O apelo gospel dos jesuítas e a primeira cantora brasileira (e negra) aplaudida na Europa são algumas das muitas histórias da música popular brasileira
A versatilidade da música popular brasileira rende também muitas histórias para contar, algumas delas lembradas aqui em tributo ao Dia da Música (22 de Novembro) e a Santa Cecília, padroeira dos músicos. Uma delas remete ao período colonial: os jesuítas usaram de um, digamos,apelo gospel para doutrinar os índios e propagar o Evangelho. Resultado: tudo acabou em festa. Os nativos pediram bis ao ouvir o canto de uma procissão católica, e até os jesuítas acabaram tocando música indígena.
Outra curiosidade é que, ao contrário do que muitos dizem, “Pelo telefone”, de Donga, pode não ter sido o primeiro samba gravado no Brasil, em 1917. Isso porque havia um italiano em Porto Alegre que inaugurou o mercado fonográfico na América do Sul gravando os primeiros discos de tango e samba a partir de 1913.
Abaixo, destacamos a história de Lapinha, a primeira cantora brasileira aplaudida na Europa – mas, só depois de esconder sua pele negra.
Por Paulo Castagna
Óperas já eram encenadas no Brasil durante o século XVIII. Foi nesse período que surgiu, no Rio de Janeiro, Joaquina Lapinha, a primeira cantora lírica brasileira que virou celebridade, e sobre quem pouca coisa se sabe. O sucesso de suas apresentações a levou a fazer uma longa e bem-sucedida temporada na Europa. Mesmo assim, até hoje não foram descobertos retratos que mostrem suas feições. Só existem citações de seu nome em documentos da época, principalmente programas teatrais, partituras e críticas musicais. Sua origem é tão misteriosa quanto sua morte. O pouco que se sabe dela é que, por ser negra, teve que vencer diversos entraves sociais para que pudesse deleitar as plateias cariocas e lusitanas.
Mesmo na Europa, raramente havia cantoras de ópera até meados do século XVIII. Os papéis femininos eram, em grande parte, interpretados por homens. Muitos desses intérpretes, por sinal, eram castrados, como o famoso cantor italiano Farinelli, alcunha pela qual Carlo Maria Broschi (1705-1782) se tornou conhecido. Algo parecido ocorria no cenário da música sacra. A Igreja Católica foi a instituição que mais restringiu o gênero feminino, proibindo que as mulheres cantassem nas missas até o começo do século XX. Uma passagem da Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios justifica essa proibição: “É vergonhoso para a mulher falar na igreja”. E na opinião de Santo Ambrósio, que viveu no século IV, “a mulher deverá permanecer calada na igreja”.
Ópera, um hobby dos pobres
Foi somente a partir das transformações sociais e do crescimento dos valores burgueses – como o maior acesso à música, a construção de teatros públicos de ópera que podiam ser frequentados pela compra de ingressos, e não somente pela condição de nobreza – no decorrer do século XVIII que as mulheres começaram a atuar e a cantar profissionalmente. Como o canto sacro ainda lhes era vetado, essas primeiras profissionais acabaram encontrando seu espaço no teatro e na ópera. A italiana Margherita Durastanti (ativa entre 1700 e 1734) foi uma das primeiras cantoras profissionais na Europa, chegando a participar de várias óperas de Händel (1685-1759) na Inglaterra. Cantoras brasileiras surgiram pouco tempo depois.
Já havia mulheres cantando no Rio de Janeiro e em Minas Gerais pelo menos desde 1770. Nesse ano, João de Souza Lisboa, proprietário da casa da ópera de Vila Rica – atual Teatro Municipal de Ouro Preto (MG) –, chegou a comunicar ao governador da capitania de Minas Gerais que já tinha “na casa da ópera duas fêmeas que representam, e uma delas com todo o primor, muito melhor que as do Rio de Janeiro”. Diferentemente do que ocorria no Velho Mundo, eram comuns no Brasil, até o início do século XIX, atores negros e mulatos, maquiados com tinta branca e vermelha, representando os europeus daquela época. Cantar ópera por aqui, naquele tempo, não envolvia o glamour dos cantores de hoje. Esse tipo de trabalho, muito pelo contrário, era feito por subalternos, e seu descumprimento poderia ser severamente punido. Em casos extremos, a punição podia ser até a prisão.
