Quando da vitória petista sobre Alckmin, o sociólogo Francisco de Oliveira alertou para os efeitos politicamente regressivos da hegemonia “lulista”: ao absorver “transformisticamente” as forças sociais antagônicas no aparato de Estado, desmobilizando as classes subalternas e os movimentos sociais, o governo Lula teria esvaziado todo o conteúdo crítico presente na longa “era da invenção” dos anos 1970-1980, tornando a política partidária praticamente irrelevante para a transformação social (revista Piauí, jan. 2007). “Transformismo” foi o nome dado pelo pensador Antonio Gramsci (1891-1937) ao processo de absorção, pela classe dominante, de elementos ativos ou grupos inteiros, vindos tanto da base aliada como da adversária.
A medida da desmobilização praticada por Lula poderia ser apreendida pelo escasso interesse depositado pelos eleitores no pleito presidencial de 2006. O efeito social regressivo consistiria exatamente nisto: sob Lula, a política afastou-se dos embates hegemônicos travados pelas classes sociais antagônicas, refugiando-se na sonolenta e desinteressante rotina dos gabinetes, ainda que frequentados habitualmente por escândalos de corrupção.
A partir daí, Francisco de Oliveira adiantou sua conjectura: no momento em que a “direção intelectual e moral” da sociedade brasileira parecia deslocar-se rumo às classes subalternas, tendo no comando do aparato de Estado a burocracia sindical oriunda do “novo sindicalismo”, a ordem burguesa mostrava-se mais robusta do que nunca. A esse curioso fenômeno em que parte “dos de baixo” dirige o Estado por intermédio do programa “dos de cima”, Oliveira chamou “hegemonia às avessas”: vitórias políticas, intelectuais e morais “dos de baixo” fortalecem “dialeticamente” as relações sociais de exploração em benefício “dos de cima”.
No Brasil, décadas de luta contra a desigualdade e por uma sociedade alternativa à capitalista desaguaram na incontestável vitória lulista de 2002. Quase imediatamente o governo Lula racionalizou, unificou e ampliou o programa de distribuição de renda conhecido como Bolsa Família, transformando a luta social contra a miséria e a desigualdade em um problema de gestão das políticas públicas. Oliveira dirá que Lula instrumentalizou a pobreza ao transformá-la em uma questão administrativa. O programa Bolsa Família garantiu a maciça adesão dos setores mais depauperados das classes subalternas brasileiras ao projeto do governo.
Não estaria essa heteróclita forma de dominação social preparando igualmente uma nação “sem qualquer sofisticação política”, como diria Weber sobre Bismarck? Uma nação totalmente subsumida na hegemonia da pequena política, como bem nos lembrou Carlos Nelson Coutinho (Hegemonia às Avessas, Boitempo, 2010)? Afinal, se atualmente, como diz Oliveira, parece que os dominados dominam, parece que os sindicalistas se transformaram em capitalistas, parece que os petistas controlam o Parlamento, parece que a economia está definitivamente blindada contra a crise mundial…, trata-se, antes de mais nada, de um conjunto de aparências “necessárias”, pois, para o marxismo profano, a aparência não é simplesmente a face espúria da essência, seu “outro” fictício e enganoso. Existe sempre uma íntima relação dialética entre aparência e essência.
1) o governo Lula não seria, simplesmente, mais um exemplo “neoliberal”, à la Fernando Collor ou FHC, exatamente porque, no intuito de constituir certas margens de consentimento popular, ele deveria responder a determinadas demandas represadas dos movimentos sociais. Empregamos, então, a noção, um tanto quanto frouxa, admitamos, de “social-liberalismo”, para tentar dar conta da ênfase nas políticas de distribuição de renda, ainda que plasmadas pela reprodução da ortodoxia rentista;
2) o vínculo orgânico “transformista” da alta burocracia sindical com os fundos de pensão poderia não ser suficiente para gerar uma “nova classe”, como disse Oliveira, mas seguramente pavimentaria o caminho sem volta do “novo sindicalismo” na direção do regime de acumulação financeiro globalizado. Apostávamos que essa via liquidaria completamente qualquer possibilidade de retomada da defesa dos interesses históricos das classes subalternas brasileiras. Chamamos esse processo de “financeirização da burocracia sindical”.
