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sábado, outubro 09, 2010

Tradição secular, casamento africano não tem papel passado nem cerimônia religiosa

O novo código que regula as relação familiares em Angola deve incorporar, pela primeira vez, uma regulamentação para o casamento tradicional africano, chamado pelos angolanos de alambamento. Em entrevista ao Jornal de Angola, a diretora da Família e Promoção da Mulher no Huambo, Maria do Rosário Amadeu, afirmou que o fato de o alambamento não ser reconhecido juridicamente tem causado muitos transtornos à sociedade. Segundo ela, a nova legislação também deve levar em conta os casos de mulheres que têm filhos com homens casados que se recusam a reconhecer as crianças.

No alambamento não há certidões, assinaturas e nem rituais religiosos para consagrar o casamento. O homem presenteia os pais da mulher com base em um rol de pedidos, elaborado para confirmar seu interesse em fazer parte da família. Tradicionalmente, quando essas condições são aceitas, a mulher passa a ser tratada pela sociedade como esposa, mesmo que, do ponto de vista formal, não haja casamento. Essa espécie de aprovação familiar é levada a sério em muitos países africanos.

Em Moçambique, a prática é muito parecida e recebe o nome de lobolo. O casamento propriamente dito, registrado em cartório (ou na conservatória, como se diz nos países africanos lusófonos), é considerado menos importante sob ponto de vista social, sobretudo nas pequenas comunidades no interior. Mas ele dá a proteção jurídica à esposa e aos filhos que o alambamento e o lobolo não alcançam.

O casamento tradicional pode ocorrer antes ou depois da união de fato do casal. Entretanto, é comum às mulheres dizer que só se sentem seguras depois da cerimônia tradicional. “Depois de 18 anos finalmente fui lobolada. Esperei tanto por este momento. Estou muito feliz”, diz Milagrosa Sitóe, de 33 anos, ainda vestida de branco, no quintal da casa dela, no vilarejo de Guijá, província de Gaza, interior de Moçambique. Ao lado dela, o marido, Arlindo Mulhoi, também não disfarçava a alegria. “Agora sou um mukonwana, genro de verdade”, afirmou.

Antes de lobolar Milagrosa, Arlindo era apenas mukwaxi, palavra da língua xangana que indica que o companheiro de uma mulher ainda não cumpriu totalmente sua obrigação tradicional. O tempo que estão juntos (18 anos) e os quatro filhos não fazem diferença. “Agora, sim, o sangue dos filhos pertence a ambos. Se o homem não faz lobolo, não é genro legítimo. Enquanto não lobolou, os filhos não são seus”, explicou Alexandre Sidomi, tio de Milagrosa, que acompanha o lobolo. “Genro é aquele que lobolou a sua mulher. Aquele que não lobola e que tem filhos, esses filhos não lhe pertencem, fazem parte só da família da noiva”, confirmou outro tio, Armenio Saia.

Quando a mulher casada morre sem ser lobolada, o marido viúvo não pode sequer enterrar o corpo. Antes precisa cumprir sua obrigação, sob pena de ser reprovado por toda a comunidade. Os dois tios de Milagrosa aprovaram o lobolo da sobrinha. Eles eram parte de uma espécie de “comissão de parentes" - a madoda - que confere se os pedidos feitos para o noivo foram efetivamente atendidos. A conferência é parte da cerimônia, que foi integralmente acompanhada pela Agência Brasil.

O ritual do lobolo

A tradição começou com um chá, servido para as visitas no pátio que serve de sala de estar do casal. Arlindo estava sozinho; desde a véspera, Milagrosa havia ido para a antiga casa onde morou e onde atualmente vivem suas irmãs solteiras e algumas tias e primas. Tanto

a mãe quanto o pai dela já morreram, mas os tios se encarregaram de fazer os pedidos e Arlindo, de cumpri-los. O noivo mostrou aos parentes quais foram as exigências da família de Milagrosa para o lobolo: um terno com sapatos e camisa para o tio da noiva, capulanas, mukume e vemba (tecidos floridos tradicionais) para as tias, 12 litros de vinho, quatro caixas de refrigerante e cerveja, uma esteira de palha (a cama do casal), 8,5 mil meticais (MT - moeda moçambicana) em dinheiro (cerca de R$ 400, equivalente a 3,5 salários mínimos moçambicanos), além de uma vaca, cujo preço na região fica entre MT 8 mil e MT 12 mil, dependendo do peso e da idade do animal. Três pequenos potes de rapé completavam o rol de solicitações.

