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quinta-feira, julho 04, 2013

O fogo de Estocolmo: uma análise autonomista









O observador de fora poderá ainda encarar a Suécia como a terra prometida do Estado providência. Contudo, as políticas neoliberais são uma espécie de térmitas, já há algum tempo ocupadas na trituração do sistema de apoio social.

Os subúrbios de Estocolmo estão em chamas. O observador de fora poderá ainda encarar a Suécia como a terra prometida do Estado providência. Contudo, as políticas neoliberais são uma espécie de térmitas, já há algum tempo ocupadas na trituração do sistema de apoio social. O resultado final poderá ser a montanha a parir um rato, passível de ser desmoronada pela mais leve brisa de vento.
Ainda existem hospitais, as fachadas dos prédios das periferias foram renovadas e os estudantes não deixaram de ir à escola. No entanto, por trás da fachada, o sistema de saúde é colocado de joelhos por cortes e políticas de austeridade, a necessidade de renovar as áreas limítrofes dos arranha-céus torna-se premente e escolas dos subúrbios são encerradas enquanto um número cada vez maior de estudantes alcança apenas o 9.º ano. O sistema está a ser pilhado à medida que se privatizam os apoios sociais e interesses de mercado invadem o setor público. Porém, a um nível superficial, tudo está como dantes, sendo impossível vislumbrar as mudanças à primeira vista.
Nos subúrbios de Estocolmo, o miljonprogramme – assim denominado devido ao objetivo de construir um milhão de apartamentos a preços acessíveis – resultou das então crescentes necessidades habitacionais da força de trabalho empregue no sistema de produção fordista das décadas de 60 e 70. Inicialmente, a grande parte dos trabalhadores que lá moravam pertenciam a um stock sueco e finlandês, aos quais mais tarde se juntariam turcos, iranianos, latino-americanos e somalis. Apesar de Estocolmo constituir ainda uma região em crescimento, a construção de casas encontra-se paralisada. Por sua vez, os subúrbios de estilo banlieu, com sérias necessidades de renovação, enfrentam uma enorme negligência.
Uma geração de miúdos cujos pais se fixaram na Suécia passou toda a sua vida nestes subúrbios de betão. Não obstante a maioria ter permanecido cravada à sua posição, uma parte conseguiu trepar a escada social e estabelecer um lugar próprio na sociedade. Ao contrário do verificado noutros países escandinavos, um largo segmento de suecos filhos de imigrantes conseguiu licenciar-se, ganhando a vida como jornalistas, autores ou músicos populares. Os subúrbios desenvolveram a sua própria espécie de intelectuais orgânicos, dispostos a partilhar a suas experiências pessoais de racismo, descriminação estrutural e crescimento no seio de comunidades negligenciadas. Eles têm voz nos debates culturais, onde criticam a produção de estereótipos raciais por parte dos meios de comunicação social e reivindicam a sua própria forma de representação.
No contexto da inédita eleição parlamentar de representantes de um partido de extrema-direita, na sequência das eleições legislativas de 2010, o debate público acerca de temas como a etnicidade, a raça ou a cultura tornou-se comum – e nem sempre a favor dos racistas. A influência das críticas antirracistas formuladas por naturais de outros países chegou mesmo a ser comentada pela Timbro, think-tank da Confederação Empresarial Sueca (a equivalente à Confederação Industrial Portuguesa), tendo esta recentemente declarado que «o pós-colonismo é na atualidade a maior ameaça da esquerda».
Uma das muitas controvérsias foi desencadeada pelos protestos contra o REVA, um projeto conjunto entre o serviço de fronteiras e a polícia com o objetivo de deter migrantes ilegais por via de um controlo fronteiriço interno (a título de exemplo, no transporte metropolitano). Instruída a basear-se em perfis raciais pré-concebidos, a polícia começou a parar toda a pessoa «que não parecia sueca», exigindo a apresentação de documentos. A divulgação pública do recurso a esta tática originou largos protestos e uma onda de ações diretas durante toda a primavera. As declarações grosseiras e os insultos raciais realizados pelos ministros da Justiça e da Migração ajudaram a alimentar os protestos, abrindo igualmente o debate sobre racismo às experiências pessoais relatadas por figuras do meio cultural sueco. Tal permitiu uma alteração do rumo do debate público em direção a uma posição antirracista.
