Uma reportagem intitulada “Gays são caçados nas favelas do Rio pelo tráfico e pela milícia”, escrita pelo jornalista Mahomed Saigg para o “O Dia”, do Rio de Janeiro, no dia 5 de julho, deu nomes e rostos para uma realidade que, apesar de constantemente denunciada, muitas vezes é menosprezada: ser parte da comunidade LGBT neste país é sinônimo de situação de risco.
Um risco muitas vezes letal, como há décadas o Grupo Gay da Bahia vem denunciando através de pesquisas que demonstram que o Brasil detém o vergonhoso recorde de ser o país onde mais se matam homossexuais: desde 1980, já foram contabilizadas 3.300 mortes, o que significa que um membro da comunidade LGBT é assassinado a cada dois dias.
Ao contrário do que a propaganda oficial e as ilusões alimentadas por alguns setores do movimento nos querem fazer acreditar, a tendência não está diminuindo: em 2008, foram 189 assassinatos; em 2009, 198 mortes; e, em 2010, o número saltou para 254.
A “novidade”, ainda mais sórdida, revelada pela reportagem (baseada em uma pesquisa feita pela ONG Conexão G, localizada na Maré) é que, nas comunidades empobrecidas, a comunidade LGBT está sendo cercada e brutalizada por todos os lados (pelas milícias paramilitares, pelos narcotraficantes e pelos agentes das malfadadas Unidades Pacificadoras), o que tem provocado uma situação ainda pior: todos os dias pelo menos um homossexual é agredido e muitos deles são mortos, literalmente, com requintes de crueldade.
O terrível quadro descrito pelo repórter foi baseado em relatos e histórias pra lá de reais. Cabe citar algumas delas.
“Estupro corretivo” para lésbicas
Vergonhosamente, são inúmeros os exemplos mundo afora de situações em que o estupro é utilizado como forma de “punição” ou “lição”. Basta lembrar as barbáries do Vietnã, os horrores da Bósnia ou os absurdos praticados por fundamentalistas de vários credos religiosos.
Dentro da comunidade LGBT, há milhares de casos de mulheres que foram agredidas e violentadas “para aprenderem a ser mulher”. Algo geralmente ainda mais violento (e não raramente fatal) no caso das mulheres negras, já que os machistas/racistas acreditam que particularmente estas mulheres devem ser punidas por não aceitarem o papel que o mundo capitalista lhes reservou: o de objetos sexuais.
Na reportagem, esta situação foi exemplificada por Patrícia, ex-moradora da Zona Sul do Rio que, durante oito meses, mudou-se para o Morro da Previdência para viver com sua namorada. Obrigada a sair da comunidade, Patrícia explicou o porquê da decisão: “Além de bater nos gays e travestis, os bandidos ficam ameaçando estuprar as lésbicas. Fazem um terror psicológico insuportável (...), dizem que a garota só se tornou homossexual porque não conheceu homens de verdade. E que darão ‘um jeito’.”
Experiência semelhante foi vivenciada pela comerciante Jucyara Albuquerque, moradora de Mesquita, na Baixada Fluminense. Assumida desde os 16 anos, Jucyara tem um longo histórico de agressões: “Já sofri muito por causa da minha orientação sexual. Certa vez cheguei a ser espancada por dois homens que me agrediram enquanto eu trabalhava. Eles simplesmente chegaram, começaram a me xingar porque souberam que eu era lésbica e partiram para cima de mim. Fiquei com o corpo todo machucado”.
A violência das ruas, na própria vizinhança
Vitimadas pela discriminação, pelo preconceito e, consequentemente, empurradas para a marginalidade (inclusive para a prostituição), travestis são vítimas preferenciais da violência homofóbica. Dentre os 198 mortos em 2009, por exemplo, 72 (59%) eram travestis.
Além da situação vulnerável, da impossibilidade de se esconderem dentro dos “armários” e, muitas vezes, da falta de apoio de setores do movimento LGBT (que também não escondem seus preconceitos), travestis são utilizadas como “alvos” nas ruas e, como a reportagem demonstra, não encontram sossego nem em suas próprias casas.
É o que relata Marcela Soares, moradora da Favela do Timbau, na Maré e que (infelizmente como uma exceção à regra que expulsa travestis também das escolas) é formada em Moda. Afirmando que teve muitas amigas torturadas e perdeu outras tantas, assassinadas, Marcela constata: “Isso já está se tornando comum nas favelas. E a gente não pode fazer nada senão morre também”.
Expulso, de novo, de casa
Ser expulso de casa é outra das experiências que fizeram e fazem parte da vida de milhões de LGBT’s. Em um ambiente mergulhado na violência institucional (das forças militares e policiais) e criminosa (dos narcotraficantes e das milícias), a forma de expulsão pode ser literalmente explosiva.
