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quinta-feira, outubro 18, 2012

Os sapatos de Pepe (Mujica)









Na reunião do Mercosul, em Brasília, para referendar a entrada da Venezuela no grupo, chama a atenção uma foto em que os representantes estão reunidos. Nela, o fotógrafo tentou mostrar uma gafe. Chávez, Dilma e Cristina riem dos sapatos de José Mujica, o Pepe, presidente do Uruguai. A foto pode falar: enquanto os três parecem desaprovar, Pepe, com as mãos abertas e estendidas à frente, parece dizer: “O que é que tem? Estão sujas de barro da terra. É que estava plantando hortaliças e saí apressado para essa reunião”.
Nada a estranhar. Pepe é reconhecido por seu despojamento aos bens materiais e apego ao poder. Não tem seguranças. É visto dirigindo o seu Fusca, das antigas, nas ruas de Montevidéu. Faz a doação de 90% do salário a instituições de ajuda aos pobres. Trabalha na sua chácara, daí os pés sujos. Em suma, leva uma vida espartana, completamente diferente dos que riem dele. E de outros também.
Não quero aqui que os seus parceiros de Mercosul usem sapatos sujos e também que o imitem nas excentricidades de andar num Fusca e doar parte do salário. Mas essas posturas têm consequências na prática. A sensibilidade de perceber o drama dos comuns e até dos diferentes e excluídos.
Pois Pepe anuncia que vai descriminalizar o uso das drogas. No caso da maconha, cadastrar usuários e distribuir, digamos, uma “ração” mensal. Assim, afasta os usuários dos traficantes, porque não é a maconha a porta de entrada para drogas mais pesadas. Mas o traficante é, quando nega a droga mais leve para introduzir a mais nociva, pensando no lucro.
O plano do governo de José Mujica se assenta em estratégias que combinam descriminalização do usuário, legalização controlada pelo Estado de uma droga menos nociva e desarticulação da cadeia comercial do narcotráfico. A legalização controlada pretende fornecer a custos reais cigarros de maconha para usuários cadastrados no programa governamental, residentes no país, cuidando para não haver uma exportação da droga sob controle.
O resultado esperado é uma diminuição da criminalidade e da violência; uma migração dos usuários da pasta-base de cocaína para a maconha produzida pelo Estado, interrompendo a cadeia comercial do narcotráfico; o oferecimento do tratamento a usuários que não precisam mais do esconderijo no gueto da ilegalidade; a possibilidade da discussão dos malefícios das drogas, onde as lícitas (álcool e cigarro) hoje oneram mais ao sistema de saúde.
O ministro da Defesa do Uruguai declarou à imprensa que “a proibição de certas drogas está criando mais problemas à sociedade que a própria droga”. Com relação à maconha, acrescentou: “É preciso eliminar esse veto à maconha, iniciado em 1971 por uma errônea decisão do presidente dos Estados Unidos, Nixon. Ele provocou todo esse desastre que vivemos, declarando uma guerra às drogas que foi ganha pelos narcotraficantes”.
É uma intenção que deverá ser reavaliada mais tarde. Mas sai das políticas proibicionistas repetitivas, onde a repressão confunde traficantes e usuários, com a agravante de um círculo vicioso: o usuário sempre acha o traficante, e a polícia quase sempre só prende o usuário. Drogas sempre existirão. É preciso políticas de convívio e não de extermínio às drogas. Isso nunca foi viável na história da humanidade.
Nada se copia, nem os sapatos do Pepe, nem seu programa de descriminalização das drogas. Mas as autoridades risonhas deveriam entender que a guerra às drogas fez chorar muitas famílias ao fazer um combate sistemático na criminalização da pobreza. As prisões estão cheias de usuários assemelhados indevidamente a traficantes. E se os pés desses governantes não estão sujos, as mãos podem estar. Não se lava as mãos à guerra às drogas. É preciso paz. É preciso uma política de descriminalização e, também, de atenção aos usuários na situação social, de trabalho, educação, moradia, lazer e saúde. Não deve ser uma política de “vencer” a droga, mas uma política de “ajudar” o usuário.
E, voltando à reunião do Mercosul, só tem sentido um crescimento econômico da região para uma maior aplicação em políticas públicas. O Estado não pode ser gerenciado como uma empresa que produz lucros e empresta dinheiro a outras empresas. Por ironia, o Brasil passou de devedor a credor do FMI. No Cone Sul, a educação está muito aquém do desenvolvimento, produzindo excluídos que são as maiores vítimas das drogas. Que a saúde pública precisa de mais recursos é visível nos corredores dos hospitais superlotados. O que o Estado produz em riquezas deve ser gasto para o bem-estar do povo. É para isso que governos são eleitos. Pena que estão fazendo a população esquecer. Os sapatos do Pepe talvez lembrem que os governantes devem ter os pés no chão.
FONTE: CORREIO BRAZILIENSE / Edmar Oliveira - Psiquiatra, foi diretor do Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro. É um dos líderes do Movimento Antimanicomial

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