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terça-feira, julho 30, 2013

Amarildo, que não se chama Francisco









O pedreiro Amarildo de Souza – que poderia se chamar Pedro ou Francisco - , preso sem quaisquer acusações – segunda alega a polícia fluminense ele “era parecido com um procurado por tráfico” – foi levado para uma UPP da Comunidade da Rocinha e continua desaparecido. Onde está Amarildo? Vamos esperar quarenta anos e então criar uma comissão para saber a verdade?


Amarildo é pedreiro, chamado pelos amigos de “o boi”, tem 42 anos, nascido e criado na Rocinha, a grande comunidade do Rio de Janeiro, é casado com Elizabeth e tem seis filhos, foi preso na porta de seu barraco pelos policiais da UPP. Depois disso, ninguém sabe, ninguém viu.
Ainda estamos em plena Jornada Mundial da Juventude, aqui num Rio de Janeiro incomumente frio e chuvoso. Neste mesmo Rio as ondas de protestos das (já agora), chamadas “Jornadas de Junho”, continuam a explodir em ações, marchas e numa mobilização, incluindo em face do Papa Francisco, constante. Da mesma forma, o poder estadual se organiza, de forma jamais vista, mobilizando organismos e entidades voltadas para a repressão e a paralisação da “voz das ruas”.

As manifestações e as ações, em especial contra o governo do Estado (coligação PMDB+PT) continuam. Em bem verdade, sem seu caráter massivo das grandes Marchas de Junho (mais de um milhão de pessoas nas ruas), mas mantidas de forma insistente, aguda, provocativa e explicitando a incapacidade do governo estadual em dar respostas éticas, sinceras e populares às demandas das ruas.

Na JMJ, todas as agruras e misérias impostas diariamente à população trabalhadora do carioca e fluminense, explodiram sobre os “peregrinos”. Sem qualquer pudor ou caridade cristã. E tais humilhações, no limite do deboche, são ainda uma vez as mesmas: engarrafamentos, a ausência dos ônibus, as multidões dormindo nos pontos e estações finais; o metrô parado e as pessoas caminhando pelos trilhos na escuridão; máquinas-bilheteiras paradas, funcionários e “seguranças” das empresas de transportes ausentes, arrogantes, prepotentes e brutais perante justas cobranças e queixas dos usuários.

Capazes de abandonar milhares de pessoas nas ruas, num frio e numa chuva inusitados, durante um evento esquadrilhado pela mídia nacional e internacional, as autoridades fluminenses são capazes de muito mais no dia à dia, na rotina enfadonha e brutalizada dos transportes, da segurança, dos serviços e das condições mínimas de bem-estar social.

O planejamento mínimo da JMJ – como os locais dos eventos, com seus necessários refeitórios e banheiros – não existiu ou foi abandonado, depois de gastos feitos (e que permanecem estranhamento secretos, tanto de parte da comissão da Igreja, como de parte da Prefeitura do Rio de Janeiro). Não estamos criticando o que foi gasto para vinda do Papa – aviões, helicópteros, segurança, fechamento de ruas e de serviços, paralisação do trabalho, etc.). 

Não falamos disso. Falamos, por exemplo, do chamado “Campo da Fé” – imensa construção, longe 50 quilômetros do Centro do Rio e do local, real, onde as cerimônias foram realizadas. Quem “atestou” o local? Quem aterrou o mangue local – área permanente de preservação natural conforme a constituição – e, por fim, quem pagou todas as obras lá feitas?

Bem, ao lado disso, a ilusão de que a população do Rio iria esquecer as mazelas do seu dia à dia, evaporou-se. Os acampamentos em frente da residência do Governador ou as manifestações em frente do Palácio Guanabara se sucedem, inclusive em presença do Papa e em plena Praia de Copacabana. Mas, do que isso: tornou-se patente, transparente, a ação do governo do Estado e sua decisão de não dialogar, de reprimir, sabotar e falsear a natureza dos protestos.

A violência da polícia fluminense evidenciou-se, num misto de incompetência e de truculência. Eu não sei, por exemplo, se o estudante Bruno Telles portava (ou lançou) ou não um coquetel molotov nos protestos em frente do Palácio Guanabara. Bem, a PM e a Polícia Civil também não sabem. O Ministério Público não sabe. A Mídia Ninja apresentou filmes, periciados, onde o jovem nada tinha nas mãos e sequer portava mochila e esteve, durante todo o evento, de rosto descoberto. Contudo, Bruno foi acusado de homicídio doloso. 

