Na hoje combalida indústria fonográfica é possível que uma música gravada há 38 anos volte às paradas e seja ouvida ao mesmo tempo por mais de 40 milhões de pessoas? Sim, se esse cantor for o americano Stevie Wonder e se a música chamar-se Signed, sealed, delivered, I’m yours. A canção era o tema usado pelo presidente dos EUA, Barack Obama, ao final de seus discursos e foi tocada no baile da posse, quando ele tirou a sua mulher, Michelle, para uma animada dança.
Clássico da soul music (gênero de música black dos EUA que atingiu o auge nos anos 1960 e inspirou a luta pelos direitos civis da população negra), essa composição de Stevie Wonder não é a única a fazer sucesso novamente. O cantor Seal, por exemplo, acaba de lançar um CD chamado justamente Soul, no qual ele regrava os maiores êxitos de gente como Al Green, Sam Cooke e Curtis Mayfield – ou seja, a nata desse estilo. E, mesmo antes de Obama se declarar fã do gênero, o ritmo já começava a voltar à moda.As baladas da atormentada cantora inglesa Amy Winehouse parecem coisa nova, mas são puro soul do passado. É a mesma receita seguida pelas também inglesas Estelle, Corinne Bailey Rae e Duffy, essa última dona do CD mais vendido do ano na Inglaterra.
Para coroar esse renascimento musical, 2009 é o ano da comemoração do cinquentenário da gravadora Motown, criada pelo espertíssimo Berry Gordy e responsável pelo lançamento de futuras estrelas como Michael Jackson, Diana Ross, Marvin Gaye, The Four Tops e, claro, Stevie Wonder – que Obama chama de "meu herói musical". Na próxima semana chega às lojas do Brasil o CD triplo Motown 50, com grandes hits dessa turma afinada. O melhor, no entanto, ficou reservado para o mercado americano. Lá acaba de sair a caixa de dez CDs The complete nº 1, com as 191 faixas que chegaram ao primeiro lugar das paradas, um verdadeiro fenômeno.
Trata-se de uma joia para colecionadores que reproduz o sobradinho branco onde ficava a gravadora e hoje é o endereço do Motown Museum, em Detroit. Um sobradinho cheio de histórias, nada assombradas. A mais famosa delas: Gordy montou a empresa e seu histórico Studio A (apelidado por Abdul "Duke" Fakir, do The Four Tops, de "chão sagrado") por meros US$ 800, emprestados por seu pai. Grande homenageado da próxima edição do Grammy, no dia 8, Gordy estudou piano aos 5 anos, mas teve de ajudar o pai a vender panelas para sobreviver.
Na juventude, abriu uma loja de discos de jazz (que faliu), compôs músicas (que no início ninguém quis gravar) e até cruzou em Detroit com Billie Holiday. Mas foi ao ver o entusiasmo de sua família assistindo a uma luta de boxe na tevê, vencida por um lutador negro, que teve a ideia de criar uma gravadora. "O que eu posso fazer na vida para proporcionar uma alegria parecida?", perguntou a si mesmo. O próximo passo foi chegar às rádios. Mas quando entregava os discos de artistas negros aos DJs, a recusa era geral: eles achavam uma loucura oferecer aquele tipo de música para uma plateia branca.E foi aí que o executivo iniciante deu seu golpe de gênio. Na sua opinião, o som da Motown não deveria ser rotulado de "black music", mas pop (de popular), acessível a "ladrões e policiais, ricos e pobres, judeus e gentios". Com essa visão revolucionária, formou uma banda de fabulosos músicos de estúdio para acompanhar seus artistas (os Funk Brothers) e contratou um time de compositores de primeira (Eddie e Brian Holland e Lamont Dozier). Também uma especialista em boas maneiras foi integrado ao grupo. Segundo ele, seus cantores deveriam antes de tudo saber como falar, como se vestir e até como jantar com um presidente.
O resto ficou por conta do cast da gravadora – e foi nesse ponto que as escolhas de Gordy foram certeiras. O primeiro grupo a estourar foi The Supremes, de Diana Ross, que viria a ter um caso com seu empregador. O trio gravou uma música pela qual ninguém dava nada (Where did our love go), mas ela foi direto para os primeiros lugares das paradas. Nascia o chamado "Motown sound", marcado pelo uso de cordas e metais e pelas vocalizações no estilo "pergunta-resposta".
A contratação dos Jackson 5 é um bom exemplo do jeito de trabalhar de Gordy. Um funcionário de sua companhia havia visto os garotos se apresentarem em Nova York, mas ele se recusava a ouvi-los. Dizia que não queria lidar com crianças e que já tinha muito trabalho com as aulas de "etiqueta" de Stevie Wonder. Mas ao recebê-los, contratou-os no ato. Não pense, contudo, que o início foi o conto de fadas que geralmente se conta. Nessa época, o racismo imperava nos EUA, especialmente nos Estados do sul. Em recente entrevista à revista americana Vanity fair, a cantora Martha Reeves lembra que nas turnês da gravadora eles chegavam até a ser ameaçados por pessoas armadas. Diziam: não servimos crioulos, vocês não podem comer aqui e nem usar o banheiro.
A solução era tomar banho nas estações rodoviárias e assar salsichas no calor dos refletores. Mesmo com a conquista do público, nos shows, o artista tinha de se apresentar voltado ora para a plateia branca, ora para a negra. Meio século depois, isso parece ridículo. A cantora Amy Winehouse pode até estar drogada na maior parte do tempo, mas ela sabe o significado de se apresentar ao vivo com dois vocalistas negros usando terninhos. Com muito soul (alma) e no melhor estilo Motown.
ISTOÉ
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