“Ainda que alguns setores tenham-no visto como criminoso, outros fizeram dele o emblema do mártir na luta contra ditaduras. Dando a vida por suas idéias, consagrou a imagem do herói idealista, romântico, aventureiro e desinteressado, disposto a todos os sacrifícios – virtudes que compõem o mito Guevara”, afirma a publicitária Luciana Ferreira de Matos, ao falar sobre Ernesto Che Guevara, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Luciana Ferreira de Matos conclui que “Che Guevara, de alguma forma, manteve uma posição de força na imaginação popular, sobretudo entre os jovens de diferentes gerações. Tudo o que ele significou e expressou, sua força e utopia, canalizada em movimentos sociais, talvez não tenha sido (totalmente) destruído”. Luciana, que é bacharel em Publicidade e Propaganda pela ESPM, é autora de um artigo, publicado em agosto de 2007, na Revista Think, como uma versão do seu trabalho de conclusão, intitulado “Che Guevara: o consumo do mito – capitalismo, sociedade de consumo e cultura da mídia”, orientado pela professora Adriana Kurtz, dos cursos de Publicidade e Propaganda e Design da ESPM.
IHU On-Line - Como se deu o processo de transformação do ícone revolucionário Che Guevara em uma imagem de consumo?
Luciana Ferreira de Matos - Hoje em dia, Che é mais uma vez tão controvertido e tão reconhecido universalmente como era nos dias em que se transformara num símbolo da revolta estudantil. Depois de cair no esquecimento nos anos 1970 e 1980, ele teve um ressurgimento popular nos anos 1990 como símbolo imorredouro do desafio apaixonado contra um status quo arraigado. Imagens de Che Guevara eram carregadas como ícones por manifestantes estudantis em Paris e Tóquio, e seu rosto barbudo, inquestionavelmente másculo e de boina, fez bater corações mesmo não políticos na contracultura. Fosse na França, contra o conservador Charles De Gaulle ; nos Estados Unidos, contra a participação norte-americana na Guerra do Vietnã; no México, quando aconteceram as primeiras manifestações contra o Partido Institucional Revolucionário; ou na África, continente que viu eclodir a guerra de guerrilha em quase todos os países nos vintes anos seguintes à sua morte, a lembrança e a imagem de Che Guevara esteve presente em bandeiras, faixas, camisetas mas, principalmente, nas mentes e corações dos revolucionários. Houve forte identificação da juventude com a figura de Che. Entre seus admiradores, havia muitos universitários de classe média do continente americano e europeu. Para esses jovens de esquerda, Che personificava o idealismo igualitário. Portanto, a morte de Che Guevara aumentaria ainda mais o mito do guerrilheiro heróico e generoso. A boina e a estrela compõem até hoje a personificação do revolucionário rebelde, um símbolo que resiste ao tempo. Ainda que alguns setores tenham-no visto como criminoso, outros fizeram dele o emblema do mártir na luta contra ditaduras. Dando a vida por suas idéias, consagrou a imagem do herói idealista, romântico, aventureiro e desinteressado, disposto a todos os sacrifícios – virtudes que compõem o mito Guevara. A conhecida fotografia de Che Guevara, de autoria de Alberto Korda , foi captada em março de 1960 em um serviço funerário cubano, sendo publicada sete anos após a morte de Che. A imagem mais famosa é o desenho do seu busto em alto contraste. Esta imagem foi reproduzida em uma grande variedade de mídias, tornando-se cada vez mais usual no contexto da cultura de massa e das imagens publicitárias. Incorporado pela publicidade, seu nome e sua imagem revelam-se hoje, como marca de cerveja, modelo de relógio, capas de discos, estampas de camisetas, entre outros milhares de artigos de consumo.
IHU On-Line - Quais são as análises de peças que você realizou sobre o tema e as conclusões que chegou?
Luciana Ferreira de Matos - A seleção das peças foi organizada de modo a dar conta de quatro categorias que abarcam a cultura da mídia e a publicidade, e que tiveram circulação massiva, utilizando a imagem de Che Guevara. Foram analisadas as seguintes peças: o filme do Casseta & Planeta A taça do mundo é nossa (2003), incorporação do personagem Che Guevara; VT Publicitário Bombril; Peça Gráfica Bombril; uma camiseta que nos anos 1970 circulou unindo a marca americana da Coca-Cola com o nome de Che; outra camiseta com sua imagem estampada da loja on-line norte-americana especializada em produtos com estampas de Che Guevara; logotipo do vinho chileno Chevere, produzido no Vale Central; logotipo do refrigerante Revolution Soda; perfume francês “Che Guevara” da marca Max Gordon; e o cigarro chileno “El Che”. Após a análise das nove peças conclui que Che Guevara, de alguma forma, manteve uma posição de força na imaginação popular, sobretudo entre os jovens de diferentes gerações. Tudo o que ele significou e expressou, sua força e utopia, canalizada em movimentos sociais, talvez não tenha sido (totalmente) destruído. Porém, através das análises feitas, no contexto da cultura capitalista pós-moderna, sua imagem foi despolitizada (para dizer o mínimo). De fato, há que se lembrar que, tanto nos produtos de consumo como na mídia, em campanhas publicitárias e até em filmes comerciais de humor massivo, podemos detectar a utilização da imagem de Che Guevara.
