Em agosto de 2012, comemoram-se os 100 anos de nascimento do escritor
Jorge Amado. Certamente estão programados vários eventos para rememorar o
escritor brasileiro com mais obras traduzidas no mundo todo e adaptadas para o
cinema, teatro e televisão. Um dos primeiros acontecerá no Carnaval de São
Paulo
Da famosa carta de Pero
Vaz de Caminha ao rei D. Manuel, de Portugal, em 1500, que descrevia a terra
descoberta por Cabral, sempre nos lembramos de que nela "em se plantando,
tudo dá". E ninguém acredita mais nisso que os carnavalescos das escolas
de samba. Dando asas à imaginação e à criatividade, na escolha de um enredo
para o desfile de Carnaval, na maioria das vezes, eles "plantam"
ideias rebuscadas para contar uma simples história. Muitos se dão bem. Outros
se perdem no emaranhado de fatos e de conceitos criado por eles próprios.
Sidney França, um jovem de 30 anos, que desde 2009 elabora os enredos da escola
de samba paulistana Mocidade Alegre, está entre os primeiros. Para o carnaval
de 2012 - ano em que se comemora o centenário de Jorge Amado - em vez de contar
a vida e a produção literária do escritor, Sidney escolheu uma de suas obras: Tenda dos Milagres -
romance sociológico, lançado em 1969, que denuncia o preconceito e a
intolerância religiosa -, e exalta o que, segundo Amado, seria a identidade nacional,
resultante de misturas, como a miscigenação e o sincretismo religioso.
"Não é por acaso
que a história de Tenda dos
Milagres começa na África, com um presságio sobre a terra
para onde os negros foram levados como escravos: 'nascer, crescer e se misturar'.
- explica Sidney -. Este é o enfoque central do nosso enredo, cujo personagem
principal não é o Pedro Archanjo da obra, que no candomblé tinha o título de Ojuobá (os
olhos do rei), é o próprio rei Xangô."
Na história pensada pelo
carnavalesco, vendo tanta injustiça contra os africanos e seus descendentes, o
capoeirista mestiço Archanjo, que trabalha como bedel (servente) em uma
universidade em Salvador, clama pela justiça de Xangô. O orixá, então, deixa o
continente africano, atravessa o mar e chega ao Brasil, onde encontra a
escravidão. Ele liberta os escravizados, mas o racismo e o preconceito
permanecem. É quando Xangô resolve iluminar a mente do escritor comunista Jorge
Amado para resgatar a história do povo baiano, mostrando como os negros fizeram
para integrar a raça brasileira e conseguir manter suas crenças.
XANGÔ ESCOLHEU UM OBÁ ATEU
Apesar de se declarar um
homem sem fé, o próprio Jorge Amado recebeu no candomblé o título de honra Obá
de Xangô - por indicação do próprio orixá - como teria declarado a sacerdotisa
Mãe Senhora (Maria Bibiana do Espírito Santo), que esteve à frente do terreiro
Ilê Axé Opó Afonjá, de 1942 a 1967. Sidney França ressalta que "assim como
o escritor, o mulato Pedro Archanjo, na obra, vive entre a intelectualidade
baiana e o povo simples de Salvador, jogando capoeira na praça, se embebedando
com os boêmios, mas também debatendo, em pé de igualdade, com os teóricos
acadêmicos racistas. Circula seguro pela
região do Pelourinho, entre a elite e a vassalagem." O carnavalesco lembra
que Amado foi eleito deputado federal pelo Partido Comunista Brasileiro, em
1945, e, mesmo sendo ateu, foi o autor do projeto de lei que garantiu o direito
à liberdade de culto e de expressão religiosa, ratificado posteriormente pela
Constituição de 1988.
É essa Bahia dos anos 20
e 30 do século passado, com sua riqueza cultural e as misturas que a
caracterizam, que será cantada e apresentada pela Mocidade Alegre.
E para quem imagina que
se verá um enredo exaltando a personalidade e o talento literário de Jorge
Amado, o carnavalesco alerta: "Não faremos isso. Que até seria mais fácil.
Por conta das adaptações de suas obras, entre elas, a própria Tenda dos Milagres, que
virou um filme de Nelson Pereira dos Santos (1977) e uma minissérie da Globo,
todos já conhecem bem o talento do autor e a riqueza de suas obras. Minha
menção a Amado será fechar o desfile, agradecendo ao visionário escritor
centenário por ter retratado tão bem o Brasil e sua forte identidade."
MISSÃO: SER CAMPEÃ
Sidney França se criou
na Casa Verde Alta, em São Paulo. Ainda menino conheceu a Mocidade Alegre e, na
década de 90, desfilou na ala Em Cima da Hora. Com a morte da presidente Elaine
Cruz Bechara, em 2003, a irmã da falecida, Solange Cruz Bechara assumiu a
presidência e criou uma comissão de carnaval para a qual convidou o amigo
Sidney, formado em economia. Nessa comissão ele assessorou os carnavalescos
Nelson Ferreira e, posteriormente, Zilkson Reis, que ficou até 2008.
