Escola municipal de Salvador é um caso raro de ensino exemplar de história e cultura africanas: sem preconceitos
Quando chega à sala Iyá Obá Biyi, do primeiro ano do ensino fundamental, a vice-diretora Iraildes Nascimento saúda os pequenos alunos com um yá agô (com licença). Ao que todos logo respondem: agô yá (licença concedida). Por toda a Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos, essas e outras “palavras básicas de convivência” da língua iorubá são lembradas em murais e cartazes pendurados ao lado de fotos de mães de santo. Perto dali, numa escola estadual na Estrada das Barreiras, a professora de História Luciana Araújo até tenta falar sobre candomblé e religiões africanas com as turmas de adolescentes. Mas, quase sempre, alguém debocha e pergunta: “Você é macumbeira, não é?”
O bairro é Cabula, localizado na área central de Salvador, entre a rodovia BR-324 (que liga a capital à cidade de Feira de Santana) e a movimentada Avenida Paralela. Mesmo tendo uma população de mais de 90% de negros e pardos, boa parte dos professores das escolas públicas da região ainda encontra resistência ao trazer a história e a cultura africanas e afro-brasileiras para as salas de aula. Mais de oito anos após a promulgação da Lei 10.639 – que tornou obrigatório o estudo desses temas nos ensinos médio e fundamental –, eles continuam esbarrando na falta de apoio efetivo dos governos, no preconceito e no desinteresse de coordenadores, pais, alunos e até dos próprios professores.
A Escola Eugênia Anna dos Santos é praticamente uma exceção nesse cenário. Instalada desde a década de 1970 no tradicional terreiro de candomblé Ilê Axé Opô Afonjá, é uma referência na capital baiana e mesmo fora do Brasil. Tudo começou com o desejo de Mãe Aninha (1869-1938), fundadora do terreiro em 1910, de ver seus “filhos com anel no dedo aos pés de Xangô [seu orixá]”. Seguindo esses passos, Maria Stella de Azevedo Santos, a Mãe Stella, que lidera o Axé desde 1974, concretizou o sonho da primeira ialorixá (mãe de santo). De início, foi montada uma creche, a Minicomunidade Obá Biyi, que abrigava crianças filhas do terreiro, com idades que iam de poucos meses até cinco anos. Em 1986, esse pequeno espaço se transformou numa escola de 1ª a 4ª série do ensino fundamental e ganhou o nome de sua inspiradora. Mais tarde, foi incorporada à rede municipal de Salvador.
Mitos africanos na escola
Na mesma época, a educadora e historiadora Vanda Machado começou a frequentar o terreiro. E não demorou a escolher o local como objeto de suas pesquisas de mestrado. A ideia inicial era desenvolver atividades a partir das próprias vivências das crianças, do saber e da cultura da comunidade, e tomá-los como “suportes para aquisição de novos conhecimentos”. Nascia aí o projeto político-pedagógico Irê Ayó (ou Caminho de Alegria), elaborado junto com Carlos Petrovich e adotado na escola a partir de 1999. “Nossa proposta maior é a formação de sujeitos autônomos e solidários, com o sentido de pertencer e participar de seu lugar. Isso tudo foi inspirado no que víamos no terreiro, onde a solidariedade acontece naturalmente”, explica a pesquisadora, filha de Oxum e ebomi (pessoa mais velha no santo) da comunidade.
Nos primeiros meses deste ano, a “transformação da Conquén” inspirou todas as atividades escolares. Os professores e coordenadores começaram a perceber que algumas “palavras mágicas” – com licença (yá agô), obrigado (adupé), desculpa (pe leô) – estavam sendo esquecidas. Então, nada melhor do que resgatar a história da galinha d’angola que vivia reclamando do mundo e não lhe dava nenhuma contribuição. Depois de encontrar o Oluô, ela finalmente descobriu que não estava só, precisava apenas melhorar suas relações. “O mito da Conquén foi o norte para alavancar nossa dinâmica, desenvolver o conteúdo das aulas. Essa é a parte objetiva. Mas tem também o lado mais subjetivo, um ganho difícil de mensurar. Assim como a galinha se transformou, nós também nos transformamos com sua história”, completa Cláudia Castro.
Além dos livros didáticos
No fim das contas, o mito é uma porta de entrada mais que eficiente para trabalhar a Lei 10.639. “A partir dele, podemos recuperar todo o legado dos africanos e dos afrodescendentes. Se o livro didático não traz os assuntos, buscamos em outros lugares. Trabalho em outra escola, mas lá não consigo efetivar a lei. Sempre ouço: ‘Já fazemos isso na Consciência Negra’. É complicado lidar com essa resistência”, lamenta Catarina Pedreira, professora do 4º ano.
De fato, a situação é bem diferente em outros colégios públicos, e também nos particulares, espalhados por Salvador. Para começar, boa parte dos professores não recebe qualquer tipo de formação ou capacitação. Como faltam apoios oficiais e dos próprios coordenadores escolares, as iniciativas são, em geral, individuais e esporádicas. O resultado disso são profissionais desmotivados e alunos desinteressados. “Não quero nadar, nadar e morrer na praia. Ou fico brigando ou deixo para lá, numa atitude meio egoísta. Quando você pode, flui na sua aula do jeito que acha, sem saber se está correto ou não. De alguma forma, quando se fala da escravidão, já se toca um pouco na questão. Infelizmente, esta é a realidade de mais de 80% das escolas”, lamenta a professora de História Luciana Araújo.
