HOMENAGEM A UMA GRANDE BALUARTE
Este é o capítulo dedicado a Dodô no livro "Onze mulheres incríveis do carnaval carioca", editado pela Verso Brasil na coleção Cadernos de Samba. Reverência à grande dama portelense, que morreu hoje, aos 95 anos.
Uma das capitais da politeísta religião chamada Carnaval, Madureira embarcou numa emocionante viagem ao passado no desfile de 2004. As três escolas da região levaram à Passarela sambas e histórias de tempos gloriosos, para encantar a plateia. O Império Serrano ressuscitou “Aquarela brasileira”, preciosidade criada por Silas de Oliveira para a festa de 1964; a Tradição pegou emprestado “Contos de areia” (1984), da Portela, seu berço; e a azul e branco da Águia presenteou o público com “Lendas e mistérios da Amazônia”, obra-prima que passou pela primeira vez em 1970. Junto, celebrou uma pioneira da folia, consagrada madrinha de sua bateria: Dodô.
Não era pouca coisa. Aquele lugar à frente dos ritmistas estava há tempos reservado (salvo exceções) para “modeletes”, marombadas e oportunistas em geral. Numa prova – mais uma – do feitiço que só o Carnaval ostenta, a plateia de turistas decifrou o significado da cena e bateu palmas com vontade. Liderada pela veterana (entre outros baluartes), a Portela fez seu melhor desfile em muitos anos.
Quando a maior campeã da folia carioca decidiu escalar uma senhora, então com 84 anos, para ocupar o posto, encenou um espetáculo de dignidade. Magra, impecável em azul Portela, o olhar altivo mirando o horizonte, entre acenos majestosos para o público, Dodô dizia tudo sem falar nada – nessa Avenida colorida, ela chegou primeiro.
Não na do século XXI, gigantesca e cosmopolita, mas na que deu origem à odisseia dos bambas. Mais precisamente, na noite do domingo 3 de março de 1935, guardada por seu Antônio, o mestre-sala, quando ela conduziu o pavilhão pela Praça Onze até o primeiro título da Portela, com apenas 15 anos. Num tempo em que adolescentes não se misturavam com sambistas – ainda associados a marginais, por causa da lei dos brancos que até pouco antes os perseguia –, Dodô quebrou regras em nome da paixão descoberta pouco antes, que lhe acompanharia pela vida afora.
Maria das Dôres Rodrigues chegara criança, aos 4 anos, de Barra Mansa, no sul do estado do Rio de Janeiro, onde nasceu. Migrara com a mãe, Otília, e os irmãos para a capital, fugindo da miséria que assolava o Vale do Paraíba em razão da decadência da cultura cafeeira, e foi morar no Morro da Providência (a primeira comunidade popular carioca, antes conhecida como Favela, o nome que a história transformou em gênero), atrás da Estação Central do Brasil. A família se instalou numa casa ampla, no fim da Ladeira do Faria, junto à Ladeira do Barroso, bem no alto da encosta.
Para os brasileiros que viviam pendurados nas favelas – berços, benza Deus, da cultura popular –, desafiando o país historicamente hostil aos pobres, a vida profissional começava cedo. Para Dodô, pouco antes de completar 14 anos, quando conseguiu um emprego de empacotadora numa fábrica à Rua Visconde de Gávea, no pé da Providência, que produzia embalagens de papelão para a Casa Granado, tradicional rede de farmácias do Rio. Quiseram os orixás que ela fosse trabalhar na mesa comandada por Doralice Borges da Silva, ou somente Dora, outra jovem, moradora de Oswaldo Cruz, subúrbio do ramal da Central. Com ela trabalhavam Rosinha, Laudelina e Miranda, vizinhas de bairro e parceiras na Vai Como Pode, escola que existia por lá.
Na hora do almoço, Dodô, a caçula delas, ia comer em casa, ali perto. Um dia, Dora convidou: “Amanhã, traz uma marmita e fica com a gente, você vai gostar.” No dia seguinte, a novata descobriu sua maravilha particular. As colegas comiam rapidamente para sambar até o fim do intervalo, batucando e cantando músicas da escola.
