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quinta-feira, maio 27, 2010

Aventureiros do Enem

Meses depois de terem percorrido milhares de quilômetros atrás do sonhado curso superior, calouros das federais fazem balanço




Ter de se ambientar em uma cidade desconhecida, gastar a sola do sapato para achar um imóvel e enfrentar a solidão. Nada disso costuma impedir jovens de trilhar a vida acadêmica longe de casa. Mas este ano a chance de se matricular em universidades de todo o País usando a nota do Enem turbinou o número de estudantes que decidiu fazer as malas para estudar.


Mesmo com os problemas graves registrados durante o cadastramento pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu), o resultado foi inédito. Segundo o MEC, do total de aprovados nas 51 instituições federais que adotaram o Enem – e ofereceram ao todo 47,9 mil vagas –, 25% deixaram seus Estados de origem.


O Estadão.edu procurou, em todo o País, alunos que andaram milhares de quilômetros para cursar a faculdade. Passado o período conturbado da mudança, o balanço feito pela maioria desses estudantes é positivo. Confira abaixo as histórias.


Brasília (DF)-Manaus (AM)

Rio de Janeiro (RJ)-Manaus (AM)

O brasiliense Adriano Silva, de 29 anos, que já vagou pelas ruas e morou num albergue de Manaus.Adriano já tinha trabalhado como missionário da Igreja Católica na Região Norte em 2007. Passou um ano visitando de barco comunidades ribeirinhas. “Queria ter a chance de conhecer melhor a Amazônia.” Por isso, quando passou em Engenharia Florestal na Federal do Amazonas, não pensou duas vezes antes de pedir as contas numa empresa de telecomunicações e seguir para Manaus.


“Quando fiz a matrícula, a atendente perguntou sobre a residência. Disse: ‘Moça, acabei de chegar de Brasília, não conheço nada aqui.’ Ela respondeu: ‘Então você vai morar na floresta amazônica mesmo’.” O universitário alugou quarto numa pousada. Até que o dinheiro da rescisão acabou e ele ficou na rua. Adriano procurou um albergue, mas ele estava lotado de haitianos refugiados do terremoto. No segundo albergue, conseguiu vaga, mas o medo de pegar alguma doença – Adriano diz que ratazanas roçavam seu braço à noite – fez com que procurasse ajuda na universidade.


Descobriu uma moradia para alunos carentes, a Casa do Estudante, onde vive hoje. “Nunca duvidei de que tudo daria certo”, brinca. “E compensou, o curso é bem versátil. Você estuda várias áreas: matemática, química do solo. Não penso em voltar para Brasília. Aqui precisa de mão de obra, é uma cidade em crescimento.” Caloura como Silva e carioca de nascimento como os pais, Raissa Alcântara, de 19 anos, filha de pai militar, não conhecia Manaus, mas queria fazer engenharia florestal. Ela se diz sortuda por seu pai ter sido transferido há um ano para a capital. “Já moramos em vários lugares, mas um ano atrás, meu pai foi transferido para Manaus e já comemorei. Fiquei um ano morando com minha tia no Rio para acabar a escola e passei no vestibular por conta do Enem”, diz. Raissa já avisou ao pai militar que, se ele for transferido, ela vai ficar na cidade para concluir o curso. “E quem sabe viver aqui, com esse laboratório todo ao redor creio que não vai faltar trabalho”. “Meus amigos no Rio tinham preconceito sem conhecer a cidade, dizendo que aqui não teria nada para fazer, mas tem sim e nem estou sentido falta da praia. Como está todo mundo começando o mesmo curso, todo mundo se ajuda, convida para festas”, diz Raissa.


Salvador (BA)-Brasília (DF)

César Costa Carvalho, 19 anos, é filho único de uma família de classe média baixa do bairro popular de Cajazeiras, em Salvador. Nem o fato de o curso de Relações Internacionais inexistir na Universidade Federal da Bahia (Ufba) o fez desistir do seu objetivo, que é se formar em Relações Internacionais.Segundo ele, os pais estão se virando como podem para mantê-lo. O gasto médio passa de R$ 1 mil. “Reconheço que fica muito caro para eles, mas vou saber recompensá-los por esse investimento”, promete. Enquanto cursava o último ano do Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet) na capital baiana, se inscreveu no Enem, focando uma vaga na Universidade de Brasília (UnB). Obteve nota suficiente, mas esbarrou no número limitado para cotista. “Sei que estou entre os dez, não sei exatamente qual a minha classificação”, diz.


