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terça-feira, novembro 19, 2013

César Benjamin: O longo prazo chegou













O PT assumiu o governo federal há dez anos, propondo-se inaugurar um novo ciclo de desenvolvimento centrado no mercado interno; em vez disso, criou uma bolha de consumo que já não se sustenta. Prometeu aprofundar a democracia e resgatar os valores republicanos; em vez disso, atolou o Estado no fisiologismo, fortaleceu as oligarquias e desmoralizou a política. São aspectos gêmeos de um ciclo que está perto do fim, deixando o Brasil em vôo cego.

Começo pela economia. Com o esgotamento do velho desenvolvimentismo, no início da década de 1980, acentuou-se o debate sobre a necessidade de buscarmos alternativas estratégicas para o país. Duas áreas apareciam como candidatas à posição de locomotiva de um novo modelo econômico: as exportações, pois o Brasil não desenvolvera uma indústria dotada de “espírito animal” para disputar o mercado mundial, e o mercado interno, historicamente atrofiado pela má distribuição da renda nacional. Não eram posições excludentes, é claro, mas havia entre elas uma diferença de ênfase. Ambas estavam presentes no jovem PT, onde eu militava. O segundo caminho me parecia mais ajustado à nossa meta de compatibilizar crescimento econômico e justiça social.

A prolongada crise inflacionária, que durou até a primeira metade da década de 1990, e o experimento neoliberal, que se seguiu, adiaram esse passo por vinte anos. Instalado em 2002, o governo do PT, depositário da memória desse debate, representou a chance de finalmente romper o impasse, ajudado pelo fato de que logo se instalou uma conjuntura internacional excepcionalmente favorável ao Brasil: nos anos seguintes, a disparada dos preços dos produtos que exportamos abriu espaço para um incremento veloz do mercado interno sem que isso gerasse grandes pressões sobre as contas externas, nosso gargalo tradicional. A conjuntura permaneceu favorável mesmo depois da crise financeira de 2008: a China continuou a crescer, demandando grande quantidade de produtos brasileiros, enquanto os Estados Unidos irrigavam o mundo com dinheiro barato. Continuamos a contar com um comércio exterior em ascensão e financiamento externo abundante.

O governo Lula aproveitou a maré e deu alguns passos na boa direção: manteve a política de aumentos reais para o salário mínimo, iniciada cerca de dez anos antes; expandiu os programas de transferência de renda, agora agrupados no Bolsa-Família; patrocinou maior formalização no mercado de trabalho, o que ajudou a garantir um aumento na renda média dos assalariados; expandiu o crédito.

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Essa combinação, tornada possível pela ausência momentânea de restrições externas, criou uma sensação de bem-estar e obteve grande êxito político. O PT considerou que havia lançado as bases do novo ciclo de desenvolvimento que tinha sido objeto de tanto debate entre nós. Mantive-me em posição crítica: os instrumentos usados pelo governo eram, no geral, positivos, mas insuficientes. Deveriam ser apenas o “motor de arranque”. Se outras questões não fossem enfrentadas, viveríamos uma frustração. Acumulavam-se, pelo menos, cinco elementos regressivos:

(a) as políticas governamentais privilegiavam, de longe, a disseminação de bens de consumo individual, como eletrodomésticos e automóveis, praticamente ignorando os equipamentos de uso coletivo que são essenciais para a qualidade de vida da população, especialmente nas grandes cidades: saneamento, transporte de massas, educação, saúde, segurança.

(b) o câmbio desalinhado e outros fatores produziam sinais de uma desindustrialização precoce, desassociada do crescimento da renda per capita.

(c) a inserção internacional do Brasil regredia, com a reprimarização da pauta de exportações.

(d) a geração de empregos permanecia concentrada em atividades de baixa qualificação e baixa remuneração, com dificuldades tanto no lado da oferta, pela má qualidade do sistema educacional, quanto da demanda, pois os novos postos de trabalho se concentravam no setor de serviços não ligado à produção (balconistas, moto-boys, vigilantes) e na construção civil. Em pleno século XXI, a população brasileira se deslocava para setores de baixa produtividade, incapazes de garantir um mercado de trabalho dinâmico, em quantidade e qualidade, condição essencial para uma elevação consistente dos rendimentos do trabalho.

(e) a infraestrutura econômica foi abandonada, com acúmulo de problemas na malha rodoviária (entregue aos políticos do PR), descalabro no setor elétrico (entregue ao PMDB de José Sarney), desgoverno na área de combustíveis líquidos e assim por diante.

Essas cinco grandes áreas reatualizavam desafios históricos que o Brasil havia superado, ou estava em condições de fazê-lo, e sinalizavam problemas à frente. Mas não adiantava propor o debate: assim como Collor, na expressão de Chico de Oliveira, foi a “falsificação da ira”, Lula, onipresente e falante, encarnava a falsificação do otimismo. Os que permaneceram fiéis ao pensamento crítico e a uma ideia de nação eram sempre colocados sob a suspeita de agir movidos por rancor ou defender interesses inconfessáveis. Não havia motivos reais para a crítica. Os adesistas, mesmo que de última hora, entraram na moda.