Arlindo, que é alfaiate no vilarejo, demorou quase dois anos para recolher tudo. Sem ordenado fixo, estima que seus ganhos variem entre MT 3,5 mil e 4,5 mil por mês. Queria ter feito antes. “Agora tenho como cumprir a tradição. É uma forma de agradecer aos pais dela por tê-la guardado bem e me confiado sua filha”, diz ele.

Em um canto o quintal, Madalena, a segunda esposa de Arlindo, acompanha à distância. Ela também não foi lobolada, mas terá de esperar sua vez. A primeira esposa deve ser lobolada antes. Arlindo tem dois filhos com Madalena, que é mais jovem que Milagrosa.

Não há limite para casamentos tradicionais. Um homem pode ter tantas esposas quanto puder manter. Tradicionalmente, mulher que élobolada fica casada para sempre. Se o marido quiser outra esposa, costuma levá-la junto. Nas cidades, a lei (que proíbe a poligamia) e as regras cristãs da Igreja Católica - trazida pelos portugueses para Moçambique - e das denominações evangélicas que cresceram muito nos últimos ano têm feito com que a maioria dos homens tenha apenas uma mulher. Entretanto, o adultério é prática comum. As campanhas anti-aids (a doença é muito disseminada no país) costumam tratar do tema em peças publicitárias e até no material didático usado pelos estudantes de escolas públicas.

Na hora marcada, 9 da manhã, os parentes seguiram a pé até a casa da família da noiva, carregando o lobolo, a vaca inclusive, e cantando pelas vias de terra. Bem vestidos, recebem o carinho da vizinhança, que sempre se alegra em dia de lobolo. O nkulunguana, grito de alegria, de influência árabe, é ouvido em todo bairro. O noivo não acompanhou; só irá para a casa da noiva se tudo correr bem e o lobolo for aceito.

Sempre cantando, as famílias se encontraram na frente da casa de Milagrosa, que não tem portão ou grade – apenas um portal de madeira simples, enfeitado com flores para a ocasião. Um tronco na frente da passagem é retirado por uma das tias, em meio à cantoria, para mo

strar que a visita é bem aceita. Cerca de 100 parentes se aglomeram no terreno. Estão com roupa de festa: mulheres de vestidos longos, homens de camisa e paletó, mesmo com o calor de 30 graus Celsius. Ao lado, jovens depenam galinhas que foram mortas ali mesmo, havia poucos minutos. Rapazes retiram o couro de um cabrito pendurado em uma árvore – um dos três que serão servidos para os convidados. Também há xima (tradicional purê de farinha de milho), arroz e batata frita. Tudo cozido à lenha, em fogueiras montadas no quintal.

A madoda confere os itens longe dos convidados e dos noivos. Depois de um tempo, se junta aos demais em uma roda no quintal. Senhoras com capulanas coloridas sentam-se no chão, sobre esteiras de palha. Aos mais velhos são oferecidas cadeiras. As mulheres cantam o tempo todo em xangana, a língua materna da maioria. As letras recomendam paciência (tiyisela) e avisam à família visitante que, apesar das exigências, eles querem paz (kurhula).

A noiva sai de seu quarto acompanhada das irmãs. Apreensiva, ouve as considerações dos parentes sobre o lobolo e o noivo. O ancião da vila (nduna) passa a palavra a quem queira se manifestar. Ao fim de quase uma hora, é dado o veredito da comunidade: olobolo foi aceito. O noivo é, então, recebido com festa. As tias e primas trazem os presentes da noiva: colheres de pau, tachos de madeira, uma enxada, capulanas coloridas. E também um galão de plástico, para buscar água para casa na única fonte do lugar.

Começa o almoço, que se estenderá até o fim da tarde, quando o sol for embora. Sem a interferência de um juiz de paz ou de qualquer líder religioso, Arlindo, Milagrosa e os quatro filhos passam agora a ser, pelas regras tradicionais africanas, uma família.

FONTE: AGÊNCIA BRASIL

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