Por meio do
estudo das teorias de Freud, religiosos tentam aumentar o rebanho e o dízimo
Numa
noite chuvosa de quarta-feira, desci do ônibus na rua Brigadeiro Luis Antônio,
região central de São Paulo, quase em frente a uma das unidades da Igreja
Universal do Reino de Deus situadas na capital paulista. No portão, uma senhora
e dois jovens distribuíam exemplares da Folha Universal, periódico evangélico
que circula semanalmente por todo o país há vinte e um anos. Ela estendeu o
jornal e convidou-me a voltar “qualquer dia desses para conhecer a palavra de
Deus”. Respondi que estava prestes a fazer isso. “Entre que o Senhor vai te
abençoar, querida”, disse sorrindo. Entrei.
A
Universal do Reino de Deus é a maior entre as igrejas neopentecostais
existentes no Brasil. Segundo o Censo Demográfico de 2010, do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ela reúne mais de 1,8 milhão de
fiéis espalhados por todas as regiões do país. Fundada em 1977 pelo bispo Edir
Macedo num subúrbio do Rio de Janeiro, faz parte do movimento das igrejas
evangélicas surgidas no final dos anos 1970, que se distanciam do
pentecostalismo tradicional, principalmente porque pregam a prosperidade como
via de aproximação com Deus.
Naquela
quarta-feira à noite, perdi as contas de quantas vezes o pastor evocou a imagem
do diabo para representar todos os males existentes na Terra. Mas num momento
específico, ele decidiu falar sobre males mais concretos, muito contemporâneos,
e comumente associados a tratamentos psicoterápicos, psicanalíticos ou mesmo
psiquiátricos: o medo e a síndrome do pânico. “Grande parte das igrejas
neopentecostais se pretende especializada no cuidado de três conhecidos
‘problemas’ humanos: a saúde, o amor e o dinheiro”, diz o psicanalista
Wellington Zangari, doutor em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo
e vice-coordenador do Laboratório de Psicologia Social da Religião do Instituto
de Psicologia da USP.
“Para alguns pastores, não importa se existem médicos,
psicólogos e outros profissionais de saúde para lidar com questões de doença.
Há sempre uma interpretação bíblica para oferecer e vender saúde”.
A
estratégia das igrejas neopentecostais e de seus pastores, segundo Zangari, tem
sido a da assimilação, reinterpretação e incorporação dos diversos discursos
presentes na cultura. Inclui-se aí o discurso da psicanálise, que cada vez mais
é objeto de estudo por parte dos próprios pastores evangélicos – tanto neopentecostais,
quanto pentecostais (batistas, presbiterianos e metodistas).
Psicanálise
no templo
Izilmar
Finco é pastor batista desde 1986, quando começou a atuar como missionário em
Prado, na Bahia. Hoje, Izilmar trabalha na Igreja Batista de Eldorado (IBEL),
em Serra, no Espírito Santo, e é filiado à Ordem dos Pastores Batistas do
Brasil (OPBB). Em 1998, formou-se em Psicanálise pela Sociedade Psicanalítica
Ortodoxa do Brasil (SPOB), criada em 1996 com a missão de popularizar e
disseminar a psicanálise por todos os cantos do país. “Foi uma experiência
muito enriquecedora e sou grato pela oportunidade que tive. A SPOB foi pioneira
no Brasil na modalidade de formação de psicanalistas e deu a chance a muitas
pessoas, assim como eu, de conhecer a psicanálise e seu valor na clínica, para
ajudar as pessoas”, diz.
A
psicanálise não é uma profissão regulamentada, ou seja, não existem cursos
universitários especializados na prática criada por Sigmund Freud, tampouco
leis que guiem especificamente seu exercício. A formação tradicional de um
psicanalista passa pela graduação em Psicologia ou Medicina e pela associação a
alguma sociedade psicanalítica, além da análise em si.
Na
Sociedade Brasileira de Psicanálise, a primeira a ser criada na América Latina,
em 1927, tal formação é oferecida a médicos e psicólogos registrados nos
respectivos Conselhos Regionais, e a aceitação de profissionais graduados em
outras áreas do conhecimento fica sob responsabilidade de uma Comissão de
Ensino. Se aprovado, o pretendente deve se submeter a cinco anos de análise –
com frequência mínima de quatro sessões semanais – além de realizar 160
seminários obrigatórios e atender a dois pacientes adultos ao menos quatro
vezes por semana sob supervisão de um analista membro da sociedade.
