LEONARDO BOFF
O berço do carnaval ocidental se
encontra na Igreja, apesar dos antecedentes na cultura greco-latina. O próprio
nome carnaval lembra esse fato. A palavra “Carnaval” é a combinação de duas palavras latinas:
“carnis” que é carne e “vale” que é uma saudação, geralmente no final das
cartas ou no final de uma conversa. Significa “adeus”. Então antes de começar o
tempo da quaresma na quarta-feira de cinzas, que é tempo de jejuns e
penitências, se reservaram uns dias anteriores para dizer “adeus” à “carne”.
Dei uma entrevista à jornalista da
Globo, Patrícia Kalil. Ela
consultou outros especialistas sobre o tema, especialmente Roberto da Matta.
Aproveiou algo do minha contribuição. Fez um bela e extensa matéria da qual eu mesmo aprendi muito.Leiam-na que vale a pena.
Como é carnaval, tomo a liberdade de
publicar a minha parte, esperando não magoar a entrevistadora. Uso as perguntas
dela.
1. Li referências do tempo em que o
carnaval nasce primeiro como manifestação popular na antiguidade para agradecer
a chegada da primavera (ou da vida no hemisfério norte). Depois, durante o
período medieval, a festa é assumida pela Igreja, algo que pelo que pesquisei
só permanece até o final da idade média. Por que o carnaval deixa de ser da
igreja? Em algum lugar ele ainda é vinculado à Igreja?
R/ O berço do carnaval ocidental se
encontra na Igreja, apesar dos antecedentes na cultura greco-latina. O próprio
nome carnaval lembra esse fato. A palavra “Carnaval” é a combinação de duas palavras latinas:
“carnis” que é carne e “vale” que é uma saudação, geralmente no final das
cartas ou no final de uma conversa. Significa “adeus”. Então antes de começar o
tempo da quaresma na quarta-feira de cinzas, que é tempo de jejuns e
penitências, se reservaram uns dias anteriores para dizer “adeus” à “carne”.
Pois durante todo o tempo da quaresma não se podia comer carne, como ainda hoje
em algumas regiões na Baviera alemã. De festa de cunho religioso passou a ser uma festa
meramente profana, na qual tudo podia ocorrer como bebedeiras e até prostituição
aberta. Ai a Igreja se afastou mas nunca totalmente. Em muitos lugares, como no
convento franciscano em que vivi em
Munique, nos meus tempos de estudo universitário, os frades no carnaval
dançavam no convento e chamavam freiras dos conventos vizinhos para dançar com
eles. E depois se revezavam: os frades iam dançar no convento das freiras. E se
bebia vinho e cerveja e muitas salsichas com mostarda. Mas tudo na maior
decência. Não deixava de ser engraçado de ver aqueles hábitos de frades e de
freiras esvoaçando em círculos. Eu como brasileiro no início ficava
escandalizado, pois no Brasil não havia isso. Mas acabei entendendo o sentido
de liberdade antes de começar o tempo do rigor e das penitências que eram
sentidas à mesa, mais sóbria e na falta de cerveja e vinho.
2. Encontrei referência que citam a
origem do nome como carnis levare (de retirar a carne) e como carnis valles
(retirar o prazer). Qual das duas deram origem ao nome carnaval?
R/ Ficou respondida anteriormente
3. Calha que essa festa popular pagã
usa o calendário cristão para se posicionar. E o carnaval, ao longo do último
século, sofreu transformações importantes dentro do seu papel em comunidades e
valorização do ritmo negro para hoje ser algo mais ligado ao showbusiness e não
necessariamente social. Como o senhor vê o papel do carnaval no Brasil,
historicamente, e a relação entre Igreja e essa festa popular.
