Ignoro
o critério dos órgãos responsáveis pelo Carnaval de Salvador, para estabelecer
o percurso dos Blocos, Trios Alternativos, Independentes ou qualquer outro nome
dessas parafernálias musicais.
Até
que me esforcei por saber, junto a um órgão de turismo, mas não tive êxito na
resposta. Certo é que alguns/algumas dos “deuses/deusas” que puxam essas
“corporações” não passam pelos tradicionais percursos da Avenida Sete, Piedade,
São Pedro, Praça Castro Alves, chamado Circuito Campo Grande (ou Osmar), que prefiro
designar por “Circuito Senzala“, tal é a manifesta concentração de nichos de
pobreza que ali se aglutinam. Muitos desse reis/rainhas do Axé, Pagode,
desfilam apenas pelo trajeto Barra/Ondina, (ou Circuito Dodô), que denomino
“Circuito Casa Grande“, em razão do grupo de elite que prefere curtir o
Carnaval com “segurança“, longe da “mistura” do centro da cidade.
Por escolha política, estou no “Circuito
Senzala” e, do alto do quinto andar de um prédio em frente ao velho Jardim da
Piedade, cercado por grades de ferro escondidas atrás de muralhas de madeira,
posso enxergar com maior objetividade o Carnaval declamado internacionalmente
por ser a mais intensa expressão de alegria (e com razão) e de respeito à
diversidade étnica e cultural que marca nosso povo (o que não é verdadeiro).
Lamentavelmente essa festa, em nossa capital,
vem resgatando a figura de um Navio Negreiro, dessa feita, sofisticado e de
elevada tecnologia.
Grilhões
de antigamente agora são cordas que negros e negras arrastam, de mãos enluvadas,
para dar proteção à grande massa de brancos e brancas que se torce (nem sempre)
em frente, ao lado e no rastro dos possantes veículos que transportam
“deuses/deusas” (às vezes negros e negras) do Axé, do Pagode e de não sei mais
o que.
No podium simbolizado pelos Trios Elétricos, o
encanto e a fama de rostos globais, convidados especialmente para gozo e
delírio da maioria pobre, apinhada e comprimida ao longo do espaço público
legal (mas ilegitimamente) apropriado pelas elites que desfilam nas grandes Empresas/Blocos
que dominam o Mercado Carnavalesco de Salvador, produzindo um espetáculo
destinado principalmente aos ricos e aos turistas que ocupam a cidade durante a
folia momesca.
Enquanto arde minha repulsa pela expropriação
dos sítios de divertimento em Salvador, continuo a espiar o rito de passagem
dos Trios.
Em
um deles, sem bloco, três jovens negras reverenciam Carmem Miranda. Fico à
espera dos gritos dos “espremidos” na Praça Piedade.
Nada
acontece. O silêncio e a indiferença do público deixam claro que as vocalistas,
não obstante afortunadas na escolha das vestes e do repertório, não eram
midiatizadas, logo, não conseguiam animar a platéia.
Outros Trios passam. De repente, acontece a
explosão. A Praça Piedade enlouquece, mobilizada por uma das “deusas“ douradas
que comandam o espetáculo do Carnaval da Bahia. E outros “deuses/deusas” se
sucedem, enquanto também se aglomeram os “excluídos da corda“, pulando entre as
barreiras formadas pelos edifícios, pelo jardim e pelas “correntes vivas” que
circulam os Blocos.
Não
só, o muro se fortifica por fileiras de policiais militares, que parecem ter
olhos e ouvidos apenas para os negros fora da corda, os quais, em todos os
momentos que pude presenciar, eram os únicos abordados.
Carnaval de Salvador é isso aí: uma ilha de
brancos cercada por uma corda de negros e negras. Foi a única resposta que
consegui formular diante da indagação que me fez uma paulista sobre essa festa
já tão deformada na sua feição democrática.
Um
simples olhar sobre os Blocos/Empresas Carnavalescos é o bastante para
consolidar essa afirmativa que dialoga com uma realidade oposta aos dias de
Carnaval, único tempo em que a minoria branca e rica predomina sobre uma cidade
histórica e matematicamente negra e pobre.
Desse
modo, os “habitantes” ocasionais da quase todas essas “cidades dos Blocos”
escancaram um violento e insuperável contraste com a população negra dos
cárceres, das invasões, das periferias, das favelas, dos quilombos, dos Sem
Teto, dos Sem Terra.
Por todo o período de Carnaval, negro é o tom
da corda, dos ambulantes que circulam aos milhares. É a cor do povo “Fora dos
Blocos“, olhando das calçadas, pulsando ao som de altíssimos equipamentos que
amplificam à exaustão as vozes dos “mitos” da passarela e aplaudindo os
desfilantes dos Blocos, talvez, na sua expressiva maioria, descendências dos
colonizadores de terras no passado, e agora, dos espaços antes livres para
brincar e da alegria que vibra a cada passagem dos “latifundiários da folia“.
De fato, no Carnaval de Salvador, a rua, a avenida,
a praça se constituem o grande domínio desses novos sujeitos sociais que são os
empresários donos dos Blocos e seus associados. É verdade que algum recinto
sobra para afrodescendentes, por sua inigualável capacidade vocal e
instrumental. Mas por vezes questiono se essa aclamada e fascinante
musicalidade não termina sendo uma estratégia excludente a partir de um
discurso de inclusão social.
Isso significa a urgência em se refletir sobre
a utilização, pelas elites, do espaço da música e dos tambores como um grande
quilombo, distanciando o potencial de negros e negras das “catedrais
cristalizadas” que são as Universidades e de outros locus de poder.
Nesse contexto, chama atenção a quem se dispõe
a fazer uma leitura crítica do Carnaval de Salvador, o fato de que em nenhum
outro momento a luta de classes se revela com tamanho vigor em nossa cidade.
As
ruas, praças e avenidas que deveriam pertencer ao povo, seu titular legítimo,
se acanham para ceder lugar a alguns privilegiados, a exemplo de atores, atrizes,
autoridades e outros figurantes da nobreza daqui e de fora do país que se
confinam em luxuosos camarotes garantidos pelos “deuses/deusas” do Carnaval ou
explorados por capitalistas do Império de Momo, que vendem o espaço público a
quem possa dispor do valor cobrado.
O
mais censurável é a restrição desses espaços, acessíveis apenas à nata esguia,
branca e economicamente estável que desfila rigorosamente vestida de “abadá“,
figurino de criação baiana comercializada a preços que humilham a quem ganha um
salário e envergonham a tantos quantos militam na trincheira da busca pela
destituição das desigualdades e pela construção de uma sociedade onde todos e
todas, indistintamente, possam se “empoderar” da exultação de “ser pessoa“, e,
nesse sentido, de “ser pessoa dentro de todo o espaço da alegria” do Carnaval
de Salvador.
FONTE: Marília Lomanto Veloso / Doutora em Direito
pela PUC/SP, Professora de Direito da UEFS,
Ex Promotora de Justiça da Bahia,
Membro do Conselho Penitenciário do Estado da Bahia e
Presidente do
JusPopuli/Escritório de Direitos
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