Dodô ficou encantada com aquele ritmo, aquele bailado. Mas se lembrou que, nas poucas vezes em que vira uma escola de samba, notou especialmente a presença de uma componente que rodopiava, majestosa, com a bandeira. E achou seu lugar. “Peguei meu guarda-pó, prendi num cabo de vassoura e comecei a rodar”, recorda ela, lúcida e bem-humorada, que premia seus interlocutores com a memória prodigiosa, o vocabulário divertido dos sambistas e um sem-número de histórias incríveis.
No fim da primeira apresentação, Dora, totalmente seduzida, jogou a isca. “Quando faltar uma porta-bandeira na escola, vou te levar”, avisou. A novata conheceria, afinal, nomes que se acostumou a ouvir no trabalho, personagens das histórias contadas pela amiga. As aventuras de Claudionor, Benício, Manoel Bam-Bam-Bam; a voz vigorosa de Ventura e João da Gente, comandante da bateria que ditava o ritmo dos sambas compostos por Alcides e Alvarenga; a dança mágica de seu Antônio, mestre-sala, com as porta-bandeiras Cecília, Braulina e Aidéia, nos ensaios realizados na rua. Mais do que qualquer outro, conheceu Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela, líder daquilo tudo.
Como descreve a própria Dodô, na sua gíria atualizada, “não prestou”. “Sem saber o que estava fazendo, eu fazia mais. Chegava em casa, pegava o cabo de vassoura, ia para a sala e começava a rodar”, descreveu ela, numa entrevista a Luis Carlos Magalhães e João Gustavo Melo, em 2012. Não parava nem diante dos acidentes com porta-retratos, quadros e outros objetos, tampouco pelo castigo que vinha em seguida. “Mamãe pegava a vara de marmelo e vapt na minha perna. ‘Está pensando que isso aqui é escola de samba?’” No alto da Providência podia não ser – mas a menina estava a caminho de se tornar uma estrela das mais importantes.
Estava em boas mãos. Espécie de diretora social não formalizada, Doralice vivia os ensaios e os preparativos para o Carnaval como rainha na Vai Como Pode, a futura Portela. (Nada a ver com as rainhas de bateria contemporâneas; no início, as escolas passavam livros de ouro em suas comunidades e leiloavam cargos para turbinar a arrecadação de recursos.) A essa altura, Dodô estava completamente seduzida pela possibilidade de integrar a escola. Os almoços passaram a ser com as amigas na fábrica, um ligeiro engolir de comida para iniciar a festa o mais rapidamente possível e girar ao som do samba, o avental branco como encenação para a bandeira que iria conduzir muito em breve.
Ela invocou todo o amor que sentia pelo samba para convencer a mãe a levá-la de bonde até Oswaldo Cruz, ninho dos bambas reunidos na Vai Como Pode. Paulo, o líder que viraria lenda com o sobrenome “da Portela” (ganho, aliás, antes da criação da escola, por causa do endereço, Estrada do Portela), achou um despropósito. “Não dá, ela é muito nova, uma criança”, reprovou. Dora tinha certeza de sua escolha e insistiu, argumentando com os ensaios da hora do almoço na fábrica.
Seu Antônio, o mestre-sala, foi convocado. “Vê se essa menina dá para porta-bandeira. Se der, tudo bem”, determinou o chefe. Nesse primeiro encontro, o professor deu as dicas de como funcionaria na pista. Quando jogar o lenço para cima, quando esticar a mão, quando pedir a mão da parceira. No fim do curto ensaio, ele voltou a Paulo com a resposta – na verdade, uma profecia: “Essa menina vai ser uma grande porta-bandeira.”
A tradição da época mandava que somente senhoras ocupassem o posto, guardadas por homens maduros como mestres-salas. Mas o entusiasmo e o talento de Dodô derrubaram todos os protocolos – a ponto de convencer a direção da azul e branco a providenciar documentos que falseavam sua idade. Para o juiz de menores, ela tinha 19 anos naquele 1935, quatro a mais do que a realidade.
A dança, nas origens, também tinha outros rigores. No começo do desfile, a porta-bandeira segurava a ponta do pavilhão; só depois de rodar três vezes soltava, para bailar com ele aberto diante do público. O mestre-sala era bem menos acrobático do que no espetáculo contemporâneo e se preocupava em guardar a dama, ainda no conceito original do casal. Outros tempos, outros tempos.
