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segunda-feira, novembro 24, 2008

É correto ser politicamente correto?

Embora a linguagem politicamente correta seja invenção norte-americana, expressões eufêmicas já existem no português há bastante tempo
Aldo Bizzocchi

A língua não serve só para comunicar. É também poderoso instrumento de persuasão e manipulação. Afinal, dominar pessoas por meio de discursos é mais eficiente do que manter um soldado em cada esquina. E, muitas vezes, a manipulação ideológica se oculta sob um manto de boas intenções. É o caso da chamada linguagem politicamente correta (PC, para simplificar).
Tempos atrás, o governo Lula lançou o documento Politicamente Correto & Direitos Humanos, mais conhecido como "cartilha do politicamente correto", com 96 palavras ou expressões pejorativas, como "beata
", "comunista", "funcionário público", "preto" e "anão". Essa iniciativa foi, à época, duramente criticada na imprensa.
Antes disso, já havia sido apresentado um projeto de lei determinando que todo texto oficial distinguisse "cidadãos" e "cidadãs". (Lembra o "brasileiras e bra­si­lei­ros" de Sarney, não?) Esse projeto foi questionado por representantes da sociedade civil, incluindo lingüistas e gra­má­­ticos, já que em português o gênero mas­culino também cumpre o papel do chamado gê­nero complexo, que serve pa­ra nomear seres de ambos os sexos. Ou
seja, a palavra "cidadãos" já subentende as cidadãs.
Mas por que iniciativas desse tipo, aparentemente nobres e justas, terminam torpedeadas até por intelectuais?Primeiro, é impossível legislar sobre a língua, ao menos em regimes democráticos (nos ditatoriais, é possível até proibir línguas, como fez Franco, na Espanha, com o catalão e o basco). Segundo, esse tipo de interferência do Estado na fala das pessoas é fascista.
Segundo o filósofo francês Vladimir Volkoff, autor de La Désinformation par l'Image, o PC é resultado da mistura dos restos de um cristianismo degradado, um socialismo reivindicativo, um economicismo marxista e um freudismo em permanente rebelião contra a moral do ego. É a observação da sociedade e da história em termos maniqueístas, decorrente da decadência do espírito crítico, e de uso comum entre intelectuais desarraigados. Diz ele: "Se compararmos a demolição do comunismo com uma explosão atômica, diremos que o politicamente correto constitui a nuvem radioativa que acompanha a hecatombe".
Pesos e medidas
Em A Era dos Direitos, o sociólogo italiano Norberto Bobbio afirma que nunca se falou tanto em direitos (humanos, civis, dos animais etc.) quanto hoje. O conceito de direitos humanos e civis remonta aos filósofos iluministas e à Revolução Francesa, mas foi retomado com força após a Segunda Guerra e o Holocausto, em 1948, ano em que a ONU lançou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Um dos corolários da ideologia do respeito aos direitos humanos foi a decisão de instituir uma linguagem eticamente adequada.
Os Estados Unidos tomaram a dianteira na defesa dos direitos humanos na década de 60, com o movimento pelos direitos civis, que questionava leis racistas. Mas foi no governo Jimmy Carter, na década seguinte, que a preocupação se intensificou. É mais ou menos nesse período que surge na língua inglesa o vocabulário PC (e começam também a pipocar ações judiciais absurdas com base nessa ideologia).
O fim da ditadura militar no Brasil levou a um extremismo oposto (se antes tudo era proibido, agora é proibido proibir). A Constituição de 1988 é reflexo disso. Numa época de radicalismo às avessas, vale lembrar a máxima latina: virtus in medio (a virtude está no meio; ou: nem tanto ao mar nem tanto à terra).
Afinal, nossa língua já oferece palavras perfeitas para expressar noções como "cego", "surdo", "aleijado"... Os próprios clássicos fazem um nada pejorativo uso desses vocábulos. Ou será que Machado de Assis e Eça de Queirós viraram politicamente incorretos? Por que mascarar a realidade com expressões mais longas e menos precisas? Se um deficiente (ou "especial") é alguém cujas aptidões e características físicas estão abaixo do normal, então, do ponto de vista semântico, um míope não deixa de ser deficiente visual; um calvo (ou melhor, careca) também é deficiente físico, e assim por diante.
Da mesma forma, por que se referir a negros como "afro-descendentes" e não a bran­cos como "euro-descendentes"? Esse eufe­mismo criado pelos americanos e in­tro­duzido no português é, além de tudo, equivocado, como todos os termos PC: um brasileiro branco descendente de egípcios brancos é afro-descendente, não é? Aliás, se a África é o berço da humanidade, então ge­neticamente somos todos afro-descendentes
Sem necessidade
A verdadeira democracia se apóia em direitos iguais a todos. Mas há distância entre democracia e demagogia. (Aristóteles apontava a segunda como a degeneração da primeira.) O que temos em muitos países são discursos e políticas demagógicas em relação às minorias (que às vezes são numericamente maiorias), criando leis cosméticas e mudando só os nomes das coisas, em vez de combater a desigualdade, com educação, serviços públicos de qualidade e redistribuição de renda.
Exemplo de lei demagógica: no Bra­sil, chamar um negro de "negro" (embora seja essa a sua cor) é crime inafiançável (racismo), mas matar um negro - ou qualquer pessoa - é afiançável (homicídio). Ou seja, o que a lei diz nas entrelinhas é: se você não gosta de negros, mate-os, mas não os chame de negros.
Embora a linguagem PC seja invenção americana que a mídia brasileira veicula acriticamente, os EUA não detêm monopólio da hipocrisia: expressões eufêmicas já existem no português há bastante tempo. Chamar o negro de "moreno" ou "de cor", embora pareça atitude de respeito, esconde um racismo: se evitamos usar "negro", é porque consideramos ser negro um defeito. Apesar da aparente boa intenção, a linguagem PC só contribui para acentuar o preconceito.
É claro que há linguagem adequada a cada situação. Nenhum jornal vai referir-se ao desfile do orgulho gay como "passeata de bichas na Paulista" (embora um jornal tenha noticiado "mulherada se reúne em Campinas" sobre encontro de feministas
Trata-se de usar a linguagem com respeito, não com falsa piedade. Nesse sentido, o conceito de "politicamente correto" deveria ser substituído pelo de "lingüisticamente adequado".