Sem desanimar, Carvalho conseguiu uma vaga na Universidade Católica, em Brasília. Submeteu-se a uma prova de seleção para obtenção de bolsa de estudo e conquistou uma das duas integrais oferecidas pela universidade. Ele não desistiu de ser chamado pela UnB mas, paralelo ao curso na UCB, frequenta um pré-vestibular para prestar um novo exame na universidade federal. “Os primeiros dias foram muito difíceis. Sem conhecer ninguém, numa cidade completamente diferente da minha em tudo, até no clima. O modo de viver das pessoas em Brasília é muito diferente, são mais frios, mais individualistas. Ainda sinto muita falta de tudo na Bahia, embora já tenha feito amizade com alguns colegas de faculdade”, desabafa César, que nem pensa em voltar.


Morando num pensionato, ele enfrenta uma longa jornada de ônibus ou metrô, até a cidade satélite de Taguatinga, para frequentar a universidade. Está na quarta moradia desde que chegou a Brasília, há quatro meses. “Não me ambientei nas duas primeiras repúblicas e meu pai, quando veio me visitar, achou a terceira muito apertada, mal cabia uma cama. Agora, encontrei um local mais espaçoso, onde também oferecem alimentação e lavagem da roupa, ficou bem melhor.” “Adorando o curso”, ele diz que a maior dificuldade sem sombra de dúvidas é a saudade da família driblada com ligações telefônicas diárias. Ele e os pais escolheram um plano de serviço oferecido por uma operadora de telefonia móvel com direito a ligar gratuitamente para determinados números. Outra dificuldade é a falta de lazer, lhe faltam tempo e dinheiro para tanto. "Mas, eu vim para Brasília com o objetivo de estudar e tenho me dedicado a isso. As aulas no cursinho incluem os finais de semana, não sobra tempo, mesmo", conforma-se e conclui: "É o objetivo de minha vida, por isso tudo já está valendo à pena".


Belém (PA)-São Paulo (SP)

Nascido em Belém, Felipe cursa licenciatura em Ciências na Unifesp, em Diadema, ABC paulista. Além dos desafios enfrentados por qualquer calouro, esbarrou em outros. Nunca tinha saído do Pará. Aliás, nunca tinha andado de metrô. “Foi como saltar num poço de areia movediça. É como se eu tivesse 3 meses de idade, começando tudo de novo.” Na decisão de se mudar, pesou o status da Unifesp. “Quando vi que a nota no Enem era boa, percebi que dava para fazer qualquer coisa na Unifesp. Optei pela licenciatura porque gosto dessa história de ser professor.” Uma tia que mora em São Paulo o encorajou a se mudar. Hoje, ele mora no bairro Parque Boturuçu, zona leste da capital.“Vi mesmo a cara de São Paulo quando fui à Avenida Paulista. Fiquei abestalhado.” Mais ambientado, Felipe ainda estranha o excesso de gírias do vocabulário dos colegas paulistanos.“Talvez eu seja muito valorizador da cultura antiga.” Do curso, Felipe não se queixa, embora esteja achando puxado. “Todo mundo acha licenciatura fácil. Não é.” As aulas vão de segunda a sábado. “Às vezes até dá vontade de largar o curso, por causa da família, dos amigos. Mas acabo ficando, porque essa experiência vale a pena.”


Teresina (PI)-Bagé (RS)

Belo Horizonte (MG)-Bagé (RS)

Ao chegar a Bagé (RS), à meia-noite, o calouro de Engenharia de Energias Renováveis e Ambiente da Federal do Pampa (Unipampa) Auridian Fernandes de Souza, de 25 anos, dormiu no banco da rodoviária. Piauiense, lá conheceu dois estudantes, forasteiros como ele, que o levaram para uma pensão. Tempos depois, conseguiu alugar com três colegas um apartamento. Como os quatro não têm dinheiro para equipá-la, a república é improvisada: eles dormem no chão, tomam banho frio e não têm geladeira, fogão ou guarda-roupa.Os apertos de Auridian começaram ainda em Teresina. Sem dinheiro nem para pagar a passagem aérea, juntou R$ 300 vendendo rifas de cestas de chocolate. “Por causa da correria do início, não consegui manter o foco nas aulas”, diz, preocupado com as notas.