R/ O carnaval possuía no passado e
possui ainda hoje grande significado sociológico e antropológico. Há a
intuição no povo e uma certeza entre os estudiosos de que a sociedade com suas
hierarquias e papéis definidos é uma construção humana. Ela é fruto da vontade,
geralmente, dos poderosos que estabelecem as leis e as ordens que os
beneficiam. É o mundo da ordem estabelecida. A sociedade é assim uma construção
que tem algo de arbitrário.O carnaval é a inversão desta ordem. É conduzir a
todos ao estado original onde não havia hierarquias e papéis, ordem no qual
todos eram iguais. No carnaval cria-se um caos criador. Invertem-se os papéis.
O rei deixa de ser rei e cria-se o rei Momo; o rico se veste de pobre; o pobre
se veste de rico; a empregada anônima
vira a princesa da ilha encantada; o vendedor de rua se transmuta em príncipe e
o príncipe num escravo. Até no carnaval romano os escravos, durante aqueles
dias, ficavam libertos. A sociedade precisa tirar as máscaras e voltar ao seu
estado “natural”. O carnaval possui uma função socialmente terapêutica: pela
inversão dos papéis todos podem se recriar, dar vazão ao que no fundo gostariam
de ser. Essa reviravolta, para acontecer, deve vir acompanhada de uma mudança
de consciência; dai a importância da bebida e da comida que produz esta
alteração: alteram-se as relações entre
todos. Agora não funciona o tempo do trabalho com leis, normas, prescrições e
comandos. Funciona o tempo livre, liberto das injunções,o ansiado reino da liberdade de cada um ser, pelo menos por
um momento, aquilo que lhe passar pela cabeça. Pelo fato de no tempo medieval tudo era regido pela religião e pela
Igreja, os carnavais se realizavam dentro do espírito de alegria e de liberdade
permitidas por estas instâncias. Era a famosa festa dos foliões. Leigos podiam
se vestir de bispos e até de papas. As máscaras eram para esconder as
identidades e no fundo para dizer que tudo na sociedade e tambem na Igreja são
máscaras. Bobos somos todos que as tomamos a sério e cremos nelas. São os
papéis sociais. Mas chega um momento que nos damos conta de que as máscaras são
apenas máscaras e que os papéis sociais
são criados e distribuidos conforme a vontade dos que detém o poder. E que no
fundo somos todos humanos que tem as mesmas necessidades básicas que são
intransferíveis. O presidente da república não pode dizer ao secretário: vá
fazer pipi para mim. Ele mesmo tem que ir. Na medida em que a sociedade foi
separando o sagrado do profano, o carnaval escapou do controle da Igreja.
Ganhou sua identidade própria. Mas o seu significado básico continua o mesmo. O
importante é que seja feito pelos populares, por aqueles que socialmente nada
contam. No carnaval eles contam. São aplaudidos quando normalmente são eles que
devem aplaudir. Especialmente importante é o carnaval para os
afro-descendentes: sempre estiveram por baixo, eram os invisíveis. Agora se
tornam visíveis, mostram a sua rica humanidade que lhes tinha sido roubada e
continua ainda a ser roubada. Dai que no carnaval mostram todo o seu potencial
criador. Bem dizia o Betinho: o carnaval carioca é a nossa Mitsubishi.Quer
dizer: tudo funciona maravilhosamente como funciona a fábrica de automóveis japonesa.
4. Para finalizar e porque o carnaval
é uma festa altamente ligada ao prazer e a liberdade, direitos cada vez mais
exigidos, por que a condenação do prazer é algo tão marcante na vida religiosa?
O vilão é mesmo o prazer ou é o egoísmo, a falta de humanidade, de compaixão,
de respeito pelo próximo e pela vida? Por que tanta culpa pelo prazer? Por que,
afinal, o homem sente prazer.