Linguagem e manipulação
É possível e relativamente fácil manipular a opinião pública por meio de palavras e expressões como "exclusão", "tolerância", "não-violência", que representam conceitos ma­leáveis ideologicamente. Afinal, em relação a quem tem telefone e computador, quem não tem é excluído. Mas, em relação a quem tem casa com piscina e jatinho, quem não tem não é igualmente excluído? Enfim, qual o critério para definir o essencial ou o supérfluo?
Em sociedades multiculturais e multiétnicas como a nossa, prega-se a tolerância. Mas tolerar é diferente de amar: tolerar é não agredir quem, no fundo, odiamos. Do mesmo modo, não-violência é diferente de paz ou fraternidade: a palavra "não-violência" remete a violência e é, portanto, só violência reprimida.
O que a linguagem PC faz é acobertamento ideológico pelo discurso, camuflando o problema em lugar de resolvê-lo (ao darmos nomes bonitos a coisas feias, elas nos parecerão menos feias). Assim, "recessão" passa a "crescimento econômico negativo", "morte" vira "cessação das atividades vitais" e "morrer" é "ir a óbito". "Favela" se torna "comunidade carente" e "pobreza", "exclusão social". Quem tem cabelo pixaim ou carapinha pode ir a um salão especializado em "cabelo étnico". Na linguagem corporativa, chefe virou "líder" e empregado agora é "colaborador".

Invenção postiça

O povo, mesmo, satiriza tais expressões porque percebe o ridículo delas (vide o "tucanês" de José Simão) e aí passa a denominar anão de "pessoa verticalmente prejudicada" e careca de "deficiente capilar". O próprio povo não usa denominações bizarras: o morador de favelas se diz "favelado"; o pobre se refere à sua condição como "pobreza", não "exclusão" ou "carência". Enquanto ONGs fazem o policiamento lingüístico da imprensa à caça do politicamente incorreto, os próprios negros de classe baixa se tratam uns aos outros e a si de "negro", "preto" ou "negão", sem conotação pejorativa, mas antes carinhosa.
A linguagem PC é pseudodemocrática: em nome da preservação da dignidade e dos direitos humanos, exerce patrulhamento ideológico e caça às bruxas típicos dos regimes autoritários, vendo preconceito em tudo (por exemplo, ao achar que a expressão "a coisa tá preta" é referência pejorativa à raça negra).
Palavras como "democracia", "cidadania", "inclusão social", "direitos humanos" e outras, de tão repetidas, tornam-se desgastadas e vazias de sentido ou, pior, passam a significar o contrário do que diziam originalmente. Não por acaso, é nas ditaduras que palavras como "democracia" e "cidadania" são mais usadas, sempre com sentido distorcido. É por isso que Hugo Chávez fala tanto em democracia em seus discursos. Portanto, o fato de tais palavras estarem tão em voga no Brasil atual deve ser para nós um sinal de alerta.
Aldo Bizzocchi é doutor em Lingüística pela USP e autor de Léxico e Ideologia na Europa Ocidental

