O número de casos de discriminação julgados no Brasil vem crescendo e a quantidade de acusados considerados inocentes também - quase 70% deles saem livres do banco dos réus
Quando criança, a cabeleireira Vera Maria da Silva ouviu baterem palmas no portão e foi atender. “Podemos falar com a dona da casa?”, perguntaram dois vendedores de livros. Momentos depois, na presença deles, a mãe de Vera quis saber se a filha havia gostado dos livros. Os rapazes estranharam o questionamento da “dona da casa”, uma mulher branca, e um deles se voltou contra Vera: “Olha, negrinha, você não tem de dar opinião. Quem decide é a sua patroa.”
Aquela foi a primeira vez que a cabeleireira lembra ter sido discriminada. Não foi a única. No mês passado, aos 59 anos, Vera diz ter sido xingada de “macaca” e “negra imunda” pelo comerciante Cláudio Kubo, de Sorocaba, no interior paulista, onde mora. Kubo sugeriu, ainda, que ela montasse “num urubu” e voltasse para a África. “Cresci ouvindo essas coisas e nunca tinha tido oportunidade de tomar providências”, conta Vera. “Duas testemunhas do crime prestaram depoimento”, afirma o delegado Fábio Cafisso. Autuado por injúria racial, Kubo foi preso em flagrante. Passou 24 horas na cadeia. Ele alega inocência.
Racismo – assim como injúria racial – é crime no Brasil desde a Constituição de 1988. Injúria é xingamento. Já o racismo fica caracterizado quando a vítima, por exemplo, é impedida de entrar em algum lugar ou preterida numa vaga de trabalho.
Embora esse tenha sido um importante avanço na legislação, punir os agressores tem se mostrado complicado. Uma pesquisa do Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (Laeser), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, revela que os julgamentos de racismo e injúria racial vêm crescendo, mas o número de acusados considerados inocentes também.
Depois de passar um pente-fino nos portais dos tribunais de segunda instância de todo o País, o Laeser localizou 84 ações julgadas entre 2005 e 2006. Nos dois anos seguintes, foram 148. Enquanto no primeiro biênio os réus venceram 52,4% dos processos, em 2007 e 2008 eles levaram a melhor em 66,9%.
"Juízes conservadores têm dificuldade de lidar com esses delitos e, às vezes, desqualificam a fala das vítimas”, diz Marcelo Paixão, coordenador do Laeser. “O mito da democracia racial, de que não existiria racismo no Brasil, também pode influenciar os magistrados.” Cleber Julião Costa, pesquisador do Laeser e professor de Direito da Universidade Estadual da Bahia, afirma que muitos processos são mal fundamentados porque os profissionais da área não são bem preparados para trabalhar com a temática.
Por isso, na segunda instância, onde as questões técnicas têm mais peso, os réus acabam beneficiados. “Em muitos casos, o juiz muda o tipo penal de racismo para injúria qualificada. Só que o prazo para a suposta vítima propor uma ação por injúria é de 6 meses e, como o tempo de tramitação dos processos é maior do que isso, ela acaba perdendo esse direito”, relata Costa. “Mas, apesar disso, essas ações são importantes porque têm um caráter pedagógico para os réus e para a sociedade.”
Levar esses processos adiante, no entanto, pode ser penoso para as vítimas. Em 2005, durante um jogo, o ex-atacante são-paulino Grafite foi chamado de “negro de merda” e “macaco” pelo zagueiro argentino Leandro Desábato. Depois da partida, disputada no Morumbi e televisionada para vários países, Desábato foi preso em flagrante. Passou dois dias na cadeia. O episódio repercutiu mundialmente e motivou debates sobre o racismo no futebol. Menos de seis meses depois, Grafite desistiu de propor uma ação penal. “Logo depois do jogo, tinha muita gente ao meu lado”, relata Grafite à ISTOÉ. “Mas o tempo foi passando e eu fui ficando sozinho, sem apoio. Minha filha tinha 7 anos e não queria ir à escola porque ficavam perguntando o que eu ia fazer. Fiquei com raiva de ser discriminado naquele dia, mas era muito pior quando eu não era famoso. Eu vendia sacos de lixo e muita gente olhava esquisito quando via um negro batendo no portão.”
FONTE: ISTOÉ
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