A situação melhorou com a Bolsa Instalação, ajuda em cota única de R$ 300 dada pela Unipampa ao aluno que comprovar vulnerabilidade socioeconômica e tiver saído de cidades a mais de 500 quilômetros de distância. "Agora vou poder estudar em paz.” O mineiro de Belo Horizonte Marcos Vieira, de 24 anos, é colega de república de Auridian. Filho de um eletricista e uma faxineira, também desembarcou em Bagé com pouco dinheiro no bolso depois de conseguir vaga no curso de Letras da Unipampa. “Aqui falta transporte e os aluguéis são caros.” A demanda por imóveis cresceu bastante não só por causa da chegada de estudantes, mas também de técnicos e operários que participam da construção de uma termoelétrica.


São Luís (MA)-Curitiba (PR)

Para o goiano Saulo Penha, de 18 anos, a maior dificuldade não é a falta de dinheiro, mas o clima. Depois de morar por sete anos em São Luís (MA), onde as temperaturas superam facilmente os 30 graus, Saulo estranhou o outono gelado de Curitiba. Os termômetros já marcaram 7,4 graus e podem cair abaixo de zero no inverno. "Sinto falta da praia.”


Matriculado em Engenharia Civil na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Saulo já tinha morado em outras cidades, mas sempre com os pais. A distância de mais de 3 mil quilômetros é compensada apenas pelos telefonemas quase diários para a família. “Morar longe é bem complicado. Nunca tinha nem tentado lavar roupa antes.” O pai, engenheiro civil que trabalha atualmente em Angola, aproveitou as férias em março para acompanhar o filho até Curitiba e o ajudou a alugar um apartamento. Apesar das dificuldades, Saulo não se arrepende de ter optado pela UTFPR. “A faculdade é melhor e dá mais oportunidades.”


São Bernardo (SP)-Ouro Preto (MG)

Pouso Alegre (MG)-São Paulo (SP)

Bruna Silva, de 19 anos, e Damaris Cristina Peixoto, de 18 anos, fizeram caminhos inversos. Bruna deixou São Bernardo, no ABC, para estudar na Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). “Se eu fosse de Belo Horizonte, poderia ir para casa todo fim de semana”, lamenta. Só dá para a estudante de Filosofia ir para casa nas férias ou em feriados prolongados. Apesar da saudade, todo o resto, diz Bruna, é vantagem. “A gente conhece outro Estado, uma cultura diferente e amadurece rápido.”


Mineira de Pouso Alegre, Damaris faz Ciência e Tecnologia na Federal do ABC, em São Bernardo, onde mora com uma irmã. Mas isso não significa que a vida tem sido fácil. “Quem mora aqui não percebe como é difícil conhecer tudo. É uma correria, vários ônibus que vão e vêm para muitos lugares. Na minha cidade era só uma referência, a avenida principal.” Um dos fatores que prejudicam a adaptação de Damaris é o fato de ela não ter planejado estudar longe de casa. “Não estava me preparando para o vestibular, não me preocupava muito. Quando saiu o resultado, vi que a nota era boa e fui descobrir o Sisu.”


Comercinho (MG)-Garanhuns (PE)

Djeiel Ferreira França, de 18 anos, viveu uma situação parecida. Quando prestou o Enem para Engenharia de Alimentos, ele não imaginava que trocaria sua cidade, Comercinho (MG), município com menos de 10 mil habitantes, por Garanhuns, terra do presidente Lula, no agreste pernambucano. A média de Djeiel no exame não foi suficiente para garantir uma vaga nas federais mineiras de Lavras ou Viçosa. Entrou na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) após um remanejamento. Só então foi pesquisar algo na web sobre a universidade e Garanhuns, que, com 130 mil habitantes, é bem maior que Comercinho.


Djeiel já tinha estudado fora, fez o curso técnico de Agroindústria em Salinas (MG). Na época, porém, via a família todo fim de semana. “Nunca tinha morado sozinho. Ainda é um choque.” Ele vive num quarto simples de hotel, enquanto disputa vaga na residência da federal. Come em restaurantes populares, em regime de total economia – o pai está desempregado e a mãe, professora, banca as despesas. Sobre o curso, de cinco anos de duração, o mineiro afirma que há muito a melhorar. “Tem pouca aula prática. Mas valeu a pena a mudança”, diz Djeiel, que aguarda ansioso o mês que vem para conhecer o forró, violeiros e repentistas de Garanhuns nas festas de São João. “Não vou perder esta oportunidade por nada no mundo.”

FONTE:Estadão.edu

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