3 comentários:

Anônimo disse...

Texto polêmico, mas muitíssimo interessante. Nele, o autor menciona a Cartilha do Politicamente Correto, elaborada pela SNDH, no governo Lula, mas criticada até mesmo pelo presidente na época da publicação. Antes disso, porém, o político Aldo Rebelo já havia elaborado um Projeto de Lei prevendo multa ao uso abusivo de estrangeirismos em nossa língua. Tais medidas, por certo, com a intenção de fazer vingar uma certa "homogeneização" ou "pureza" da língua _ como se tal intento fosse possível!
E sabem por que nenhum dos documentos vingou? Porque a "patrulha ideológica" por meio da língua (entendendo-se aqui língua apenas como um instrumento a favor de determinada ideologia, e não de outra, conceito, aliás, extremamente limitado) não "representa" minorias, excluídos, etc e tal. Não é origem nem reflexo de preconceitos por si mesma.Não existe uma "designação" neutra, a-política,criada aleatoriamente mas, por certo, também sua força não alcança uma dimensão tal capaz de alterar a própria realidade.
Cabe, então, questionarmos: é alterando o discurso que se mudam as práticas sociais ou o contrário disso?
O autor do texto postado já nos deu uma indicação que me parece um tanto sensata: em tempos de PC, "Nem tanto ao céu nem tanto à terra". Mas como saber o exato limite entre os dois?
Reside nesse aspecto a nossa dificuldade: não sabermos exatamente até onde estamos "agredindo" quando usamos a linguagem ou "mascarando" preconceitos!
Por óbvio que precisamos rever nossos preconceitos e tentar superá-los. Mas a linguagem empregada nas nossas relações cotidianas é tão-somente objeto de reflexão, e não "camisa-de-força" do que se convencionou denominar politicamente correto (PC).
Toda designação ("anão" ou "pessoa verticalmente inclinada" ou, ou, ou, ...) é política.
Alterem-se as políticas de "bom" (definição vaga e também política!) relacionamento e esses relacionamentos adquirirão uma nova roupagem. Tão simples assim?
E o inverso: alterem-se os discursos e as práticas sociais serão alteradas. Querem dinâmicas mais mecanicistas do que essas?
Um anão, na época da criação da Cartilha acima mencionada, quando entrevistado por uma emissora de televisão, afirmou preferir continuar sendo chamado de anão, mas esperava que os políticos e as autoridades públicas em geral se preocupassem mais em colocar à disposição dos anões um número maior de telefones públicos adaptados à estatura deles!
Em suma: é preciso bom senso.
O autor do texto postado nos dá exemplos dos dois extremos. Que bom texto! Reflitamos sobre ele!
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D. Obá, se me permite, gostaria de manifestar meu contentamento pela criação deste blog. Os textos são instigantes, polêmicos, superando a mera informação.
No entanto, quando comento, sinto-me tão sozinha... Houve divulgação do blog? Soube de sua existência por meio de um e-mail, mas não considero o suficiente. Além disso, como deve fazer o leitor se quiser dar sugestões, informar sobre algum evento, fazer reclamações ou elogios? Existe um e-mail para isso?
Deixarei o meu e a sugestão de que se crie um e-mail para os leitores do blog poderem se comunicar com a equipe.
Meu e-mail: tisabrandao@gmail.com
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Teresinha Brandão

Anônimo disse...

Muito, muito bom mesmo!

Anônimo disse...

Excelente artigo!
Sinceramente, eu nunca fui muito fã do politicamente correto, por justamente concordar que por trás dele sempre existe um sentimento de piedade ou até mesmo de medo!