Foi nesse contexto que surgiu Lapinha, cujo nome verdadeiro era Joaquina Maria da Conceição Lapa e que começou a atuar e cantar em óperas no Rio de Janeiro na década de 1780. Manuscritos que vêm sendo estudados em Portugal, principalmente pelo musicólogo inglês David Cranmer, demonstram que ela trabalhou em várias peças dos italianos Giovanni Paisiello (1740-1816) e Domenico Cimarosa (1749-1801), os compositores mais conhecidos do gênero em seu tempo. De Paisiello, ela cantou, entre outras, “O Barbeiro de Sevilha” – cujo enredo também foi musicado por Gioacchino Rossini (1792-1868) anos depois. Lapinha se apresentou ainda em algumas óperas do italiano Fortunato Mazziotti (1782-1855), do lusitano Marcos Portugal (1762-1830) e do brasileiro José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), que lhe dedicou papéis líricos em “Ulisséia” e em “O Triunfo da América”, representadas no Rio de Janeiro em 1809.
Uma negra em turnê pela Europa
Preparar-se para atuar numa ópera, tanto naquela época quanto posteriormente, exigia muito tempo e bastante trabalho. As boas cantoras executavam com frequência as coloraturas, ou seja, a emissão de várias notas agudas numa só sílaba, técnica que exigia muito do intérprete e que, quando bem utilizada, causava furor na plateia. Lapinha não só tinha nesse recurso um de seus trunfos, como o usou para cativar o público, segundo algumas críticas que foram preservadas até hoje.
Os documentos até agora localizados sobre Lapinha indicam que, depois de seu começo de carreira no Rio de Janeiro, a cantora se apresentou em várias cidades de Portugal entre 1791 e 1805. A edição da Gazeta de Lisboa de 16 de janeiro de 1795 se refere a “Joaquina Maria da Conceição Lapinha, natural do Brasil, onde se fizeram famosos os seus talentos músicos, que têm já sido admirados pelos melhores avaliadores desta capital”. Em 6 de fevereiro de 1795, o mesmo jornal fez uma crítica ainda mais elogiosa, que enfatizou a capacidade que a cantora tinha de deixar até mesmo plateias europeias deslumbradas: “A 24 do mês passado, houve no Teatro de São Carlos desta cidade [de Lisboa] o maior concurso que ali se tem visto, para ouvir a célebre cantora americana Joaquina Maria da Conceição Lapinha, a qual, na harmoniosa execução do seu canto, excedeu a expectação de todos: foram gerais e muito repetidos os aplausos que expressavam a admiração que causou a firmeza e sonora flexibilidade da sua voz, reconhecida por uma das mais belas e mais próprias para teatro”.
Além de receber os aplausos dos portugueses, Lapinha havia superado outra barreira na Europa: ela foi uma das primeiras mulheres a receber autorização para participar de espetáculos públicos em Lisboa. Assim que chegou à cidade, Joaquina se deparou com um veto da própria rainha D. Maria I à participação feminina nas apresentações realizadas nos teatros da capital. O motivo provavelmente estava relacionado aos flertes de seu marido, o rei D. Pedro III, com as atrizes que se apresentavam em Lisboa. O viajante sueco Carl Ruders (1761-1837), responsável por essa informação, também comenta que a cantora era obrigada a disfarçar a cor de sua pele – que os europeus julgavam “inconveniente” – com tinta branca: “Joaquina Lapinha é natural do Brasil e filha de uma mulata, por cujo motivo tem a pele bastante escura. Este inconveniente, porém, remedeia-se com cosméticos. Fora disso, tem uma figura imponente, boa voz e muito sentimento dramático”.
Depois de passar esse período em Portugal, enfrentando as dificuldades decorrentes da sua condição de mulher negra, a cantora retornou ao Rio de Janeiro e continuou cantando óperas. Seu nome parou de aparecer nos anúncios de espetáculos de música lírica em meados de 1813.
O sucesso que Joaquina Lapinha alcançou em vida ocorreu independentemente de sua condição racial. Isso demonstra que a herança africana e a excelência da arte, mesmo vistas por um olhar europeu, não eram fatores opostos, como se acreditava antes.
Paulo Castagna é professor de História da Universidade Estadual Paulista e coautor de Música e História no Brasil (Alameda, 2010).
Saiba Mais – Bibliografia
BITTENCOURT-SAMPAIO, Sérgio. Negras líricas: duas intérpretes negras brasileiras na música de concerto (séc. XVIII-XIX). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008.
BRITO, Manuel Carlos de. Estudos de história da música em Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, 1989.
BUDASZ, Rogério. Teatro e música na América Portuguesa: ópera e teatro musical
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