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domingo, fevereiro 14, 2010

Elitizaram o samba

Jovens de classe média encabeçam as músicas do carnaval




Músicos natos, Ideval Anselmo, de 70 anos, e Zelão, de 60, cresceram nas rodas de samba e aprenderam a compor do mesmo jeito que as crianças a falar. As letras surgiam na cabeça e mais tarde naturalmente acabavam consagradas na Avenida São João, no centro de São Paulo, antigo palco dos desfiles paulistanos. Ideval escreveu 22 músicas, oito em parceria com Zelão, entre elas, Narainã, de 1977, que ganhou como o melhor samba-enredo, pela Camisa Verde e Branco, a penúltima escola a desfilar hoje no Grupo de Acesso no sambódromo do Anhembi, na zona

"Era fácil colocar um samba na avenida. Bastava levar sua música gravada numa fita cassete para a comissão julgadora", diz Ideval, metalúrgico aposentado, pai de sete filhos, considerado um dos maiores campeões de sambas-enredo de São Paulo. "A concorrência era pequena", conta Zelão, funcionário público, pai de dois filhos, que mora no Limão, zona norte.

O esquema mudou. As escolas transformaram o processo de seleção do samba-enredo numa disputa acirrada, com até 40 concorrentes. Se Ideval chegava na escola com muito samba no pé, uma fita cassete gravada na mão e nenhum dinheiro no bolso, hoje a nova geração de sambistas desembarca nas escolas com disposição de investir alto. "É preciso ter em média R$ 10 mil só para mostrar a música, que pode ou não virar tema da escola", diz o arquiteto Aquiles da Vila, de 33 anos, um dos quatro autores do samba-enredo Cacau: Um Grão Precioso que Virou Chocolate e Sem Dúvida Se Transformou no Melhor Presente!, que a Rosas de Ouro mostrou na madrugada de ontem no Anhembi.

Aquiles representa bem a nova leva de compositores, formada por profissionais liberais, de classe média, que encaram o samba como mais um hobby, e não como razão de vida. Pai de dois filhos, casado com uma pedagoga, o compositor do samba-enredo da Rosas de Ouro começou escrevendo para a X-9 Paulistana, meio sem querer. "Em 2001, fui nas eliminatórias para apoiar dois amigos compositores." E isso quer dizer torcer na quadra pelos irmãos gêmeos, Fábio Mattos, publicitário, e Fabrício, advogado, de 33 anos. "Eu me animei com a história e no ano seguinte viramos parceiros de letra."

Aquiles ficou sete anos concorrendo na X-9 e ganhou apenas em 2007, quando pela primeira vez uma de suas composições entrou no sambódromo. E, para chegar lá, aprendeu que é fundamental conquistar a comissão julgadora. "No ano passado, nas finais da Rosas, para vender o peixe, distribui 5 mil folhetos, mil bexigas e a mesma quantidade de CDs. Ainda contratei o Fred Viana (intérprete da Tucuruvi)." Aquiles e seus parceiros fizeram dez apresentações que foram verdadeiros shows nas seletivas.

Ideval estava entre os compositores concorrentes de Aquiles, mas foi eliminado na terceira apresentação. Ele levou um CD, com o registro do samba, e 2 mil filipetas com a letra. "Não tinha condições. Eu teria de levar uma torcida da favela, dois ônibus cheios e pagar o ingresso para todos", reclama.

O custo não é a única queixa dos veteranos. "Hoje, os carnavalescos dão muito palpite nas letras. Falei uma vez para o Joãosinho Trinta que se ele entendia tanto de samba deveria escrever música", diz Zelão. "Algumas palavras têm de estar na letra e não adianta querer escrever a mesma coisa de outro jeito. Não pode. Só que a letra fica ruim, difícil de cantar e de lembrar."

Seguir as instruções do carnavalesco faz parte das regras das escolas. "Os compositores não podem viajar muito", diz Emerson Nunes, diretor de Comunicação da Leandro de Itaquera. "Como o investimento é alto, aconselhamos que as letras sejam escritas por um colegiado de sambistas." O samba-enredo da Leandro de Itaquera, que se apresentou no começo da madrugada de ontem, foi escrito por 20 compositores.

"É impossível reunir tanta gente para escrever um samba", diz Zelão. "Alguns entram só com o dinheiro e não com o talento", explica Raphael Pinópolis Neto, de 29 anos, músico profissional, que estudou 16 anos em conservatório, e é veladamente um dos compositores mais recorrentes no carnaval paulistano. A primeira escola de Neto foi a Mocidade Alegre, onde começou tocando cavaquinho, em 1997. Cinco anos depois, virou compositor de samba-enredo e passou a escrever para outras escolas com pseudônimo. "Vale a pena, mesmo que não ganhe o melhor samba-enredo. Se somar a arrecadação dos direitos autorais, e outros itens, fatura-se cerca de R$ 40 mil por música."

Em 2005, Neto passou para a Império de Casa Verde, e ali ficou quase como se tivesse um cargo vitalício. "O presidente da escola extinguiu a eliminatória. No ano passado, fui ameaçado de morte." Neto achou melhor ficar de fora desta vez.

Hoje, o "hitmaker" Ideval comemora 40 anos de samba com um show na Casa de Francisca (Rua José Maria Lisboa, 190; 3052-0547, às 22h), no Paraíso, zona sul, sem ter construído patrimônio com o samba. "A minha verdadeira alegria era ver o povo cantando minha música. Isso me bastava."
FONTE: ESTADÃO

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