Ex-craque e sempre militante,
Afonsinho pede vigor e intensidade contra preconceito em campo e declara:'Não
dá mais para pôr panos quentes'
"Um momento, que doutor Afonso vai atender." Doutor Afonso não
atendeu de prima. Foi só na quarta ligação que ele se despiu do clínico geral
para retomar o Afonsinho, engajado ex-craque do time do Botafogo. Ainda assim,
demorou um pouco para entrar no jogo. "Aqui é fogo na roupa", disse,
expirando longamente ao telefone.
Afonsinho está com 66 anos. Aposentou-se no ano passado, mas dá expediente
três vezes por semana na Unidade de Saúde Manoel Arthur Villaboim, em Paquetá,
RJ. Diagnostica gripe, hipertensão, diabete, erisipela e tem fôlego para outras
mazelas da vida. O racismo, por exemplo, entrou em seu protocolo depois que
três episódios praticamente seguidos enfeiaram os gramados do Brasil. Os
insultos aos jogadores Tinga e Arouca e ao árbitro Márcio Chagas da Silva o
levaram a concluir o seguinte: "Não dá para pôr panos quentes".
Afonsinho se injuriou na quinta-feira com a pena branda dada ao
Esportivo, que não perderá pontos nem será expulso do Campeonato Gaúcho, mesmo
depois de o juiz anotar na súmula o que ouviu da arquibancada: "Volta para
a selva, seu negro macaco, ladrão, safado, imundo. Temos que matar todos, seus
negros sujos". O clube terá de desembolsar R$ 30 mil. Para esse crítico
contumaz do neoliberalismo, dinheiro não compra tudo. "Tem que punir o
preconceito com o maior vigor possível e com muita intensidade."
Quando jogador, Afonso Celso Garcia Reis conseguiu sua liberdade na
Justiça. Foi um dos pioneiros do passe livre, e por esse motivo sentiu olhos
tortos na sua direção, inclusive dos colegas de campo. A barba de matusalém
também lhe fechou espaços entre as quatro linhas. Acabou por ser exilado no
time do Olaria, período durante o qual terminou a faculdade de medicina. O
meia-direita ainda atuaria no Flamengo, Santos, Vasco, América-MG e Fluminense.
Sempre gostou de fazer política, mas se sentiu aliviado quando perdeu para
deputado, na época da Constituinte. Acha que a bandeira do racismo pode ser uma
para o Bom Senso Futebol Clube, "porque tem de lutar no profissional e no
social". Por isso ele participa de projetos no único campo de Paquetá, no
qual reúne a garotada e os veteranos em torno do esporte que nasceu para agregar,
não para discriminar.
A seguir, a entrevista desse pai de
cinco filhos e avô de cinco netos. "Mas vai desempatar daqui a um
mês", avisa. Com filho ou com neto? "Poxa, agora você me deu uma
moral legal."
Você ficou surpreso com os últimos
casos de racismo nos campos de futebol do País?
Afonsinho - O que chama a atenção é a frequência. Ela se acelerou. Mais que isso,
ela se associou a outras manifestações de raiz semelhante. Aqui no Rio, outro
dia, amarraram um camarada, um ladrão, no Aterro. Eu não sou de sofrer de
véspera, mas acho que essas manifestações têm uma ligação e isso é muito
preocupante, sim.
O brasileiro estaria perdendo o pudor
de se mostrar racista?
Afonsinho - Não acho que esteja perdendo o pudor. Acho que isso faz parte de um
conjunto de expressões. A gente também pode juntar a isso as brigas entre
torcidas. Veja que o ano terminou de uma maneira horrorosa. E tudo é
diretamente proporcional à baixa qualidade técnica do futebol. Quando o
espetáculo é bom, isso não acontece. Eu me lembro dos melhores tempos do
Flamengo, quando o time ganhou em Tóquio. A gente brincava que o chefe da
torcida do Flamengo e todos os outros torcedores do time tinham ido estudar em
Londres. Era um cavalheirismo, uma tranquilidade…
Diante do que aconteceu com o juiz
Márcio Chagas da Silva, em Bento Gonçalves, o jogador Luís Fabiano teria
questionado se era racismo de verdade ou se aquilo ‘era mera provocação’.
Afonsinho - Isso aí não procede. Existem resíduos, é racismo, sim. Não dá para pôr
panos quentes. O esporte é um ambiente de lazer, de recreação, mas isso não
permite que você o desassocie da questão social. É um espaço de expressão. Eu
acho muito ruim a postura do Luís Fabiano. Procurar escapar, ficar fora… Acho
muito ruim para ele mesmo como negro. E uma autonegação. Como disse o Tinga,
"a gente fica fingindo que todos são iguais".
O racismo em campo já foi muito pior?
Afonsinho - Não faz tanto tempo assim, existiam clubes só de negros e só de brancos
no Brasil. Então eu acho que já foi pior, mesmo porque os recursos dos tempos
modernos trazem mais informação e numa velocidade maior. E isso é um problema
de esclarecimento, de conhecimento.
Como se pune o racismo?
Afonsinho - Com o maior vigor possível e com muita intensidade.
Você aprova que se fechem estádios,
que os clubes percam pontos, que sejam expulsos de campeonatos?
Afonsinho - Sem dúvida, sem dúvida, é isso que chamo de ação vigorosa, que ainda não
acontece, mas um dia pode acontecer. É rigor intenso, mas com zero ódio. Me
preocupa a extensão. Propagar muito isso, e de qualquer maneira, estimula um
exibicionismo. Acho que é mais correto como fez o juiz: ele fotografou a
agressão, reagiu, se defendeu, aprofundou da melhor maneira, sem ficar com
lamentação. Tem essas duas dimensões: tratar vigorosamente e não dar corda.