E como as instituições também têm estruturas muito precárias, a obrigatoriedade trazida pela lei acaba ficando praticamente no fim de uma longa lista de problemas e prioridades. A escola estadual em que Luciana trabalha, na Estrada das Barreiras, está instalada em dois prédios separados por uma pista asfaltada. Há onze anos a comunidade espera a construção de um novo espaço. Nas salas de aula não há cadeiras para todo mundo. Em geral, apenas vinte estudantes conseguem lugar para sentar. Em dias de prova, aparecem cinquenta. A solução é fazer um rodízio. “Nós, professores, também não temos cadeira e nem mesa. Coloco a minha bolsa no chão. É nessa escola sem suporte nenhum que querem que eu ofereça um ensino de boa qualidade”, alerta Luciana.
Investimentos próprios
Para contornar tantas dificuldades, alguns docentes investem em pós-graduações com dinheiro do próprio bolso, compram uns poucos livros (bem poucos, já que seus baixos salários não acompanham os preços das obras especializadas) ou simplesmente recorrem à Internet. Outra estratégia tem sido levar pesquisadores, professores universitários e mesmo africanos que vivem no Brasil para conversar com os alunos.
Morando em Salvador desde 2002, o ganês Justine Lloyd Ankai-MacAidoo, mais conhecido como DJ Sankofa, volta e meia é convidado para contar suas experiências nas escolas públicas da cidade, quando aproveita para apresentar a diversidade musical africana e exibir suas habilidades como chef de cozinha. As atividades começaram meio por acaso, quando, em novembro de 2004, na Semana da Consciência Negra, foi chamado por um grupode estudantes do bairro de Águas Claras para ajudá-los com informações sobre a África numa espécie de competição entre países e continentes. De lá para cá, já deu aulas de inglês a partir das histórias africanas na ONG Pracatum, do músico Carlinhos Brown, participou de eventos em diversas escolas da capital (inclusive na Escola Eugênia Anna) e de outras regiões, como o Vale do Capão, na Chapada Diamantina. Em todos os lugares, procurou usar sempre os mesmos recursos: histórias, música e comida. “Essas são coisas que chamam a atenção. A estratégia é usar minha própria experiência, mais prática”, diz, num português com sotaque.
No Capão, ele pretende transformar tudo isso num projeto regular. Em parceria com o ponto de cultura Circo do Capão, mas ainda sem patrocínios, ele vai, a cada mês, preparar comidas típicas de Togo, Benim, Gana ou Nigéria, e também apresentar danças e ritmos africanos, como semba, juju music, funana ou kizomba, em colégios públicos e particulares. “Não será só contar uma história e ir embora. Vai fazer o que com isso? Em Lauro de Freitas [município perto de Salvador], uma menina de 14 anos ficou tão interessada que resolveu, com a ajuda dos pais, estudar dança folclórica no Congo. Ficou lá dois anos. Quero que as pessoas tenham outra visão da África. Não somos coitados. Somos orgulho, muito orgulho”, reafirma o ganês, que é um dos sócios do Bar Sankofa, no Pelourinho, especializado em música africana.
Os educadores da Eugênia Anna e de outros colégios de Salvador também acreditam que a chave está mesmo na autoestima. Mas não basta botar as crianças para desfilar no dia de Zumbi, vestidas de torso na cabeça e roupa colorida. “Isso não muda nada. Só vale quando ela fala: ‘eu sou igual, porque sou igual. Eu tenho a mesma origem’, destaca Vanda Machado. E os profissionais de educação também precisam se conscientizar. “É o primeiro passo: reconhecer que essa história é sua. Se isso não acontece, vou contar a história do outro”, diz a professora Catarina Pedreira.
Falta de identidade
Talvez por isso, Luciana Araújo encontre tantas dificuldades em “aplicar” a lei nas instituições em que atua. Muitos de seus colegas de trabalho, especialmente das áreas “exatas”, acham que não têm nada com o assunto. E os alunos também pouco se identificam. “Morando na periferia, 95% ou mais desses estudantes são afrodescendentes. Ainda assim, não têm essa identidade de pertencimento. Até entendem um pouco sobre o negro, mas, ao mesmo tempo, não aceitam a cultura, têm ojeriza ao candomblé. Como durante muitos anos o candomblé foi reprimido e visto de forma preconceituosa, eles tentam negar até hoje. Mesmo se entendendo como negros, ainda se envergonham da religião”, conta a professora.
No próprio Opô Afonjá, as crianças muitas vezes são rotuladas como “alunos da escola da macumba”. Logo que chegam, algumas mães se mostram reticentes. Em pouco tempo, passam a ter outra atitude. Mesmo as evangélicas. Aliás, apenas cinco alunos entre os 350 matriculados são filhos do terreiro. “Tudo muda quando a família percebe que é uma instituição de formação sistêmica, mas com um diferencial, um grande pátio, um recreio no terreiro, museu, biblioteca, e essa bela reserva atlântica ao redor”, enumera Iraildes Nascimento.
Mais do que um amplo e acolhedor espaço físico, o que certamente garante o cumprimento da lei – antes mesmo de sua promulgação! – na Escola Eugênia Anna é o envolvimento de toda a comunidade, desde os filhos do terreiro, o porteiro, a merendeira até os pais dos estudantes, os diretores e o governo municipal. “Não dá para cada um fazer alguma coisa em seu cantinho. É preciso ter essa solidariedade, um sentido coletivo. E isso só acontecerá se nos juntarmos para construir outra realidade de escola. Não se trata de história para brancos ou para negros, mas da possibilidade de entender a nossa história de outro ponto de vista”, arremata a educadora Vanda Machado.
FONTE: Revista de Historia / Juliana Barreto Farias
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