O Conselho de Segurança da ONU aprovou no último dia 15 de outubro, a remoção de 20% do contingente militar instalado no Haiti. A previsão é retornar, no prazo de um ano, ao número equivalente a 7100 militares, o mesmo de antes do terremoto que assolou o país em janeiro do ano passado.
Enviada ao Haiti em 2004, a MINUSTAH (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti) é rodeada por casos de abusos aos direitos humanos, disseminação de doenças e corrupção. A divulgação e a conseqüente punição destes crimes que violam não só a integridade dos cidadãos haitianos mas também a soberania e independência do próprio país, são raras, no entanto. As informações veiculadas por grande parte da imprensa são carregadas de elogios à ocupação militar, principalmente brasileira, protagonista da missão, o que dificulta a discussão sobre a realidade haitiana e a retirada ou não das tropas internacionais.
No intuito de promover a reconstrução física, política e econômica do país, as forças de paz da ONU detém a hegemonia nos processos de deliberação sobre a situação do Haiti, em detrimento da participação do povo. O processo eleitoral de 2006, por exemplo, não contou com o partido popular do país, e a cátedra foi formada conforme os moldes dos órgãos internacionais.
O coronel Ariovaldo Obregon, Oficial de Ligações do Exército, reitera a necessidade da permanência do exército no Haiti, pois, segundo ele, desde a sua independência em 1804, o país vive em meio a um contexto de desordem política e social, falência dos serviços públicos e proliferação de gangues e marginais. Segundo ele, um dos papéis do exército é ajudar na formação dos próximos governantes para que, no futuro, o país consiga “andar com as próprias pernas”.
Os grandes veículos de imprensa ilustram as ações humanitárias exercidas pelas tropas da MINUSTAH de forma exagerada, exaltando as conquistas na área de reconstrução da infra-estrutura e nos avanços no controle de doenças infecto-contagiosas. A espetacularização da miséria, por meio das noticias divulgadas, aumenta os índices de venda dos jornais e outras plataformas de comunicação, além de reafirmar a necessidade de permanência das tropas no país.
O Haiti conta com mais de um milhão de desabrigados e 2300 deslocados como conseqüência da fome, sede, e desastres naturais. O aumento exponencial dos preços de moradia e alimentação promove um êxodo da população em direção ao campo, e as poucas terras que sobraram concentram-se nas mãos da elite e do exército internacional. Essa situação se agrava com a degradação do espaço urbano e o conseqüente surgimento de favelas nas principais cidades. Ao relatar uma missão de entrega de água potável a uma comunidade na periferia, o coronel Obregon contou que, em reação à quebra de uma caixa d’água no local, se recusou a levar água para essa região por duas semanas. “Posso entregar água sem a caixa d’água? Não posso. Aí deixamos 15 dias sem água. Faz parte. Alguém tem que sofrer. Paciência. Tem que sofrer”. Nenhuma nota sobre o ocorrido foi publicada.
Em 2005, a MINUSTAH foi protagonista de um massacre em Cité Soleil; o bairro habitado por 200.000 pessoas vivendo em condições precárias foi invadido por tropas brasileiras que tinham como objetivo capturar o líder de uma gangue. Sete horas e 22.000 cartuchos depois, os militares se retiraram alegando a morte do alvo e o sucesso da missão. Seth Donelly, ativista do San Francisco Labour Council, filmou o atentado e contabilizou a morte de 23 civis. Apenas no ano seguinte, a ONU reconheceu o assassinato dos haitianos; porém, como não pertencem ao país caribenho e possuem imunidade perante certas leis, nada aconteceu aos militares responsáveis pelo massacre.
Segundo o coronel do Exército José Bezerra de Menezes Neto, do Centro de Comunicação Social do Exército Brasileiro (Ccomsex), em pales a instituição procura divulgar sempre a verdade dos fatos, mas admite a dificuldade de apuração e levantamento de dados precisos. A impossibilidade de acesso a certos documentos oficiais e as informações escassas provenientes das plataformas de comunicação oficiais reitera a hipótese de que os integrantes da MINUSTAH continuam locados no Haiti por questões políticas e econômicas, em detrimento da implantação de uma sociedade democrática e igualitária na ilha.
A missão, composta em sua maioria por países da América Latina, tem um caráter neo-colonizador, substitui a autonomia do Haiti pela presença internacional e impossibilita a reconstrução da nação pelo seu povo, segundo Lúcia Skromov, professora e integrante do Comitê Pró-Haiti no Brasil. “O país não ficou pobre, foi empobrecido. E virou a expressão mais acabada da derrota do neoliberalismo. Foi trabalhado para ser um estado mínimo, ser um governo fraco e ter uma sociedade descarnada. Se quer esse país ou a localização estratégica que ele possui?”, explica.
Em uma carta escrita em conjunto pela retirada imediata das tropas da MINUSTAH, Eduardo Galeano, Juan Gelman, Frei Betto e Adolfo Pérez afirmam o caráter ambíguo da ocupação militar na ilha caribenha: “É inconcebível que os exércitos de nossos países estejam diretamente envolvidos na ocupação militar de uma nação que já foi uma luz de esperança e liberdade para nossos movimentos de independência em suas origens, e prestou um apoio essencial à campanha de Simon Bolívar pela libertação da América Latina. É inconcebível que nossos países, que têm sofrido tantas agressões estrangeiras, estejam agora pisoteando a soberania de outro que tem vivido inúmeras e brutais intervenções desde o dia que rompeu as correntes da escravidão e do colonialismo.”
Lúcia Skromov explica que até hoje o Haiti paga pelo pecado que cometeu: o pecado original de lutar pela liberdade, levando às últimas conseqüências a bandeira da Revolução Francesa. “O escuro do Haiti, em todos os sentidos; da cor do negro e da vida desses negros, acendeu a luz da Revolução.”
No dia 5 de novembro ocorrerá um ato continental em pról da retirada imediata das tropas de ocupação da ONU no Haiti. O evento contará com a presença de figuras nacionais e internacionais e visa à divulgação da atual situação do país bem como a discussão de como a ilha está sendo retratada pela imprensa.
FONTE:Caros Amigos.terra / Isabel Harari é estudante de Jornalismo da PUC-SP
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