“Quando tocar o sinal, você entra”, avisou seu Antônio, na única contribuição que deu à sua nova parceira, na hora da apresentação. “Ninguém me ensinou, foi na garra”, confirma Dodô, que, depois de sair campeã da Praça Onze, garantiu lugar entre os portelenses essenciais.
Ao longo do ano, frequentava a quadra da escola, participava de todos os eventos, sempre em companhia da mãe. Antes de ir, era obrigada a rezar o terço. Tentando apressar o ritual, a menina pulava orações, mas dona Otília percebia – e a filha tinha de começar tudo outra vez, a tempo de chegar para o ensaio, que começava às 20h e terminava às 23h. Pontualmente.
Em maio daquele 1935, a Vai Como Pode foi rebatizada por ordem de Dulcídio Gonçalves, o delegado de Costumes. Para que a atividade de sambar fosse permitida, era necessária a inscrição como grêmio recreativo (porque a burocracia é tão brasileira quanto o Carnaval), e a autoridade constituída não simpatizou com o nome. Após alguns instantes de indecisão, o doutor perguntou o endereço da escola. Como ficava na Estrada do Portela, ganhou seu nome definitivo – Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela, aquela que, no futuro, seria a maior campeã da festa carioca.
A comemoração da mudança se deu no Dia do Trabalhador, 1º de maio, quando Dodô recebeu o pavilhão recém-criado, o azul e o branco em raios, inspirado na então bandeira do Japão (que depois da Segunda Guerra Mundial perderia o desenho, sobrando apenas o Sol nascente, vermelho, no meio). Ao centro, a águia – a ave que voa mais alto – sobre um pandeiro, emoldurada pela frase “Honra ao mérito”. (Ela guardou a bandeira em sua casa pelos anos afora, perfeitamente conservada, pronta para voltar à Avenida.)
Conforme o Carnaval se aproximava, Dodô dedicava o tempo livre à fantasia que usaria. Ela mesmo bordava suas roupas, na casa da Providência, fazendo os vestidos a seu gosto, formais, sem decotes, com o luxo devido à função. Independente, nunca quis ajuda – nem aceitava palpites. Jamais contou com qualquer auxílio da Portela para confeccionar seus trajes carnavalescos; beneficiou-se, sempre, da aptidão de costureira profissional e dos descontos incríveis que conseguia nas boas lojas do ramo. Cruzou a vida fiel a seu jeito, mesmo depois de se casar, “aos vinte e poucos anos”, com Aloísio – “o meu crioulo”, como ela prefere – um estivador mangueirense, folião da Índios da Açaú (escola da rua do mesmo nome, no Engenho Novo), que ela conheceu num baile em Irajá.
As lembranças das jovens jornadas carnavalescas são apaixonantes, como ela mesmo descreveu numa entrevista ao site Democracia Viva, do Portal do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), em 2004. “Na Portela, sempre foi tudo muito emocionante… A cada novo campeonato, os compositores me carregavam no colo. O resultado era na hora, e os jurados não ficavam longe como hoje. Eles olhavam e pegavam na bandeira, botavam a mão na roupa da porta-bandeira e do mestre-sala, olhavam toda a nossa elegância. Nós dois não podíamos de jeito nenhum dar as costas para os jurados, a gente tinha que dançar olhando e sorrindo para eles”, relembrou, descrevendo o julgamento da época, que avaliava a bandeira, além do casal.
Com o pavilhão portelense, Dodô ganhou outros dez títulos – sete deles consecutivos, na famosa sequência de 1941 a 1947 –, na competição carnavalesca que peregrinou pela Praça Onze e pelas Avenidas Rio Branco e Presidente Vargas. Seu guru, Paulo da Portela, esteve com ela e com a escola somente até 1941, mas rompeu antes do Carnaval e se mudou para a pequenina Lira do Amor. (Um dos mais importantes sambistas de todos os tempos, ele morreu em janeiro de 1949, fulminado por um enfarte, aos 47 anos.) Mas Dodô já era da azul e branco, muito além de nomes e pessoas.
No fim da década de 1940, a escola ganhou um patrono lendário, o bicheiro Natalino José do Nascimento, o Natal da Portela, líder forte na harmonia da Avenida e no xadrez dos bastidores. Para o Carnaval de 1957, ele estava encantado com o talento de uma jovem porta-bandeira chamada Vilma, e procurou a titular. “Dodô, ela quer ser porta-bandeira”, arriscou, recebendo resposta lacônica – e digna: “O pavilhão está às ordens.”