Estes intelectuais orgânicos de raízes suburbanas são apenas a ponta do icebergue de uma nova forma de consciência que se desenvolve a partir das periferias esquecidas. Mais importante, contudo, é a emergência de organizações suburbanas territoriais, completamente ignorada pelos meios de comunicação social. Em Estocolmo, tal como em Gotemburgo e Malmö, verificou-se o desenvolvimento paralelo de organizações comunitárias constituídas por moradores. Em 2001, Gotemburgo assistiu ao nascimento da Pantrarna (os «Panteras») no subúrbio de Lindängen, uma iniciativa que depressa se iria espalhar a Malmö. Na cidade de Estocolmo, a Megafonen (o «Megafone») seria formada em 2008 no subúrbio de Husby. A inspiração, conforme sugerido pelos seus nomes, advém do Partido dos Panteras Negras. As organizações comunitárias têm procurado enfrentar problemas sociais através de um programa social de desenvolvimento, um tanto ou quanto semelhante ao programa de dez pontos dos Panteras Negras. Não existe, portanto, uma fronteira nítida entre a organização social e a organização política: a ajuda a crianças com os seus trabalhos de casa num ambiente menos stressante do que os apartamentos superlotados em que vivem; a organização de programas educacionais e de aulas de escrita criativa; o treino de artes marciais e a campanha pela abertura de novos centros comunitários. Os Panteras Negras não se limitam a constituir uma fonte de inspiração, desenvolvendo as organizações comunitárias suecas projetos em colaboração com alguns dos seus antigos militantes. Em Maio de 2011, Bobby Seale compareceu num protesto coletivo organizado pela Pantrana em Gotemburgo. Neste ano, diversas associações organizaram o festival Speak your Mind, o qual contou com a presença de membros dos Panteras Negras e com a atuação do grupo norte-americano Dead Prez e de outras vozes da cena hip-hop sueca.
Não se pode dizer que Husby, onde o fogo começou, corresponde propriamente ao subúrbio mais marginalizado e negligenciado de Estocolmo. É, pelo contrário, uma das regiões com maiores níveis de militância, com lutas sociais a decorrer há já algum tempo e muitas vitórias alcançadas. Habitada por quase 11 000 cidadãos, encontra-se situada nas proximidades da «cidade da ciência» de Kista, uma espécie de Sillicon Valley da Suécia. A sua localização veio tornar visíveis os fenómenos de gentrificação e segregação, à medida que os políticos de Estocolmo investem em massa na expansão de Kista, de forma a abranger Husby. Para tal, um novo plano para o subúrbio foi lançado, envolvendo a demolição de grandes conjuntos habitacionais, a privatização dos banhos públicos e do centro de saúde comunitário, o encerramento do centro comunitário Husby Träff, bem como luxuosas renovações, com consequências ao nível do aumento das rendas. Todas estas medidas visam a recomposição da população e o aumento geral do estatuto da área. A Megafonen tem obtido algum sucesso no bloqueio deste plano: aliada a outros movimentos sociais, conseguiu travar as demolições de casas, evitar os «redespejos» (renovações que visam despejar inquilinos) e salvar os banhos públicos. No ano passado, face à ameaça de fecho do centro comunitário Husby Träff, a associação respondeu com a ocupação do espaço, tendo garantido o seu funcionamento até hoje.
A intervenção das autoridades policiais tem igualmente potencializado a existência de conflitos. Além dos controlos fronteiriços internos pela REVA – um projeto com já alguns anos que se expandiu recentemente das periferias para o centro das cidades – a polícia implementou uma política de tolerância zero nos subúrbios, programas de combate à «radicalização» política e, sob o pretexto da luta contra a droga, a perseguição a grupos de hip-hop locais. Juntos, todos estes elementos contribuíram para um crescente ódio à polícia.
Há cinco anos, uma onda protestos atravessou os subúrbios negligenciados da Suécia, com diversos automóveis incendiados em Malmö e Gotemburgo. Porém, esta onda nunca atingiu Estocolmo. Atualmente, é nesta cidade que se localiza o epicentro dos incêndios. Os primeiros sinais vieram dos fogos de Tensta (nas proximidades de Husby) em Abril, os quais visaram diretamente um dos proprietários então responsáveis pelo aumento de rendas. A empresa recuou, não tendo a história merecido a atenção dos meios de comunicação social.