Sendo
livre a formação psicanalítica, entidades paralelas, como a Sociedade
Psicanalítica Ortodoxa do Brasil, oferecem cursos livres a qualquer
interessado, como o pastor Izilmar Finco. Atualmente, a Sociedade Psicanalítica
Ortodoxa do Brasil é a maior sociedade de psicanalistas da América Latina. Em
seus 18 anos de existência, concluiu mais de cem turmas em todos os estados
brasileiros e formou cerca de três mil psicanalistas. O único pré-requisito
para participar dos cursos é ter um diploma de graduação, seja ele qual for. Em
dois anos, depois de participar de aulas duas vezes por mês e realizar 80
sessões de análise, o aluno recebe seu diploma de psicanalista.
A
procura do curso por pastores evangélicos e líderes religiosos é intensa. Para
o pastor Izilmar, se um religioso deseja desenvolver um bom ministério
pastoral, ele precisa acumular uma série de conhecimentos, além da teologia:
“Claro que a área da psique é uma delas. O pastor precisa se conhecer bem e saber
como conhecer o outro”. Com o auxílio da
psicanálise ele afirma não atribuir tudo a questões espirituais. “Uma abordagem
correta do problema é o primeiro passo para ajudar a encontrar a solução e a
cura.”
Em
1927, Freud publicou um ensaio intitulado O futuro de uma ilusão, no qual
afirma ser a religião “a neurose obsessiva universal da humanidade”, culpada
pela decadência intelectual de parte dos seres humanos. Não seria então
contraditório tentar conciliar religião e psicanálise? O pastor Izilmar
acredita que não. “Não podemos negar o conhecimento ou os benefícios que a
psicanálise trouxe para nós, desmistificando muitas coisas. Também de forma
alguma podemos negar a fé e principalmente a fé em Jesus Cristo”, diz.
Gildásio
dos Reis, pastor da Igreja Presbiteriana do Parque São Domingos, em São Paulo,
e docente no Centro de Educação, Filosofia e Teologia (CEFT) da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, afirma que teologia e psicanálise partem de
pressupostos completamente diferentes. Por isso, não acredita ser honesto um
pastor evangélico “atender pacientes utilizando acriticamente uma técnica que
diverge sob muitos aspectos da fé cristã”. “Quando eu clinicava, há dez anos,
deixava claro aos pacientes sobre minha fé e dizia que, no tratamento, iria
fazer uso da teologia para ajudá-los.”
Quando
os assuntos tratados passavam por questões como adultério, homossexualidade,
aborto ou “qualquer comportamento que, à luz dos ensinos bíblicos, são
considerados errados”, Gildásio utilizava-se dos princípios bíblicos “para
orientar melhor os pacientes”.
Sérgio
Laia, analista membro da Escola Brasileira de Psicanálise e professor, há mais
de trinta anos, do curso de Psicologia da FUMEC, em Belo Horizonte enxerga
também um problema conceitual na aliança entre as duas práticas: “A perspectiva
de Freud era a de que a religião está para a civilização assim como a neurose
está para o indivíduo. É dessa forma que a psicanálise lida com a religião – e
uma pessoa que pratica uma atividade religiosa dificilmente aceitaria esse tipo
de definição”.
“Ouvi de um dos meus professores uma frase de
que nunca me esqueci: ‘Não há incompatibilidade entre verdade e verdade’. O que
é verdade na psicanálise não anula as verdades do cristianismo”, relembra o pastor
Izilmar.
A
frase ouvida por ele durante o curso de psicanálise é de autoria do Dr. Heitor
Antonio da Silva, um dos fundadores da Sociedade Psicanalítica Ortodoxa do
Brasil. Ele me repetiria a máxima alguns dias depois, quando nos falamos pelo
telefone. “Não existe incompatibilidade alguma entre psicanálise e religião,
pois se a psicanálise é uma verdade, ela tem que ser compatível com qualquer
ciência. Se a religião é verdadeira, ela também terá que ser compatível com
qualquer ciência”, explica Heitor, que além de psicanalista, também é pastor
batista. “Se duas coisas se apresentam incompatíveis, ou ambas são mentirosas
ou uma delas o é.”
Durante
dez anos, Heitor da Silva foi diretor executivo da SPOB e um dos responsáveis
por concretizar o objetivo de disseminar a psicanálise para todos os estados do
país. Hoje, ele atua como diretor geral e presidente do grupo Redentor, que
administra três faculdades no Rio de Janeiro. “A ideia de popularizar a
psicanálise não significa que o façamos sem qualidade. É uma questão simples: a
psicanálise é uma ciência independente”, ressalta. “Freud disse que a
psicanálise era a profissão de pessoas leigas que curam almas e que não
necessitam ser médicos.”