Acredita que o Bom Senso Futebol
Clube poderia incorporar essa bandeira?
Afonsinho - Vi uma declaração do Alex a propósito de outra questão e achei
interessante a resposta. Ele disse que o Bom Senso precisa ter firmeza nas
bandeiras já propostas. Não querem perder a direção, não querem deixar diluir,
enfraquecer. Eles estão atuando de perto e precisam ver que propostas têm
condições de sustentar. Mas acho que o racismo é uma bandeira do mais alto
significado, ainda mais no esporte, que consegue misturar a sociedade e é um
ambiente de liberação.
O que é ter bom senso no futebol
hoje?
Afonsinho - Eu acho que bom senso no futebol é mostrar como se situar nas questões
não só profissionais, mas sociais. Bom senso também é o grupo encabeçado pela Ana
Moser, a ONG Atletas pela Cidadania, que lutou pela limitação dos mandatos de
presidentes e dirigentes a, no máximo, quatro anos. Conseguiu até mudança de
estatuto no Comitê Olímpico Brasileiro. Penso que este é o caminho: juntar
forças para conquistar direitos. Bom senso é praticar política de todas as
formas.
Continua praticando política?
Afonsinho - Sim, embora eu não seja um político formal. Sempre procuro discutir,
participar, dentro do meu perfil. Cheguei até a ser candidato na Constituinte
por causa do movimento que a gente fez entre os esportistas. Mas, das encrencas
em que eu me meti, essa foi uma das que mais me desgastaram pessoalmente.
Quando jogava, você foi vítima de
preconceito por causa da barba e do cabelo compridos.
Afonsinho - Em relação ao cabelo e à barba, tive um confronto direto com os
dirigentes, que alegaram isso para me proibir de treinar num primeiro momento e
depois até de pegar material para o treino. No entanto, tive mais problemas com
as reações dos próprios colegas por começar a jogar com passe livre. Na África,
havia negros que vendiam negros. À medida que a gente vai abrindo os olhos, é
uma coisa semelhante. Essa coisa do passe tem um paralelo muito forte com a
escravidão, com o respeito.
Hoje o jogador tem de fato o passe
livre?
Afonsinho - Tem uma porção de vínculos dissimulados. O jogador hoje é escravo do
empresário? Pode ser, mas a comparação é impossível com a época do passe preso.
Quando atinge um determinado nível, o atleta pode se libertar. O Romário largou
o empresário pra lá, o Ronaldão fez o mesmo depois. Agora, esse negócio de um
grupo de empresários ser mais forte que um clube é uma falta de vergonha na
cara dos dirigentes. Pelo menos parece que chegamos ao fundo do poço, quer
dizer, os clubes estão começando a deixar de ser reféns.
Você acha que os técnicos têm se
preocupado com o lado social do futebol?
Afonsinho - Um ou outro pode ter essa preocupação, mas não é prioridade dele. O
técnico é uma figura destacada na estrutura, mas o que ele significa nos clubes
hoje é uma grande mentira. Parece que é um gênio, um superpoderoso. Dá palpite,
fala das finanças do clube, do mercado. É uma piada. Técnico não é isso.
Técnico é para cuidar do time, e olhe lá.
Romário disse durante a semana que
podemos até ganhar a Copa dentro de campo, mas a Copa fora do campo a gente já
perdeu. Ele se referia ao alto custo das obras e a suposto enriquecimento
ilícito. Concorda?
Afonsinho - As notícias dos últimos dias não são boas. Aeroporto não sei de onde não
vai ficar pronto, tal obra também não... O futebol é algo que o brasileiro
adora, o envolvimento é muito grande. É um sonho receber amigos na sua casa
para uma festa, esse é o sentido maior. Mas estamos promovendo uma Copa num dos
períodos mais vergonhosos da sociedade humana. As premissas do neoliberalismo
submetendo todas as inter-relações são vergonhosas. É o lucro acima de qualquer
coisa. Em nome do quê marcar uma partida de futebol num horário criminoso? Em
nome do quê você vai submeter as pessoas a isso?
Faremos uma Copa pela Paz e uma Copa
contra o Racismo, como reafirmou a presidente Dilma na quinta-feira, no evento
em solidariedade às vítimas de atos racistas?
Afonsinho - Não sei bem, não consigo avaliar essa extensão. Vivemos um momento de
descontentamento. Quanto mais formos justos, melhor. A liberdade é filha da
justiça.
Você já foi chamado por Pelé, quando
ele saía do Santos, de o único homem livre do Brasil. Sente-se assim,
totalmente liberto?
Afonsinho - Totalmente livre, eu não me sinto, não. O jovem pensa assim e taí
fazendo manifestação, indo pra rua. Mas, à medida que a gente envelhece… Outro
dia eu estava vendo uma entrevista do presidente do Uruguai e me identifiquei
um pouco quando o repórter mencionou que ele foi um tupamaro, um radical, e tal
e tal. Aí o Mujica falou com toda a sinceridade: "Sim, eu fui, mas, quando
você vai ampliando seus horizontes, vê que as coisas são muito mais
complexas". Eu busco a liberdade e o equilíbrio o tempo todo, mas vivo em
sociedade, com todos esses problemas que a gente está discutindo. De qualquer
forma, em qualquer tempo, e o tempo todo, é preciso estar atento e forte, como
diz o verso da canção.
FONTE: Mônica Manir - O Estado de S. Paulo
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