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Os problemas negligenciados nos dez últimos anos têm algo em comum: são difíceis, exigem capacidade técnica e planejamento sério, plurianual. São de longa maturação. Por isso, tendem a ser postergados por um arranjo político que só enxerga o curtíssimo prazo, movido no compasso do calendário eleitoral bianual. Hoje, 2014 é o limite. Depois será a vez de pensar em 2016. Questões como educação e infraestrutura não cabem nesse horizonte de tempo.

Ao optarem pelos caminhos mais fáceis, os governos do PT, em vez de abrirem um ciclo longo de desenvolvimento para o país, como desejávamos, aproveitaram a bonança internacional para criar uma bolha de consumo que está chegando ao fim, pois doravante não contaremos mais com o bônus que o mundo nos deu nos últimos anos. A China desacelera seu crescimento e diversifica seus fornecedores, enquanto os Estados Unidos anunciam o fim da política monetária frouxa que nos trazia dinheiro barato. Nosso saldo comercial, construído com produtos primários, desaba, enquanto o déficit em serviços e rendas continua em expansão, como um dos subprodutos da gigantesca desnacionalização da economia. Com o desequilíbrio externo, o Banco Central reinicia um novo ciclo de alta nos juros, o que conspira contra o crescimento, já medíocre, e agrava o quadro fiscal. Haverá, inevitavelmente, ajustes para baixo na renda e no emprego, num contexto em que o endividamento das famílias se tornou muito alto.

A única resposta do governo, até aqui, são ações pontuais para sustentar a demanda, ações inócuas, pois a indústria brasileira perdeu a capacidade de capturá-la. Ela, simplesmente, vaza para o exterior, sob a forma de aumento nas importações. A desindustrialização prossegue, a tal ponto que a participação da indústria na economia brasileira voltou aos níveis da década de 1940.

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Libertados da histriônica cacofonia de Lula, fomos aos poucos descobrindo que a qualidade de vida dos brasileiros continua muito ruim. A “nova classe média”, inventada pelos marqueteiros, não tem saneamento, transporte, educação, saúde e segurança. E o Estado está completamente desaparelhado para fazer frente a tais demandas coletivas, pois se tornou incapaz de conduzir projetos minimamente complexos e que exigem esforço continuado. Muita coisa se anuncia, pouca coisa começa, e o que começa não anda. A disseminação do fisiologismo levou ao colapso a capacidade técnica e gerencial do setor público, onde imperam a improvisação, o marketing e a corrupção. Dilma Rousseff discursa, promete e tira fotos, mas nitidamente não comanda governo nenhum. Ano a ano, um abismo separa as medidas divulgadas e os resultados consolidados.

Coadjuvantes no mesmo espetáculo burlesco, o Executivo não executa e o Legislativo não legisla. Um cartel de políticos, donos de partidos desfibrados, em vez de governar a nação, governa a si mesmo. O cidadão sabe que está fora do jogo. Qualquer reforma política que não quebre a espinha desse cartel será um engodo, uma infindável e inútil discussão sobre regras, quando a nação pede, em primeiro lugar, que se definam objetivos e fins verdadeiros.

Minha crítica a essa forma de fazer política nada tem de udenismo. É uma crítica política: governos assim constituídos, incapazes de cuidar das grandes questões, não conseguem oferecer um rumo à nação. A governabilidade de curto prazo, garantida pelo loteamento do Estado, constrói-se à custa de uma crescente ingovernabilidade no longo prazo, pelo acúmulo de problemas não enfrentados. As manifestações de junho parecem indicar que o longo prazo chegou.

O lulismo não legou ao Brasil nenhuma iniciativa estruturante, nem no domínio da economia física nem no do aperfeiçoamento das instituições republicanas. Compará-lo com o getulismo, como o próprio Lula gosta de fazer, é um disparate. Falando de cabeça, Getúlio Vargas encontrou o Brasil na condição de uma fazenda de café, comandada pelos velhos “coronéis”, com eleições feitas a bico de pena, e nos legou quase todas as instituições que criaram o Brasil moderno: Petrobras, Vale do Rio Doce, BNDE (hoje BNDES), Álcalis, Companhia Siderúrgica Nacional, Fábrica Nacional de Motores, IBGE, Furnas (embrião da Eletrobras), DASP – além do voto feminino e secreto, dos direitos do trabalho, do salário mínimo, do código de águas, do conceito de serviço público... Tudo isso com uma espantosa mobilidade social ascendente – da qual o próprio Lula se beneficiou, quando jovem –, que foi uma das marcas do período desenvolvimentista. Mobilidade sólida e vigorosa, pois associada, antes de tudo, à modernização do sistema produtivo, à ampliação das oportunidades de trabalho e à expansão da escola pública. Que diferença em relação aos tempos de hoje! Chega de boçalidades. O Brasil, definitivamente, não começou em 2002.

Lula, de certa forma, foi o anti-Getúlio, reforçando os coronéis que manejam o Bolsa-Família e quase nos transformando em uma gigantesca fazenda de soja. Se o lulismo não se reciclar profundamente – não creio que isso possa acontecer –, terá sido uma experiência efêmera e pouco importante na história do Brasil. Afinal, o que restará dele, quando a bolha de consumo estourar?

FONTE:César Benjamin / Publicado na Revista Piauí, edição nº 83, agosto 2013

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