IHU On-Line - Como essas apreensões da imagem de Che deturpam seus ideais, sua ideologia guerrilheira?
Luciana Ferreira de Matos - Sua imagem é usada para divulgar ações com objetivos meramente comerciais, o que é o oposto de tudo o que Che, de fato, simboliza. A figura de Che Guevara – e seu significado - sofreu uma implacável ação de despolitização: o ídolo revolucionário, que começou sendo um símbolo de lutas sociais, torna-se uma mera imagem de consumo, retirado do seu contexto histórico.
IHU On-Line - Como explica a relação da figura de Che se tornar um ícone de consumo se ele lutava justamente pelo oposto, em favor de uma contracultura?
Luciana Ferreira de Matos - Enquanto exemplo de um homem que lutou e combateu o sistema, e pontualmente, o imperialismo norte-americano, Che Guevara foi também um símbolo importante da contracultura. Em sua luta contra o imperialismo, Guevara morreu, mas deixou para sempre personificado o seu idealismo igualitário. Sob a cultura de massa, entretanto, seu nome iniciou uma trajetória para o universo dos bens de consumo. Resulta disso que, hoje, quem consome produtos variados com a imagem dele provavelmente não está exercitando nenhuma forma de contracultura: pelo contrário, corre o risco de estar se inserindo no mais tradicional modelo de cultura de massa capitalista. A cultura pop internacional usa e abusa da imagem de Che Guevara, tirando o seu valor crítico, político e social. Che foi absorvido pela sociedade de consumo que ele morreu tentando combater. A ironia é como a representação de um revolucionário de esquerda, do comunismo, tem sido utilizada indiscriminadamente no sistema capitalista, e como foi inserida no imaginário popular de uma sociedade de consumo.
IHU On-Line - Até que ponto a publicidade é responsável por essa apreensão e disseminação de Che como um “mito consumível”?
Luciana Ferreira de Matos - Há uma cultura veiculada pela mídia e pela publicidade, cujas imagens influenciam os comportamentos sociais contemporâneos, forjando, assim, a identidade das pessoas. Através da publicidade e do consumo, o sistema capitalista se apoderou dos movimentos libertários juvenis nascidos nos anos 1960 e de seus diversos símbolos, transformando os sonhos em mercadorias. São exemplos que vão desde os pôsteres de bandas de rock, passando por bonés de beisebol até a lingerie feminina. A Swatch já usou a imagem de Che Guevara num relógio de pulso, assim como a Vodka Smirnoff usou sua imagem na campanha para vender o produto; a modelo Gisele Bündchen desfilou com um biquíni da marca Cia. Marítima com o rosto de Che estampado. Isso para não falar de outros produtos como camisetas, bonés, broches, mochilas, carteiras, casacos, bolsas, que são vendidos no mundo todo. No México, a figura do Che está presente em preservativos, enquanto nos Estados Unidos aparece estampada em caixas de lenços descartáveis, garrafas de vinho na França e maços de cigarro na Espanha. Uma empresa australiana chegou a lançar o sabor de sorvete inspirado no nome do líder guerrilheiro, “Cherry Guevara”. Uma fabricante de cremes para lábios foi além: lançou um creme sabor goiaba com a imagem do revolucionário na marca, cujo anúncio, patético, dizia “Rebele-se contra a secura dos lábios”. O estilista francês Jean Paul Gaultier usou a imagem de Che para vender óculos de sol e Madonna vestiu a boina do guerrilheiro heróico para divulgar seu álbum American Life.
IHU On-Line - Há algum possível sentido revolucionário ou utópico latente nos produtos que utilizam a imagem de Che, ou não há uma junção neste aspecto?
Luciana Ferreira de Matos - Em que pese esta constatação, ainda podemos reafirmar e resgatar o idealismo de Che Guevara, através de pesquisas históricas. Porém, em relação ao consumo dos produtos que utilizam a imagem do revolucionário não podemos falar o mesmo. Sua imagem iniciou uma trajetória melancólica apontando para os bens de consumo na sociedade capitalista. Essa trajetória conduz a imagem de um ídolo revolucionário, que começou sendo um símbolo das lutas políticas e sociais, para uma situação contrária, na qual perde-se a matriz ideológica original (contestatória) e resta apenas uma (entre tantas) imagem de consumo.
FONTE: IHU Online
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