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quinta-feira, novembro 03, 2011

Fé e identidade cultural















Tradição em Tiradentes, o Congado de São Benedito, que sai às ruas dia 1º de novembro, resgata as raízes negras da região e a tradição da Igreja Nossa Senhora do Rosário, criada e mantida pelos escravos


  • Os sertões dos Cataguás, o atual território de Minas Gerais, foi percorrido por grupos de paulistas que adentraram matas a caçar indígenas para aprisionar e utilizá-los na mão de obra das fazendas paulistas. Conhecedores dos caminhos e trilhas, foram os primeiros a organizar as bandeiras para encontrar as tão sonhadas montanhas de prata, ouro e pedras preciosas. Nos últimos anos do século XVII, o ouro foi encontrado nas proximidades do Tripuí, depois em outros locais. Logo começam a instalar arraiais que prosperaram e se transformaram nas primeiras vilas. Com a notícia dos achados se alastrando e atraindo cada vez mais gente para as Minas, o ouro se tornou o principal objetivo de muita gente, que procurava a riqueza imediata.


    Inicialmente o ouro aluvional era mais fácil de ser garimpado, depois outras técnicas foram empregadas e foi necessário buscar a mão de obra escrava na África. Milhares de homens e mulheres foram arrancados de suas comunidades para o trabalho nas minas auríferas e no território diamantino. Derrubaram matas, desviaram leitos de rios, construíram barragens, transformaram a geografia. Encontraram toneladas de ouro. O metal precioso proporcionou o enriquecimento de muitos, permitiu-se que templos barrocos fossem edificados. Portugal se embelezou com as construções de palácios e conventos. Lisboa até se reconstruiu, após o terremoto, graças ao ouro das Minas. E a Inglaterra foi a maior beneficiada, teve como alavancar a Revolução Industrial.


    Enquanto tudo isso era movido pela força do metal precioso, milhares de negros viviam longe de seus familiares. Viviam em senzalas úmidas, escuras e em condições precárias de higiene. Subalimentados, enfrentavam jornadas de trabalho pesadas e na água. Frio, fome e fatiga. Mas um dos maiores tormentos dos escravos era a saudade dos queridos na África.


    Não sabemos quantos escravos foram trazidos à mineração aurífera e diamantina. Nem sabemos quantos trabalharam na edificação de nossos templos e monumentos civis. Não sabemos quantos morreram em acidentes de trabalho. Ou mesmo quantos morreram durante a viagem da África até ao Brasil, pois as condições da viagem eram terríveis. Ainda temos muitas perguntas sem respostas.

    Capela dos escravos


    Na antiga Vila de São José del Rei, a atual cidade de Tiradentes, na primeira metade do século XVIII, mais de cinco mil escravos trabalhavam na mineração aurífera. Construíram sua capela, dedicada a Nossa Senhora do Rosário. Toda de pedra e sua fachada com elementos esculpidos em arenito. Na fachada colocaram um oratório com a imagem de São Benedito. Seu altar-mor é uma estilização do altar da Matriz de Santo Antônio. Singelo e delicado. Em uma peanha lateral há uma imagem de Santo Elesbão em iconografia excepcional, defendendo a igreja e com o pé sobre a cabeça do rei branco. Nos altares laterais dois santos negros: São Benedito e Santo Antônio de Cartagerona. As pinturas dos forros da igreja foram realizadas pelo mulato Manuel Vitor de Jesus. É na capela-mor dessa igreja ele foi sepultado.



    A comunidade do século XVIII era organizada através da cor, por isso cada grupo tinha sua irmandade: a dos brancos, dos crioulos, dos mulatos, dos pardos. Em cada localidade se construía uma igreja dedicada a Nossa Senhora do Rosário.

    Na antiga Vila de São José, a presença de negros era expressiva. Tanto que construíram um sólido e belo templo. Como o ouro é um recurso natural, esgotou-se. Veio o endividamento dos fazendeiros e mineradores. Aconteceu a Inconfidência Mineira. A sede de São José entrou em decadência profunda, foram mais de cem anos de pobreza e esquecimento.


    Uma das mais graves consequências da exaustão das minas auríferas foi a retirada da população negra da antiga Vila de São José. Assim, ficamos com o belo templo, mas sem os costumes afros que permeiam a cultura brasileira. Os grupos de negros ficaram nos arraiais que conseguiram desenvolver outras atividades além da mineração.

    Resgate da memória


    Muitos anos depois, surge a proposta de se resgatar da Festa do Rosário, inicialmente incentivada por Ariadne Motta, que era funcionário do IPHAN e fervorosa devota da Senhora do Rosário. Depois surgiu o Congado de São Benedito, que está aos poucos recuperando a tradição e propiciando o reencontro com um dos traços mais importantes da nossa cultura, da maior autenticidade – o Terno de Congado. Muitos trabalhos já foram realizados: pesquisas históricas, figurinos, tambores, cantos, ritmos, passos, aromas, formas, sabores.


    A igreja de Nossa Senhora do Rosário reconquista sua significação religiosa. Deixa de ser museu para ser palco de fé e de devoção negra. A imagem de São Benedito que tantos anos ficou estática em seu altar desce e vai para o andor, revelando que o cupim estava devorando a bela imagem setecentista. Seu andor foi decorado com ervas aromáticas, temperos, legumes, sementes. O andor de Nossa Senhora do Rosário recebe lírios brancos, cravos e rosas. Com a luz dourada do entardecer, as imagens saem pelas ruas coloniais de Tiradentes. O Congado de São Benedito veio abrir a procissão. As imagens retornam à igreja e os congadeiros, que durante longos anos foram proibidos de entrar no templo, vão até ao altar prestar as últimas homenagens. A força do canto, os tambores, a presença das rainhas e guardas, tudo ganha vida e expressividade. É um impressionante espetáculo de fé e devoção.


    Pessoas simples da comunidade, que deixam seus afazeres para prestar homenagem a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Dona Germana, a Rainha do Estandarte já é bisavó, dona de casa. Dona Erci, a Rainha do Congado, é matriarca de extensa família, é doméstica, benzedeira e grande devota da Mãe do Rosário. Renilda é cozinheira e costureira e integra a Guarda Feminina do Congado. João Bosco é balconista, trabalha em uma farmácia da cidade e é da Guarda da Rainha. Ana Flávia é artesã e leva sua filhinha para participar do Congado. E, por ai vai, cada um com sua história e sua devoção comum. Juntos ganham força e resgatam do esquecimento uma das antigas tradições de nossa tricentenária Tiradentes, a devoção dos negros à Nossa Senhora do Rosário e São Benedito.


    O Congado de São Benedito sairá no dia 1º de novembro, do Largo do Ó, às 17h, e percorrerá pelas ruas de Tiradentes, levando flores para Nossa Senhora do Rosário.

    FONTE: Revista de Historia.com

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