Se há um denominador comum a todas as manifestações que agitam o Oriente Médio, o Norte da África e a Europa mediterrânea, é o fato de que elas são impulsionadas pelos jovens, com todas as suas decorrências: são rebeliões ousadas, generosas, irreverentes e sem nenhum compromisso com os velhos partidos e ideologias. Parece irresistível recorrer a uma analogia com 1968. Talvez isso possa ser feito, mas apenas num sentido muito amplo e superficial. As diferenças são profundas.
O Muro de Berlim, símbolo da divisão do mundo em 1968, ruiu há tempos, mas o capital não cumpriu a sua promessa de uma nova era de prosperidade.
Partidos autodenominados socialistas, socialdemocratas e de trabalhadores chegaram ao poder apenas para demonstrar sua capacidade de gerenciar com grande competência a crise permanente do capital.
O preço da comida dispara e a fome aumenta na mesma proporção (em 2010, o mundo superou a cifra de 1 bilhão de famintos), o meio ambiente dá sinais sérios de esgotamento, a crise financeira iniciada em 2007 perdura e gera mais desemprego, mesmo nos países centrais do capitalismo. Em contrapartida, proliferam e prosperam as indústrias da guerra, do tráfico de armas, drogas e de seres humanos. A barbárie mostra a sua face.
Claro que os sinais da barbárie, anunciados por Auschwitz, pelo Gulag e por Hiroxima, já se manifestavam em 1968. Os Estados Unidos despejavam milhares de toneladas de bombas e de armas químicas sobre o Vietnã, a União Soviética vivia sob o terror stalinista, ditaduras militares proliferavam em todo o planeta e o holocausto nuclear estava no horizonte de possibilidades posto pela Guerra Fria. Apesar de tudo, havia uma certa percepção – ou o desejo - de que o fim da oposição entre os dois grandes blocos poderia, eventualmente, oferecer alternativas para o conjunto da humanidade, ainda mais numa época em que desabavam os últimos impérios coloniais.
O desenvolvimento das lutas contra o racismo nos Estados Unidos de Martin Luther King parecia indicar a possibilidade de avanços concretos, no sentido da conquista de novos direitos sociais e políticos, mesmo no coração do sistema capitalista. Ninguém imaginava, ainda, o desmantelamento do Estado de bem estar social (a era Thatcher – Reagan seria anunciada apenas no final dos anos 1970), não se falava em destruição do planeta pela tecnologia (a não ser no caso de um desastre ou guerra nuclear) e a ONU alimentava a meta de erradicar a fome do planeta. De 1968 para cá deu tudo errado.
Sim, houve claros progressos em ciência e tecnologia. Mas, mais do que nunca, cumpriuse a lúcida sentença de Walter Benjamin: “todo documento de cultura é também um documento de barbárie”. A área dos alimentos é a que mais claramente demonstra isso. Nunca houve tanta comida, mas a fome aumenta. Em 1950, produzia-se 2.250 calorias por dia para cada um dos 2,5 bilhões de habitantes; hoje, quando a população quase triplicou, produz-se 2.750 cdh. Apesar disso, a ONU admite ser impossível estabelecer a meta de acabar sequer com a metade da fome mundial, o que significa condenar pelo menos 500 milhões de seres humanos à morte por inanição. A fome aumenta porque a tecnologia não é empregada para produzir comida, mas sim mercadoria: só come quem paga.
As novas tecnologias têm matriz bélica. São concebidas para aumentar a eficácia, a produtividade, “atingir o público alvo”, mesmo que isso signifique destruir o resto. Elas trazem embutidas o funcionamento de um mundo que oprime e isola o ser humano. Aprimora-se a capacidade técnica de trocar informações, enquanto as pessoas reais, de carne e osso, são condenadas a vidas cada vez mais isoladas, fragmentadas e sem sentido. Cria-se a ilusão de uma “sociedade globalizada”, mas a imensa maioria dos seres humanos vive à margem de tal sociedade. A contrapartida é a formação de feudos fortemente armados e guardados pelos que dispõem de capital:condomínios fechados, áreas exclusivas, carros blindados. As novas tecnologias, resultado e suporte dessa lógica, realizam a sentença da “dama de ferro” britânica: não há sociedades, há apenas indivíduos.
A “revolução árabe” não foi causada pelas redes sociais, como pretendem alguns ideólogos do admirável mundo novo, mas teve como principal motivação a fome e a miséria. As revoltas na Grécia (o primeiro a soar os dobrões fúnebres da Zona do Euro), em Portugal e na Espanha, assim como as marchas de Madison (Wisconsin), em abril, traduzem o desespero da juventude diante do desemprego brutal, dos ataques a conquistas sociais históricas e da falta de perspectivas. Nas periferias das metrópoles em que as revoltas ainda não assumiram um contorno político tão nítido, os jovens se chocam todos os dias com a polícia. Há no planeta, indiscutivelmente, uma situação latente de explosão e sede de transformação.
Não por acaso, no Brasil, uma das manifestações reprimidas com maior violência e brutalidade nos últimos anos foi uma marcha pela legalização da maconha, realizada no dia 21 de maio, na avenida Paulista, em São Paulo (e em outras cidades e capitais). Uma das causas óbvias da ferocidade repressiva explica-se pelo fato de que a legalização acabaria com o comércio ilícito da droga, fonte de lucro e meio de controle policial sobre os jovens, especialmente os mais pobres. Além disso, as forças da ordem, hoje como em 1968, são absolutamente hostis aos que reivindicam as liberdades do corpo e o direito de opção.
Os partidos tradicionais nada têm de concreto a dizer sobre as reivindicações da juventude, incluindo os ditos “de esquerda” (socialistas e social democratas), que, há muito, foram absorvidos pelo capital e integrados ao seu gerenciamento. Em contrapartida, os movimentos da juventude não ostentam estruturas organizadas visíveis, mas mostram que há espaço para novas formas de organização. Nisso reside, a um só tempo, a tragédia e a esperança. A tragédia decorre da falta de estratégias claras contra um inimigo extremamente bem organizado e armado. A esperança vem do fato de que, por isso mesmo, ninguém controla essa onda mundial. O problema é saber se as revoltas atuais, no Brasil e no mundo, serão finalmente, absorvidas pelo mercado e por ideologias nefastas como a do pós-modernismo (como aconteceu com as energias liberadas em 1968), ou se encontrarão os caminhos para uma transformação duradoura da vida.
FONTE: caros amigos / José Arbex Jr. é jornalista
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