Como o amor, quando legítimo, despreza postos e vaidades, a primeira campeã com a Portela aceitou o capricho do chefe e foi ser segunda porta-bandeira. Sem crise. Reestreou no novo cargo dia 3 de março de 1957, cruzou a Rio Branco com o empenho e a competência de sempre, para conquistar mais um título, sob o enredo “Legados de D. João VI”. A azul e branco de Oswaldo Cruz transformara-se num dream team de bambas, e Dodô passou a conviver com lendas como Candeia e Monarco – além da própria Vilma, que justificou o prestígio com seu talento impecável. A bandeira da águia estava em boas mãos.
Até 1960, a Portela foi tetracampeã, resultado da competência de seus craques na Avenida e do trabalho intenso do patrono Natal nos bastidores. Dodô conduziu a “segunda” bandeira ainda nas vitórias de 1962, 1964 e 1966. Neste último, o do enredo “Memórias de um sargento de milícias” – cantado no samba de um jovem compositor chamado Paulinho da Viola –, esperou terminar a festa e comunicou que fora seu derradeiro desfile como porta-bandeira. Tinha 46 anos e inacreditáveis dezoito títulos.
Consolidada como baluarte, assumiu novo posto como comandante da Ala das Damas (vencedora do Estandarte de Ouro em 1991). Na primeira metade da década de 1970, a escola ganhou novo presidente, o bicheiro Carlos Teixeira Martins, o Carlinhos Maracanã, que presenteou Dodô com uma loja dentro do Portelão, a quadra inaugurada em 1972. Lá, recebia os turistas no ritmo de recordações emocionantes e frases divertidas, para vender camisetas e suvenires da Portela, até que outro presidente, Nilo Figueiredo (2005-2013), fechou o lugar. Eleito em 2013 para o cargo, o partideiro e cavaquinista Serginho Procópio, integrante da famosa Velha Guarda da escola, fez justiça à grande portelense e devolveu-lhe a loja na quadra, reformada em 2012.
Dodô merece. Em 2000, no aborrecido Carnaval temático, por causa dos 500 anos do Descobrimento do Brasil, a escola, já mergulhada na crise que lhe impôs um imenso jejum de títulos – o último fora em 1984 –, fez um desfile opaco, mas a veterana foi um dos pontos altos da festa, ao voltar a empunhar o pavilhão azul e branco. Cruzou a Passarela do Samba com empenho igual aos tempos adolescentes e emocionou o público. Um mérito raro na esmaecida Portela, que conseguiu apenas o 7º lugar.
Como vários fiéis da religião samba, a eterna primeira porta-bandeira lembra com saudade das muitas vitórias que protagonizou. Colecionadora minuciosa de vestidos, bandeiras, faixas, troféus e todo tipo de recordação da sua trajetória, acabou por transformar o segundo andar de sua casa, no mesmo Morro da Providência de sempre, num incrível museu do Carnaval. O azul e o branco, claro, dominam o lugar, onde Dodô recebe orgulhosa os visitantes, que ouvem fascinados a história e as histórias da anfitriã. Só não adianta procurar imagens da família. “Tenho fotos da minha mãe e do meu crioulo, mas não boto na parede. Prefiro assim”, avisa ela, que não teve filhos.
O Carnaval a levou de volta à sua Barra Mansa, onde batizou uma escola de samba. Vez ou outra, vai lá para ser homenageada. “A casa onde a gente morava ainda existe. Está escrito até hoje: Vila Otília”, conta, feliz, ao citar o nome da mãe.
O passado de glórias estará para sempre presente na vida de Dodô, que, quase um século depois de iniciar sua jornada carnavalesca, continuava desfilando além dos 90 anos de idade, lúcida e feliz. Ela viu tudo – todas as sucessoras no quesito do qual foi precursora, os bambas lendários da grande festa carioca, os desfiles da pioneira Praça Onze à milionária Passarela do Samba – e sabe o valor da alegria. A ponto de, no balanço que se permite fazer da própria vida, não ter dúvida. “Na outra encarnação quero vir eu. Do jeito que eu sou.”
O Carnaval só tem a agradecer.
FONTE: Aydano André Motta / CHOPE DO AYDANO