R/ A essência do carnaval é tirar os
super-egos castradores e ordenadores da vida social. Eles são responsáveis pela
ordem. A ordem sempre impõe limites, cerceia o campo da liberdade, quando esta
quer não ter cerca nenhuma para se expressar. Quer espontaneidade e supõe
criatividade. É nesse âmbito que o ser humano se sente feliz. Porque há um momento
em que os controles caem e os homens da ordem não tem mais poder para impor a
ordem. Eles mesmos aproveitam a liberdade e tiram a máscara. Viram gente, gente
livre, que brinca, come e bebe sem se impor ordem. O prazer é essencial na
vida, também para as religiões, embora tenham sublimado o prazer projetando-o
no céu. Mas não existe céu sem terra. O prazer começa no tempo e culmina na eternidade. Prazer é irradiação
da vida, a sensação de estar sem amarras e viver segundo seu ritmo interior. A
busca da droga se deve a isso: ela produz prazer. Somente que este prazer é
destrutivo. Para curar alguém da droga precisa-se inventar outras fontes de
prazer que não sejam destrutivas. Qualquer outro método é condenado à
ineficácia. O carnaval resgata os direitos do prazer, do corpo embelezado, ou
libertado de adereços e roupas. O carnaval, de forma secular, nos lembra que o
céu não é outra coisa que um eterno e infinito carnaval de Deus e com Deus,
onde o ser humano pode ser radicalmente humano, por isso totalmente livre,
livre para plasmar a sua vida, construir a sua figura e viver de festa em
festa. A Igreja antiga, especialmente a oriental, a ortodoxa, elaborou toda uma
reflexão do céu como uma dança celeste e Deus como o Grande Dançarino. Criou o
universo num momento auge de sua dança: jogou para um lado as galáxias, para
outro as estrelas, depois inventou a fauna e a flora e num passe mágico de
dança, o ser humano. Tudo é fruto do Deus dançarino. Não há festa sem bebida e
sem comida. Elas expressam a vida. Não bebemos nem comemos para matar a fome.
Isso é outro momento. Bebemos e comemos para celebrar. E toda festa tem que ter
abundância de comida e bebida, senão não é festa. Mesmo nas comunidades em que
trabalhei, muito pobres, as festas eram feitas com abundante pipoca e
coca-cola, a ponto de sobrar. Tem que sobrar senão a festa não é boa. O
carnaval tem sempre excessos. Mas eles não devem ser entendidos
moralisticamente. Eles tem uma função humana: violar a ordem, afastar os
limites, exorcizar os controles, pois tudo isso foi inventado pelos seres
humanos, especialmente, pelos que tem poder de se impor aos outros. No carnaval
se volta ao caos originário. Ele nunca é caótico, mas criativo. No carnaval
todos tem a sensação: finalmente estamos livres, podemos viver como gostaríamos, podemos inverter os papéis
porque eles não passam de papéis. O carnaval é uma metáfora do que pode ser
a humanidade um dia reconciliada e
feliz.
Mas como tudo o que é sadio pode
ficar doente, assim no carnaval há doenças no sentido de alguns extrojetarem
seu exibicionismo, se embebedarem em demasia e aproveitarem a liberdade
reconquistada para se vingar dos
desafetos. Mas essa é uma patologia, uma doença. E toda doença remete à saúde. Quer dizer, o carnaval é algo
saudável especialmente em sociedades de grande desigualdade. No carnaval as
desigualdades caem. Todos estamos juntos para festejar, comer e beber numa
ilimitada fraternidade.
Eu não posso me imaginar o céu senão
como um eterno carnaval ou então uma luminosa virada de ano na praia de
Copacabana, na qual todos se confraternizam, conhecidos e desconhecidos,
chorando de alegria pela beleza dos fogos. Quando alguém chega ao céu, imagino
eu, Deus lhe prepara como recepção um carnaval ou uma festa de virada de ano
com fogos e luzes sem fim. E a alegria começará e o bom é que será então
eterna. Bom carnaval para quem gosta.
Eu, coitado, fico em casa tirando os
atrasos dos textos e livros que estou escrevendo.
FONTE:BRASIL DE FATO / LEONARDO BOFF
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