No bar do Alfredinho ouve-se ótima música,
afina-se a cultura e apura-se o debate político
Bip bip, no Rio de Janeiro, é sinônimo de boa música e solidariedade. Barzinho frequentado por gente que entende de cultura e política, bem como por turistas inteligentes, não é tão conhecido quanto merece. Sua fundação remonta ao 13 de dezembro de 68, data funesta para a história brasileira: naquele dia foi decretado pela ditadura o Ato Institucional nº 5. Mas a ironia da sorte não podia ser mais bizarra: no coração de Copacabana, junto ao terror, surgia então uma experiência de paz, cultura e fraternidade.
Chegando ali durante o dia, na Rua Almirante Gonçalves (que, na verdade, é uma pequena praça), é quase impossível reconhecer o minúsculo boteco: abre mais ou menos às 19h30 e, antes não passa de uma porta de ferro anônima, no bairro-kasba que foi tão badalado tempos atrás. Mais tarde, a transformação. Chega primeiro o dono, Alfredo Jacinto Melo (o Alfredinho), e depois segue a procissão de amigos, músicos e fregueses, em crescente participação, até noite alta. Nas paredes, antigas fotos e desenhos, caricaturas, artigos de revistas para atualização dos clientes.
As guias turísticas sem exceção confirmam que a música, prato forte do lugar, é excelente. A atmosfera é ainda melhor. Os músicos, de todos os gêneros – da bossa nova ao choro –, sejam eles amadores ou profissionais, tocam de graça. Não existem garçons, porque o gerente único, chefe carismático ou patrão que seja, é ele, Alfredinho. Sentado à porta, à frente de sua mesinha, levanta-se de vez em quando noite adentro para encher seu copo e controlar fregueses pouco silenciosos. Cada cliente se serve sozinho: abre a geladeira e recolhe o que mais gosta, passa na porta e deixa nome e consumação no livro-caixa remendado de Alfredinho. Na hora de sair, o cliente paga, por iniciativa própria, os preços honestíssimos. O latão para as doações está sempre à vista e frequentemente incrementado. Quer dizer, trata-se de uma experiência bem-sucedida de autogestão.
“Nós do Bip, nunca eu”, gosta de dizer o mestre, “porque nem Pelé fazia gol sozinho.” Mas é fato que o grande mérito desse pequeno milagre é dele. Comprou o ponto em 84 e, de maneira singular, imprimiu sua alma no lugar. Genius loci, diziam os latinos. Carioca de carteirinha, 70 anos, aspecto carrancudo e voz rouca, a sair com certo esforço, poderíamos defini-lo, de todos os pontos de vista, acentuadamente lulista. A realização do Bip Bip, como hoje conhecemos o boteco, foi o resgate de uma vida. “Tive infância e adolescência sacrificadas, muito pobre”, lembra Alfredinho, falando baixo: “... chorava quando passava na frente do Colégio Pedro II, porque não podia estudar. Quando comecei a fazê-lo, de noite, dormia três horas e, ao levantar, tomava chuveiro com água de poço. O que me animou foi a vontade de ficar menos ignorante a cada dia que passava”.
“Fui burro a adolescência inteira: só pensava em futebol, futebol, futebol! Dali a pouco, comecei a ler nossos escritores. Iniciei com Jorge Amado, e me deu uma aflição muito grande pelo tempo que eu perdi. Estudei até a universidade, enquanto trabalhava, porque queria ser advogado dos pobres. Mas depois fui convencido pelo meu professor de que não teria tido espaço, que o Direito era coisa muito séria e eu, que não tinha condições, desisti.”
A paixão pelo futebol continua (ele é torcedor do Botafogo), mas praticada com certa frieza, por causa “dos escândalos de dirigentes corruptos” e da inaceitável decadência comercial do esporte. Além dos estudos, das leituras e do menor apego ao futebol, foi a recusa à corrupção que, para Alfredinho, abriu as portas de uma vida diferente. Ele trabalhava como “corretor de fundos públicos” e, quando o jogo se fez pesado, “tinha duas opções: ficar e virar milionário ou fugir da corrupção”. optou pelo Bip Bip.
Essa história pessoal reflete a identidade do barzinho, reconhece Alfredinho: é compromisso com os pobres, através da arte, da cultura e da solidariedade. É opção pela qualidade de vida, com relativa indiferença pelo dinheiro. “Vários personagens, até chineses, já me propuseram um bom dinheiro para transformar isso tudo em algo mais comercial, mas eu fico na minha. Não dá para abandonar tudo o que construímos.”
“Além dos amadores, passaram por aqui os maiores músicos brasileiros, mas, por elegância, não quero citá-los, não quero correr o risco de esquecer ninguém”, diz Alfredinho. Além disso, o bar, que foi comprado para ser só ponto de encontro entre amigos, hoje cuida de lançamento de livros, CDs, exposições de arte e projetos sociais. A partir de julho, o sábado, em que não há música, será dedicado a organizar palestras de intelectuais amigos, “para difundir pensamento. Aqui a garotada discute cultura e política... e, depois da conversa, cineclube”.
O lado social do Bip Bip começou com a parceria de Betinho e hoje compreende assistência e capacitação para crianças de Vila Isabel, distribuição de 40 cestas básicas mensais e dezenas de projetos contra a pobreza, financiados com doações de amigos/clientes e venda de mercadoria solidária. Comovedor é o almoço de Natal, com 700 refeições para qualquer pobre que passa. Hoje em dia, o barzinho pode ser definido, sem temor de desmentido, o único exercício comercial sem fins lucrativos.
O estranho nome Bip Bip foi dado em 68 pelos fundadores, que admiravam os primeiros foguetes russos daquela época, mas sem querer atribuir conotação política alguma, como algum malicioso poderia suspeitar. Era só o fascínio pela conquista do espaço, a velocidade: daí o onomatopaico Bip Bip, nome que contradiz o estilo e os ritmos da casa de hoje, lentos e serenos.
FONTE: CARTA CAPITAL / Claudio Bernabucci
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