)

Cultura à margem,
Culto condenado,
Fé de freguesia,
Giro tolerado,
Revolta ignorada,
História mentida.

Ressaca dos Portos.
Harlem dos Impérios,
Apartheid em casa,
favela do mundo.
Com "direito a enterro"
sem direito à vida.
Pelourinhos brancos,
flagelados pretos.
Negro sem emprego,
sem voz e sem vez.
Sem direito a ser,
a ser e a ser Negro.
Dobrados nos eitos,
os peitos quebrados,
os peitos sugados
por filhos alheios,
senhores ingratos.
Bebês imolados
pelas Anas Paes,
Testas humilhadas
nas águas dos cais,

Bronze incandescente
nas bocas dos fornos.
Peões de fazenda,
pé de bóia-fria,
artista varrido
no pó da oficina,
garçom de boteco,
sombra de cozinha,
mão de subemprego,
carne de bordel...
Pixotes nas ruas,
caçados nos morros,
mortos no xadrez!

Negro embranquecido
pra sobreviver.
(Branco enegrecido
para gozação).
Negro embranquecido,
morto mansamente
pela integração.

(Coro - Cantado)

Mulato iludido,
fica do teu lado,
do lado do Negro.
Não faças, Mulato,
a branca traição.

(Recitado)

Padres estudados,
Pastores ouvidos,
Freiras ajeitadas,
Doutores da sorte,
Cantores de turno,
Monarcas de estádio...
Não negueis o Sangue,
o grito dos Mortos,
o cheiro do Negro,
o aroma da Raça,
a força do Povo,
a voz de Aruanda,
a volta aos QUILOMBOS!

(Coro- Cantado)

- Bom Jesus de Pirapora,
na procura desta hora,
tem piedade de nós.

- Kyrie eleison!

(Solo - Cantado)

Senhor Morto,
Deus da Vida,
nesta luta proibida,
tem piedade de nós.

(Coro)

- Christe eleison!

(Solo - Cantado)

- Irmão Mor da Irmandade,
na Paixão da Liberdade,
tem piedade de nós.

(Coro)

Kyrie eleison!


FONTE: Texto: Pedro CASALDÁLIGA e Pedro TIERRA
Música: Milton NASCIMENTO

Disco longplay: Philips
Cassete: Ariola, São Paulo 1982.
Compact Disc Digital Audio: PolyGram do Brasil Ltda.



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