Em
2000, o deputado Éber Silva, do Rio de Janeiro – ele mesmo pastor da Igreja
Batista – apresentou um projeto de lei no Congresso Nacional que visava a
regulamentar o exercício da psicanálise no Brasil. Ele recebeu o apoio da SPOB,
que passaria a atuar com maior reconhecimento,
aumentando os atritos já existentes com grande parte da comunidade
psicanalítica, que comumente a associa a grupos evangélicos.
Heitor
da Silva afirma que a SPOB foi vinculada aos evangélicos devido a “perseguições
das sociedades ligadas ao organismo internacional”, pois sabem que ele e o
presidente Dr. Ozéas da Rocha Machado são pastores evangélicos. “A SPOB não
oferece cursos para pastores, mas para qualquer pessoa que tenha formação
universitária. Nunca foi uma sociedade religiosa ou vinculada à religião”,
defende-se. Ele admite, no entanto, que a sociedade de fato forma muitos
pastores e líderes religiosos, pois estes exercem funções que lidam com a
“problemática humana”.
O
projeto de lei não foi aprovado. “O fato de esses cursos terem sido fechados e
considerados sem validade não me parece terminar com o problema”, considera o
psicanalista Wellington Zangari. “Eles permanecem em nosso meio, senão como
superiores, como cursos livres. A ‘formação’ é a mesma, com direito a
carteirinha de psicanalista depois do cumprimento de uma série de regrinhas e
provinhas de leituras de apostilas mal feitas.” Para ele, a medida não elimina
“a sombra do risco de formação de péssimos psicanalistas, com placas com seus nomes
em consultórios, cartões de visita e sites na internet”.
O
curioso é que as próprias plataformas de formação a distância voltadas
especificamente para pastores e líderes religiosos também oferecem cursos de
psicanálise. Se a procura dos próprios pastores pelo conhecimento psicanalítico
acontece de forma “natural”, como afirma a maioria deles, o caminho inverso
também é verdadeiro, uma vez que a formação em psicanálise está acoplada à
formação religiosa. Na Faculdade Gospel, por exemplo, criada há vinte e cinco
anos, junto às aulas de aperfeiçoamento em bibliologia, direito eclesiástico,
história de Israel, liderança cristã e outros cento e cinquenta títulos, há
também os cursos de “psicanálise clínica pastoral” e “psicanálise cristã”.
Apologia
ao medo
Segundo
Doryedson Cintra, professor de psicanálise nos cursos realizados pela Sociedade
Contemporânea de Psicanálise (SCOPSI), as religiões evangélicas estão
praticando uma psicanálise selvagem, espécie de chantagem terapêutica que ele
chama de “comando passivo”. “Os pastores sabem que há algo na vida de cada
indivíduo que inspira o medo e o terror.
Só não sabem o quê. Com a apologia ao
medo, eles incitam os membros a ponto de despertarem um comportamento
histriônico, uma espécie de teatralidade muito comum nos casos de possessão”,
teoriza. Ele afirma que, na verdade, essas pessoas se encontram
psicologicamente abaladas e, inconscientemente, desenvolvem comportamentos que
poderiam perfeitamente ser diagnosticados como transtornos histéricos, e não
casos de possessão.
Ainda
que as pessoas busquem a religião e a psicanálise para lidar com seus
sofrimentos, Wellington Zangari acredita que o ponto de contato entre ambas
termina aí: “Cada uma dessas perspectivas oferecem compreensões do ser humano
baseadas em modos de obter conhecimento que são, por vezes, antagônicas”. A
religião supõe a existência de agentes espirituais intencionais e uma ordenação
da realidade que é ligada àqueles agentes. A ciência, por outro lado, não
enxerga a realidade a partir de referenciais sobrenaturais.
Segundo
ele, ao contrário da religião, a psicanálise encontra a natureza do sofrimento
humano no próprio sujeito, em sua subjetividade e dinâmica pessoal. Nada é
atribuído a Deus ou a qualquer associação do tipo. Além disso, as formas de
lidar com esse sofrimento são distintas: “A religião poderá buscar a solução do
sofrimento pela via da salvação divina ou do afastamento do demônio, o que
supõe uma ação de tipo sobrenatural ou, ao menos, um contato entre o ser humano
e uma instância desse universo transcendente. Na psicanálise, lida-se com o
sofrimento justamente colocando o sujeito no centro, na natureza mesma do
sofrimento. Ele próprio é o agente último da ação, implicado até o pescoço no
sofrimento que sente.”
FONTE: Amanda Massuela / Revista Cult
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