Há 99 anos, as águas da Baía de Guanabara foram palco de um evento marcante para a História do Brasil. O Rio de Janeiro, antiga capital federal, foi posto sob a mira de canhões poderosíssimos. Com a ameaça de ser bombardeada por uma das Marinhas de Guerra mais potentes daquela época, a cidade parou. A Nação parou. Parou e enfim olhou com a devida atenção para aqueles homens. Quem eram eles?
Eram os homens que sustentavam a Marinha do Brasil. Marinheiros, em sua grande maioria negros, colocados sob a custódia de oficiais muitas vezes despreparados, tendo que lidar, diariamente, com as mais degradantes condições de vida e trabalho, submetidos a um bárbaro e vergonhoso regime disciplinar que incluía, entre as indicações de pena, os castigos corporais, mormente com a chibata.
Foi com o intuito de chamar a atenção para a sua causa, buscando resolvê-la enfim, posto que muitas outras tentativas já haviam logrado insucesso, que os marinheiros brasileiros sublevaram-se em novembro de 1910, no evento histórico conhecido como Revolta da Chibata.
Mais do que lutar contra um regime disciplinar extremamente degradante, que dava continuidade à cultura da escravidão no país ainda depois da Abolição, a luta travada por aqueles homens foi pelos seus direitos democráticos, pelos seus direitos humanos. Anos após a assinatura da Lei Áurea, ainda existiam práticas típicas do sistema escravista, e a Marinha possuía, em seu corpo de oficiais, homens que se colocavam como verdadeiros senhores de escravos, fazendo dos navios sua fazenda.
Em 1910, sob a liderança, principalmente, do marinheiro João Cândido, aqueles homens atingiram vitórias e derrotas. Por um lado, conseguiram chamar atenção para a sua causa, colocar em discussão sua situação e, de fato, fizeram com que fosse extinta a degradante utilização do malévolo instrumento correcional, a chibata. Também conseguiram que tivesse início uma melhoria das condições de vida e trabalho do corpo de marinheiros do país. Todos aqueles que atuaram na Marinha do Brasil após a Revolta dos Marinheiros de 1910 devem muito aos que se empenharam naquela luta.
Contudo, as derrotas também constituem uma boa parcela dos resultados daquele movimento. Os envolvidos foram perseguidos, não obstante ter sido concedida a eles anistia. Aquela farsa serviu somente para dar tempo ao governo de se articular a fim de iniciar uma severa perseguição dos marinheiros que se haviam revoltado. Muitos foram presos, alguns morreram em decorrência disso, outros foram colocados em situação marginal. As perdas foram muitas!
É possível até mesmo dizer, diante do que se sabe acerca das consequências daquela revolta, que a chibata, como objeto e item utilizado como ferramenta de correção dos marinheiros, saiu de cena. Mas não saiu em uma perspectiva mais abstrata, no sentido em que o governo continuou a ferir os direitos dos marinheiros, perseguindo-os. A "chibata" continuou a ser um instrumento opressor, um instrumento degradante.
E a História do Brasil revela uma série de eventos em que a "chibata" foi utilizada. Quem poderia negar que a censura, o rompimento do direito de livre expressão, é uma forma de impor uma ordem por meio de atos contrários à Democracia? E a censura, esta chibata que fere os direitos democráticos, tão intensamente presente na nossa história. Também as práticas de cooptação das massas, formas de legitimar um sistema com falhas, chibatadas na sociedade, no exercício da cidadania.
Os marinheiros, há 99 anos, lutaram contra a chibata que talhava as costas de homens que trabalhavam em função da defesa de seu país. O Brasil, hoje, precisa encarar as "chibatas" que ferem a cidadania, o pleno exercício da Democracia. A desvalorização da Educação, prática que golpeia o futuro do país, é um ícone da "chibata" que ainda é empunhada por homens que se sentem proprietários de escravos, proprietários de brasileiros. O descuido - negligência mesmo, em certos aspectos - com relação ao meio ambiente é, no mesmo sentido, uma forma de chicotear o Brasil do futuro, o mundo do futuro.
Essas e outras são práticas que podem ser chamadas de "chibatadas", posto que são, também, uma forma de violência. Diante das chibatas, os homens colocam-se de joelhos, feridos. Já não mais é possível permitir que elas existam. Chibatas, nunca mais!
Artigo de Ivan Bilheiro
FONTE: O GLOBO
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