Ao invés, foi o assassinato policial de um idoso de 69 anos em Husby, a 13 de Maio, que suscitou a faísca. A natureza dos acontecimentos surge interpretada em duas versões. Uma primeira defende que a vítima, um descendente de portugueses, estava a comer fora num restaurante com a sua esposa. Ao vê-la ser ameaçada por um gangue juvenil, foi buscar uma faca a sua casa de forma a assustar os jovens. Eventualmente, acabou por ir para casa juntamente com a sua mulher. Mais tarde, a polícia apareceu à sua porta, não tendo o casal respondido ao toque da campainha com medo. A polícia terá então forçado a entrada e disparado um tiro na cabeça da vítima. Numa outra versão, o acontecimento terá sido despoletado pela denúncia telefónica de um homem que, após se ter passeado na rua com um machete, se trancou em casa com a sua esposa. Enviada ao seu resgate, a polícia terá disparado sobre a vítima em legítima defesa, a qual faleceu mais tarde, já no hospital. Todavia, a versão da polícia demonstrou apresentar várias imprecisões: a Megafonen apresentou provas de que o corpo havia permanecido no apartamento durante várias horas antes de ter sido transportado. Em reação contra o que considerava ser abuso policial, a associação organizou um protesto no dia seguinte, exigindo uma investigação independente dos acontecimentos. A atitude da polícia pautou-se pela fuga ao diálogo, acusando-a de instigar o ódio para com a polícia e de minar a confiança pública na lei em Husby e nos seus arredores.
Tudo terá começado segunda-feira, dia 20, com os primeiros automóveis a serem incendiados em Husby. Chegada ao local, a polícia viu-se confrontada com o arremesso de pedras por parte de gangues juvenis. O fogo, o fumo e o barulho das sirenes despertaram a atenção dos moradores de Husby, os quais saíram de suas casas em busca das causas de tal agitação. A polícia chama então por reforços, ao mesmo tempo que carrega sobre a multidão, de forma a afastá-la do local.
«Ao chegarmos à praça, aproximámo-nos da polícia e perguntámos se precisavam de alguma ajuda. No entanto, fomos recebidos com cassetetes, cães, insultos, entre outras medidas. Demorou algumas horas até que eles tenham chamado por nós», afirmou o líder comunitário e empregado municipal Daniel Ghirmai na posterior conferência de imprensa realizada pela Megafonen. «Fomos alvos dos seus insultos, tendo-nos chamado de ratos e putas. Eles atacaram toda a gente à sua frente, até velhotas. Eu própria fui derrubada por agentes de polícia», declarou Quena Soruco, residente de Husby e membro da Megafonen.
Enquanto a comunicação social se ocupava da vitória da Suécia no campeonato do mundo de hóquei em gelo, a noite caía e os incêndios deflagravam. Na noite seguinte, os incêndios espalharam-se para os subúrbios vizinhos de Husby. Este, por sua vez, encontrava-se ocupado pelo polícia e por meios de comunicação social, a transmitir em direto da «zona de conflito». Na terceira noite, as chamas haviam-se propagado a 15 subúrbios de Estocolmo. Passadas 24 horas, atingiam já os arredores de Estocolmo. À medida que os carros incendiados se tornavam numa espécie de epidemia, os media respondiam com pânico moral e o aparelho político iniciou uma competição pelo maior número de condenações. A postura política parecia alinhar numa velha rotina: medidas duras reivindicadas pela direita e apelos a um debate estrutural da parte da esquerda. A direita racista defendia a intervenção militar, tendo organizado patrulhas de vigilância e, em simultâneo, desenvolvido todos os esforços possíveis na etnização do conflito, descrito como uma revolta rácica. Quando os meios de comunicação social internacionais pegaram na história, o mote já estava pronto: «a falência do modelo multicultural atingiu a Suécia».
Sobre os acontecimentos, o periódico socialista libertário Arbetaren comentou o seguinte: «Conforme é demonstrado pelos acontecimentos, de Los Angeles (South Central) a Clichy-Sous-Bois, de Tottenham a Husby, este tipo de motins é ridiculamente previsível. Como de costume, o papel catalisador da polícia é mais do que óbvio». As autoridades polícias apontaram a Megafonen como instigadora da rebelião, ao que a associação respondeu que apenas havia sido responsável por evitar novos excessos por parte da polícia. Como se pode ler na sua declaração à imprensa: «Não é a Megafonen que está a provocar incêndios. Entendemos que não é este o meio de garantir mudanças a longo prazo. No entanto, sabemos que se trata de reações a problemas sociais. O desemprego, as escolas precárias, o racismo estrutural são as suas causas subjacentes».
FONTE: Por Mathias Wåg / Traduzido por Passa Palavra

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