Todos nós conhecemos direitinho como funciona nosso racismo,
não somos inocentes.
Estive recentemente
no Rio Grande do Sul e me surpreendi com comentários de parte da imprensa
gaúcha, que, de certa forma, tentavam minimizar a gravidade das ofensas
racistas da torcedora gremista Patrícia Moreira ao goleiro Aranha, do Santos.
Após a torcedora, em prantos, ter declarado à imprensa que chamar o goleiro de
macaco não foi uma ofensa racista, e de ter publicamente invocado seu perdão,
vários jornalistas em solidariedade começaram a sugerir que Aranha tivesse a
“grandeza” de perdoar Patrícia pelas injúrias.
Se chamar um homem
negro de macaco não é uma ofensa racista, é o quê?
Uma demonstração
carinhosa de admiração e respeito?
É admissível que
alguém numa conversa declare: “Realmente aquele macaco do Joaquim Barbosa fez
um trabalho excelente no STF”?
Ou: “O macaco do
Obama é de fato um orador notável”?
“Mas como é veloz
esse macaco do Usain Bolt!”
“A macaca da minha
cozinheira prepara uma feijoada inigualável!”
Façam-me o favor!
Chamar um negro de
macaco é das piores ofensas racistas que há, ponto final. Entendo que Patrícia
esteja morrendo de medo de ser presa e tope qualquer negócio para evitar uma
descida às masmorras medievais brasileiras, que, aliás, estão cheias de negros
e negras. Compreendo também que Patrícia sinceramente não se considere racista.
Muita gente no Brasil acha que chamar um negro de macaco não é racismo. Assim
como, para muitos, ofender um homossexual não constitui preconceito ou
homofobia. Homens que espancam mulheres também não se consideram misóginos.
Isso prova, claro, que além de racistas, preconceituosas e estúpidas, essas
pessoas são ignorantes. E não é porque são ignorantes que não devem responder
por seus atos.
Sabemos muito bem
como funciona o dissimulado racismo brasileiro. Quantas vezes não somos
obrigados a ouvir contra a vontade as constrangedoras piadas sobre negros, as
abjetas expressões como “preto quando não caga na entrada caga na saída” e as
deploráveis insinuações de que a ineficiência de algum servidor negro se
explica pela cor de sua pele: “também… olha a cor… esperava o quê?”.
E tudo isso dito
por pessoas comuns, gente de “bem” que não se considera racista. Até mesmo
negros às vezes se referem a outros de forma preconceituosa, demonstrando uma
subserviência patológica e deprimente.
Todos nós
conhecemos direitinho como funciona nosso racismo, não somos inocentes.
Há os que dizem que
não somos racistas, que nosso preconceito é social, que o que existe é o
preconceito do rico contra o pobre, que o preconceito racial não tem como
subsistir num país como o Brasil, o “caldeirão de raças” em que todos se
misturam com sensualidade, amor, alegria, respeito mútuo, muito samba e muita
ginga. Ôlelê!
Será?
Isso me soa como
mais uma dessas balelas ufanistas com as quais gostamos de nos iludir, como
aquela que diz que somos um povo pacífico.
Negros ofendidos,
homossexuais agredidos e mulheres espancadas estão aí para provar que as coisas
não são bem assim.
Alguns jornalistas
chegaram a citar o fato de Mandela ter perdoado seus carcereiros ao sair da
prisão para reforçar a necessidade de Aranha perdoar a torcedora que o chamou
de “macaco”. Além de despropositada e ridícula, a comparação é capciosa.
Parecem estar querendo culpar o Aranha por insensibilidade e acabam reforçando
a ideia racista de que, se ele é negro, com certeza deve ter alguma culpa nessa
história.
Muitos alegam que é
injusto que Patrícia Moreira responda sozinha por um crime que foi cometido
também por outros torcedores no estádio do Grêmio e que não puderam ser
identificados pelas câmeras de TV. Discordam de que a moça seja a única
responsabilizada por um crime que é praticado diariamente por milhares de
pessoas em nossas cidades. Nada disso justifica que Patrícia não seja julgada
pela Justiça, e que seu ato, e os dos outros torcedores que ofenderam Aranha,
seja repudiado com veemência e que isso sirva de alerta e desestímulo às
odiosas manifestações de racismo em estádios de futebol e em toda a sociedade.
Mário Lúcio Duarte
da Costa, o Aranha — que aliás ganhou o apelido por suas defesas remeterem às
de Lev Yashin, o mítico goleiro russo conhecido como Aranha Negra —, tem
demonstrado muita personalidade nesse episódio todo. Expresso aqui minha
solidariedade ao goleiro do Santos, que foi enfático e corajoso ao interromper
o jogo no momento em que era ofendido pelos torcedores e demonstrou depois
magnanimidade nas entrevistas que se seguiram ao evento, afirmando que como
cristão ele perdoa Patrícia, mas mantém a convicção de que ela deve responder à
Justiça por suas ofensas.
Mais que pedir perdão, os torcedores gremistas dariam um grande exemplo de cidadania se, na próxima vez em que o Grêmio enfrentasse o Santos, eles recepcionassem o goleiro adversário não com gritos de “macaco”, mas de “Aranha! Aranha!”
Mais que pedir perdão, os torcedores gremistas dariam um grande exemplo de cidadania se, na próxima vez em que o Grêmio enfrentasse o Santos, eles recepcionassem o goleiro adversário não com gritos de “macaco”, mas de “Aranha! Aranha!”
FONTE: O GLOBO
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