O professor Carlos (nome fictício), por exemplo, em 2007 viu sua casa, na Vila Cava (subúrbio carioca), ser incendiada e todos os seus bens consumidos pelo fogo: “Estava dormindo e acordei com a casa em chamas. O fogo já estava por toda parte (...) Na rua, havia várias pessoas que, mesmo com meus pedidos de ajuda, permaneceram de braços cruzados. Alguns até dizendo que ‘veado’ tinha que morrer mesmo”.
“Veado tem que morrer”
Já houve quem dissesse que o projeto das chamadas Unidades Pacificadoras que estão ocupando os morros cariocas é impor a “paz” através da eliminação (física, inclusive) de qualquer voz de protesto ou questionamento.
Algo evidente no caso dos LGBT´s, como exemplifica o relato do cabeleireiro Vando Silva, morador do Morro Santa Marta, ele próprio vítima da UPP: “Não aguento mais tanta repressão. Não consigo mais ser eu mesmo! Antes da ocupação, também tínhamos problemas, mas agora a situação piorou muito, porque com a polícia não tem conversa, estamos sempre errados. Eles me bateram porque disseram que ‘veado’ tinha que morrer”.
Ainda segundo o relato, se já é difícil para os moradores em geral denunciar as agressões e abusos, no caso de LGBT´s a situação é ainda pior, já que, além da tradicional recusa por parte das forças policias e da “justiça” em registrar os casos de homofobia, há o temor permanente de represálias.
Quanto o explorado também oprime...
Há uma crença de que o preconceito seja algo diferente nas comunidades mais pobres. Afinal, como as pessoas se movem por necessidades muito mais concretas (a sobrevivência, essencialmente), que demandam vínculos de solidariedade mais estreitos, não haveria tanto espaço para a discriminação.
Isto, no entanto, é apenas parte da realidade. Uma parte muito pequena, lamentavelmente. A verdade é que a homofobia corre solta, e a largos passos, nas comunidades pobres. E, por isso mesmo, tem que ser discutida e combatida.
O que, de forma alguma, significa perder a perspectiva de classe que está intimamente relacionada a toda esta história. Ou seja, o fato de gente pobre, majoritariamente negra, e, inclusive, mulheres discriminarem e atacarem homossexuais de sua própria classe não pode ser visto como uma “característica” da classe e muito menos como a principal fonte da homofobia.
As nefastas práticas relatadas pela reportagem são os resultados de séculos de propaganda ideológica feita pelos verdadeiros responsáveis por estes crimes: a classe dominante, seus meios de comunicação, suas escolas, suas instituições políticas e religiosas que, há séculos, “educam” a população a odiar, menosprezar e, se possível, eliminar gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais.
Por isso mesmo, por mais que seja urgente denunciar e combater a situação relatada, acima de tudo é necessário fazer um trabalho de esclarecimento e discussão política nestas comunidades, localizando a origem e as razões da opressão, identificando os verdadeiros inimigos (no caso, tanto as milícias, quanto as UPP´s e os narcotraficantes) e conquistando esta população para lutar, juntamente com todos os demais oprimidos e explorados contra o sistema que cria estas situações. Uma tarefa nada fácil. Mas fundamental, até mesmo porque de seu sucesso dependem as vidas de milhares de pessoas.
Entre a cruz e a espada, a única saída é a luta
Analisando os dados, Gilmar Santos, presidente do Grupo Conexão G, que realizou a pesquisa, não tem dúvidas de que os números da violência podem ser muito maiores: “A opressão contra os homossexuais nas favelas vem aumentando a cada dia. Nas pesquisas de campo a gente descobre que a maioria dos casos não é registrada. E, mesmo quando as vítimas resolvem procurar a polícia, muitos preferem não revelar sua orientação sexual por temer mais violência”.
Diante dos números, o presidente do Grupo Gay da Bahia, Marcelo Cerqueira, ameaçou denunciar o governo brasileiro à Organização das Nações Unidas e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos, responsabilizando-o por aquilo que ele chamou de “homocausto” que está ocorrendo no Brasil.
Uma iniciativa prá lá de louvável, mas cuja eficiência todos nós conhecemos. Não só porque não temos a mínima confiança no compromisso da ONU no combate à opressão, mas também porque já sabemos o quanto o governo brasileiro está preocupado com o tema. Basta lembrar os destinos de dois de seus “projetos”, o “Brasil sem homofobia” e o “kit anti-homofobia”.
Por isso mesmo, a única saída é a luta. Tanto contra a “espada” impiedosa levantada pelas polícias, milícias, narcotraficantes e homofóbicos de todos os naipes, quanto a “cruzada sagrada” que, com a benção de Dilma, do Congresso e todas as instituições da classe dominante têm alimentado a homofobia que, agora, vemos explodir nas comunidades carentes do Rio.
FONTE: OPINIÃO SOCIALISTA
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