Sei que Carlos Nelson Coutinho é cético em relação à hipótese da “revolução passiva à brasileira” como critério interpretativo do atual momento hegemônico. Prefere falar em “hegemonia da pequena política” para destacar a natureza do lulismo; uma forma de hegemonia mais afinada com as características principais do neoliberalismo, pois apoiada naquilo que Gramsci chamou de “consentimento passivo”, isto é, a aceitação naturalizada de um existente tido e havido como inelutável. Não colocaria reparos nessa opinião de Carlos Nelson, pois me parece que, de fato, a hegemonia lulista apoia-se, sim, em boa parte, nesse tipo de consentimento passivo. Não compartilho, entretanto, de seu ceticismo quanto à hipótese da “revolução passiva à brasileira”, pois intuo que a hegemonia lulista satisfaz, se não completamente, em grande medida ao menos, às premissas gramscianas a respeito tanto da “conservação”, isto é, a reação “dos de cima” ao subversivismo inorgânico das massas, quanto à “inovação”, ou seja, a incorporação de parte das exigências “dos de baixo”. Trata-se, naturalmente, de uma dialética multifacetada e tensa – “inovação/conservação”, “revolução/restauração” –, que catalisa um reformismo “pelo alto”, conservador, é verdade, porém dinâmico o suficiente para não simplesmente reproduzir o existente, mas capaz de abrir caminhos para novas mudanças – progressistas (caso do fordismo, analisado pelo genial pensador sardo noCaderno 22) ou regressivas (caso do fascismo). Na minha opinião, a “hegemonia às avessas” nada mais é do que essa via de modernização conservadora, plasmada pelos limites inerentes à semiperiferia capitalista, em que o avanço se nutre permanentemente do atraso.
Carlos Nelson levanta muito corretamente a questão: se estivermos diante de uma revolução passiva, parte das exigências dos “de baixo” deverá ser acolhida pelo governo reformista e moderado. Mas não é exatamente isso que verificamos quando analisamos o Bolsa Família, a ampliação do sistema universitário federal com o patrocínio das cotas, o impulso na direção da “reformalização” do mercado de trabalho, a política de reajuste do salário mínimo acima da inflação, a retomada dos investimentos em infraestrutura ou, mais recentemente, o incentivo ao consumo de massas por meio do crédito consignado? É pouquíssimo em se tratando de nossa imensa dívida social. Além disso, tais realizações são totalmente insuficientes para garantir Lula no panteão dos campeões reformistas, ao lado de Willy Brandt (político alemão, 1913-1992), Olof Palme (político sueco, 1927-1986) e tutti quanti. Contudo – e isso diz muito sobre o handicap das classes dominantes brasileiras –, conseguem ser suficientes para alçar Lula à condição de incontestável liderança popular.
Contudo, parece-me meridianamente claro que o governo Lula conseguiu coroar a incorporação de parte das reivindicações dos “de baixo” com a bem orquestrada reação ao subversivismo esporádico das massas representado pelo “transformismo de grupos radicais inteiros”. Da miríade de cargos no aparato de Estado, passando pelos muitos assentos nos conselhos gestores dos fundos de pensão, pelas altas posições em empresas estatais, pelo repasse de verbas federais para financiamento de projetos cooperativos, pela recomposição do aparato de Estado, pela reforma sindical que robusteceu os cofres das centrais sindicais etc., o locus da hegemonia resultante de uma revolução passiva é exatamente o Estado. O fato é que o subversivismo inorgânico transformou-se em consentimento ativo para muitos militantes sociais que passaram a investir esforços desmedidos na conservação das posições adquiridas no aparato estatal.
Se Oliveira tem razão ao afirmar que a “hegemonia às avessas” simplesmente não significou verdadeiros “avanços na socialização da política em termos gerais e, especificamente, alargamento dos espaços de participação nas decisões da grande massa popular, intensa redistribuição da renda num país obscenamente desigual e, por fim, uma reforma política e da política que desse fim à longa persistência do patrimonialismo” (revista Piauí, out. 2009), também é verdade que Lula soube “excluir a grande política do âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo a pequena política”. Assim procedendo, fez grande política, isto é, “representou o maquiavelismo de Maquiavel contra o maquiavelismo de Stenterello”, ainda que “para conservar uma situação miserável” (Gramsci). Quando Oliveira fala em “regressão política” para se referir ao governo Lula, é nisso que ele está pensando.
Aos meus olhos, a hegemonia lulista é o ponto comum entre duas formas sociais distintas de consentimento: a ativa e a passiva. “Vanguarda do atraso” ou “atraso da vanguarda”? O governo Lula apoia-se em uma forma de hegemonia produzida por uma revolução passiva empreendida na semiperiferia capitalista que conseguiu desmobilizar os movimentos sociais ao integrá-los à gestão burocrática do aparato de Estado em nome da aparente realização das bandeiras históricas desses mesmos movimentos, que passaram a consentir ativamente com a mais desavergonhada exploração dirigida pelo regime de acumulação financeiro globalizado.
Por seu turno, emaranhada em uma rede de dependências das políticas públicas governamentais, parte considerável das classes subalternas brasileiras consente passivamente, esgotada por uma década e meia de cruentas lutas sociais ofensivas somada a outra década e meia de obstinadas lutas sociais defensivas. Cansadas de inovar politicamente e de se defender economicamente, as classes subalternas brasileiras preferem, à primeira vista, retomar momentaneamente o fôlego e seguir hipotecando prestígio ao governo da esfinge barbuda e sua candidata. Eis aqui o cerne da questão: após sete anos de “regressão política”, 83% de aprovação no Ibope não pode ser obra da divina providência.
FONTE: REVISTA CULT
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