O número de
denúncias referentes à intolerância religiosa no Brasil, feitas pelo Disque 100
da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, aumentou de 15
em 2011 para 109 em 2012. Os principais alvos de discriminação são as religiões
de origem africana, como candomblé e umbanda.
Entre os
casos está a invasão de terreiros em Olinda, em que “evangélicos com faixas e
gritando palavras de ordem realizaram protesto em frente a um terreiro de
religião de matriz africana e afro-brasileira”, como descreve um denunciante.
Outro caso foi o uso, por uma igreja, de imagens de mães-de-santo, “chamando de
feitiçaria e difundindo o ódio pelas redes sociais”, afirma outra pessoa.
“O Brasil
tem um histórico de negação das tradições não cristãs. Essa negação não é
exatamente da religião, mas do valor de todas as tradições de matriz africana.
Na verdade, para nós, é racismo”, afirma Silvany Euclenio, secretária de
Políticas das Comunidades Tradicionais da Secretaria de Políticas de Promoção
da Igualdade Racial (Seppir).
Embora
existam também atritos entre algumas religiões cristãs, eles acabam não sendo
tão violentos porque essas religiões têm uma origem comum e compartilham os
mesmos valores. No caso das religiões de matriz africana, a intolerância recebe
uma outra dimensão e resulta em violência, como no depredamento de casas,
espancamento de pessoas e até mesmo assassinatos. “Recebemos denúncias de norte
a sul do país, e de forma crescente”, diz Euclenio.
Mercado
religioso
O professor
de ciências da religião Frank Usarski, da PUC-SP, afirma que a tensão mais
visível é entre algumas igrejas pentecostais e as religiões afrobrasileiras,
apesar de existirem também atritos entre religiões que tenham a mesma raiz.
“Isso tem
muito a ver com a lógica do mercado religioso. Hoje em dia não é mais uma
convivência idealista, mas uma luta de segmentos, da necessidade de conquistar
uma certa parcela da população. Dessa forma, o outro é estigmatizado,
desvalorizado e inferiorizado”, acrescenta, dizendo que a briga entre as
religiões se orienta por uma lógica capitalista.
Ele cita,
como exemplo, a briga entre vertentes da religião budista no Brasil, em que
houve briga jurídica para impedir a entrada de líderes religiosos no país. Além
disso, um grupo reivindica um templo para si e o outro não quer devolvê-lo.
“Não são só brigas simbólicas, mas também jurídicas.”
Para o
professor aposentado de ética e teologia Ubirajara Calmon, da Universidade de
Brasília (UnB), existe intolerância religiosa no Brasil, mas nada comparável ao
que acontece em outros lugares do mundo, como na Europa. “Acredito que há
poucas manifestações. O Brasil nunca chegou a uma situação como, por exemplo, a
luta entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte”, frisa.
O governo
federal lançou no final de janeiro o Comitê de Combate à Intolerância
Religiosa, que terá 20 membros oriundos do governo e da sociedade civil, sendo
que o edital para a escolha dos integrantes será lançado em fevereiro ou março.
O comitê vai ter o objetivo de promover o direito ao livre exercício das
práticas religiosas e elaborar políticas de afirmação da liberdade religiosa,
do respeito à diversidade de culto e da opção de não ter religião.
Internet
O mundo
virtual reflete a situação do mundo real. De 2006 a 2012, a organização
não-governamental SaferNet Brasil, através da Central Nacional de Denúncias de
Crimes Cibernéticos (CNDCC), recebeu 247.554 denúncias anônimas de páginas e
perfis em redes sociais que continham teor de intolerância religiosa.
Muitas
vezes uma página ou perfil é denunciado dezenas, centenas ou até milhares de
vezes. Dessa forma, nesse período, 15.672 páginas foram reportadas por conter
teor de intolerância religiosa. A tendência é de queda: de 2.430 páginas em
2006 para 1.453 em 2012.
Essa
tendência não implica que o número de casos reportados de intolerância
religiosa tenha diminuído. “Uma das razões é a classificação feita pelo
usuário. Mesmo páginas reportadas por possuir conteúdo antissemita ou
homofóbico têm, também, conteúdo referente à intolerância religiosa”, explica
Thiago Tavares, coordenador da CNDCC.
O maior
problema é a impunidade. “Quanto maior a dificuldade de punir esses crimes,
maior é a tendência de uma parcela da comunidade de internautas de querer
utilizar a rede para essa finalidade. A impunidade é o combustível da
criminalidade”, declarou Tavares, afirmando ainda que percebe um crescimento,
desde 2010, das manifestações de intolerância e também da radicalização do
discurso de ódio na internet brasileira.
Não só
anônimos postam comentários que envolvem intolerância religiosa ou até mesmo o
ódio em sites e perfis nas redes sociais. “Vemos casos de autoridades
religiosas também. Há uma certa permissividade, uma dificuldade de monitorar e
efetivamente punir”, diz Euclenio, da Seppir.
Tecnologia
esbarra na falta de infraestrutura
Depois que
a denúncia é recebida pela CNDCC, um sistema é acionado para coletar
informações disponíveis na rede, como texto, fotos e demais informações do
provedor onde a página está hospedada. Essas informações são compiladas em um
banco de dados ao qual apenas a Polícia Federal e o Ministério Público (MP) têm
acesso.
Assim, o MP
pode iniciar uma investigação para descobrir quem foi o autor do crime. O poder
judiciário notifica o provedor que hospeda a página para fornecer dados e
indícios que possam ajudar os investigadores a identificar o usuário. “Mas isso
nem sempre é possível. Aí o caso fica impune”, diz Tavares.
Ele explica
que muitas pessoas usam a retórica de que os crimes da internet não são punidos
por causa da falta de uma lei específica. Mas na verdade serve para mascarar o
principal problema: a falta de estrutura. “De todos os 27 estados brasileiros,
há somente oito delegacias especializadas. E elas funcionam de forma precária”,
frisa.
A Polícia
Federal tem duas divisões que cuidam de crimes cibernéticos. Uma é a contra
crimes financeiros, que tem boa estrutura e é bem aparelhada, sendo responsável
por mais de 1.200 prisões nos últimos oito anos. Já a divisão relacionada com
os direitos humanos tem estrutura muito deficiente. “É clara a prioridade do
Estado brasileiro de investigar crimes contra o patrimônio e não os
relacionados aos direitos humanos”, conclui Tavares.
FONTE: CARTA CAPITAL / Autor:
Fernando Caulyt / Revisão:
Francis França
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