Foi preso. Mantido num presídio, precisou de habeas corpus para voltar à liberdade. Seu nome foi exposto e as autoridades, dotadas, de forma gritantemente ilegal, de poderes inconstitucionais outorgados pelo Governador, o acusam de ser um homicida. Mas, nada apresentam como prova. E daí? Parece que para as autoridades fluminenses não faz qualquer diferença.

Nas manifestações em que Bruno foi preso, surgiram policiais à paisana. Ah, são “agentes secretos”. Ok, entendi... Buscam informações. É isso? Mas, filmes e fotos apresentam tais policiais incentivando a depredação, mobilizando ataques aos colegas fardados e lançando pedras e, aparentemente, bombas. E daí? Nada. 

O operário, pedreiro, Amarildo de Souza – que poderia se chamar Pedro ou Francisco - , preso sem quaisquer acusações – segunda alega a polícia fluminense ele “era parecido com um procurado por tráfico” – foi levado para uma UPP da Comunidade da Rocinha, zona sul do Rio, continua desaparecido. Mais uma vez é o mesmo do mesmo: alguém, no caso um operário – embora se fosse um contraventor nada deveria ser diferente! – é preso, sem quaisquer ato ou documento legal, é lavado para um próprio do governo do Estado (uma dita “Unidade de Polícia Pacificadora, UPP”) e então desaparece! 

Todos nós já vimos este filme. Foi rodado e exibido durante a ditadura, atingindo resistentes, combatentes e aqueles vitimados por erro de identificação. Há uma comissão para esclarecer isso. Mas, depois da ditadura, o filme continuou em cartaz nas comunidades populares e nas periferias desassistidas de todo o país.

Enfim, onde está Amarildo? Vamos esperar quarenta anos e então criar uma comissão para saber a verdade?

Em meio aos protestos das Jornadas de Julho a PM do Rio de Janeiro, em “combate” descontrolado com o narcotráfico – que foi “pacificado”! – invadiu o imenso complexo denominado “Favela da Maré” e chacinou oito pessoas e teve um policial morto – vítima do tráfico “pacificado” e do despreparo da corporação. Assim, no dia 24 de junho, em plena mobilização dos protestos na cidade, com toda a mídia protestando contra o uso abusivo (?!) de balas de borracha, o BOPE entra numa área densamente povoada e mata oito pessoas... Não eram balas de borracha – que por sinal, também matam! – mas balas de verdade, que matam de verdade, como matam nas comunidades fluminenses desde sempre. Os mortos eram trabalhadores, incluindo um garçom, em pleno trabalho, morto com um tiro no rosto.

E daí? Quem se importa? Ninguém!

Contudo, o governo do estado criou, de forma expressa, uma comissão de repressão ao “vandalismo”. A comissão, criada por decreto, sem apreciação da assembleia legislativa e sem consulta a sociedade civil – a OAB já se pronunciou pela sua inconstitucionalidade – ou o próprio Poder Judiciário. 

Pelo “Diktat” do Governador do Rio de Janeiro, o sigilo digital, telefônico e os direitos individuais estão suspensos nas terras fluminenses. Mas, com certeza tal decisão só vale para os “vândalos” – para saber como são feitas as licitações das linhas de ônibus, do BRT, a privatização do Metro ou os custos das obras do “Campo da Fé” não vale... Além disso, a PM que deveria ser investigada – seja na invasão da Favela da Maré ou desaparecimento do pedreiro Amarildo - assume poderes investigativos, usurpando as funções da Justiça.

A Comissão de Investigação dos Atos de Vandalismo em Manifestações Populares – uma invenção digna dos regimes ditatoriais - vai investigar onde está Amarildo? Não, a emergência é outra... Talvez salvar a carreira (carreira?) dos políticos fluminenses.

E daí? Nada! Quem se importa? Com certeza a comissão autorizada, por decreto, a dar ultimatos às instituições do estado e da sociedade civil, a atropelar as normas constitucionais e a dar poderes ditatoriais a polícia, não se importa com Amarildo.

Com certeza os seis filhos de Amarildo se importam. E daí?


FONTE: CARTA CAPITAL / Francisco Carlos Teixeira(*) Professor Titular de História Contemporânea/IUPERJ.

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