Esposa do Mestre Sombra (Marcos Rezende), diretor de bateria - e mãe de
Carlos Augusto, o Sombrinha - Solange assumiu a presidência da Mocidade Alegre,
em 2004, com duas missões igualmente difíceis: fazer a escola reconquistar o
título de campeã do grupo especial depois de 24 anos; e convencer o tio, Juarez
da Cruz, de que tinha capacidade para isso, sob a intensa pressão do patriarca
da Mocidade e o grupo que o circundava. "Eu chorava bastante, rezava e
trabalhava enlouquecidamente com a comissão na montagem do enredo Do Além-Mar à Terra da Garoa... Salve Esta Gente
Boa. Fui para a apuração com meus 'tercinhos' e quase morri quando
a Mocidade Alegre foi sagrada campeã. Lembro do Seu Juarez - ela não o menciona como tio
- vindo humildemente me cumprimentar, me chamando de filha."
Seguiram-se
dois terceiros lugares e, em 2007, outro título de campeã, com Posso Ser Inocente, Debochado e Irreverente...
Afinal, Sou o Riso dessa Gente!!!. Solange diz que inicialmente era
para ser contada a história dos Mamonas Assassinas e que haveria um grande
patrocínio, pois ia fazer parte de um filme, mas a velha guarda e outros
integrantes foram contra e que ela antes de tudo respeita a opinião da
comunidade. "Se não agradá-los, não adianta montar, pois o
enredo não pega a alma da escola", afirma.
No ano seguinte, a Mocidade foi
vice-campeã. Em 2009, a escola apelou para o coração com o enredo Da Chama da Razão ao Palco das Emoções... Sou
Máquina, Sou Vida... Sou Coração Pulsando Forte na Avenida!!!. Os "tercinhos' de Solange se
multiplicaram. "Os amigos sabem que eu gosto de terços e me presenteiam
com eles." E deram sorte mesmo. Mas pesou mais o desfile impecável. Campeã
de 2009. Menos de 10 dias depois da apuração, o coração emocionado do
fundador-mor da agremiação, Juarez da Cruz parou de bater.
"OJUOBÁ ‑
NO CÉU,OS OLHOS DO REI...
NA TERRA, A MORADA DOS MILAGRES...
NO CORAÇÃO, UM OBÁ MUITO AMADO!"
(GRCES MOCIDADE ALEGRE - CARNAVAL/2012)
O VOO DAS
MARIPOSAS
Na década de 50, os fluminenses de Campos do
Goytacazes, Juarez, Carlos e Salvador, com seus amigos, costumavam brincar
carnaval vestidos com roupas femininas. Naquela época, a zona de meretrício da
cidade ficava no bairro do Bom Retiro. O então prefeito Jânio Quadros mandou
reformar bondes, nos quais colocaram uma inscrição dizendo que foram
recuperados pela prefeitura. Aí eles tiveram a ideia de batizar seu bloco de
Mariposas Recuperadas do Bom Retiro.
Foi com esse espírito que os três irmãos
fundaram o bloco Mocidade Alegre, na década de 60, quando o carnaval paulistano
foi oficializado. O bloco virou escola de samba e, contam os mais velhos, que
seus melhores desfiles foram com temas afros, como Zumbi dos Palmares (1970), A Revolta dos Malês (1979), A Embaixada de Bambas (1980), Vissungo, Canto de Riqueza(1981),
e Omi - O
Berço da Civilização Iorubá (2003),
entre outros.
No início dos anos 70, Juarez, com seu inseparável
charuto e chapéu russo de pelo de carneiro, inaugurou no bairro do Limão, a
quadra alugada que ficou conhecida como Morada do Samba. Ele encabeçou a
Mocidade Alegre até 1992, quando passou a presidência para o irmão Carlos
Augusto Cruz Bechara. Com a morte de Carlos, em 1998, o cargo foi assumido pela
filha Elaine Cristina, a Laila. E agora o comando está a cargo da irmã dela,
Solange, que se orgulha de ter feito mudanças radicais, profissionalizando a
escola. "As regras estão cada vez piores. A gente trabalha muito e no dia
do desfile sai daqui para ser campeã.
O Carnaval é decidido nos detalhes. Só
não seremos por alguma circunstância, como neste ano, que tivemos uma quebra de
carro, que tirou pontos da escola. Com esses pontos teríamos vencido o
Carnaval."
Nos tempos de Seu Juarez, na concentração do desfile, eram
distribuídos folhetinhos com os seguintes dizeres: "Receita para ganhar
Carnaval: cantar, sambar e sorrir."
Solange e Sidney que, durante a
entrevista, sorriram o tempo todo e, nos ensaios fazem questão de sambar e
cantar com sua comunidade, seguem a receita. E claro que eles confiam também no
machado de Xangô. Caô Cabecilê!
FONTE : OSWALDO FAUTINO / Raça Brasil
Veja letra do samba-enredo da Mocidade Alegre para 2012
Ojuobá — No Céu, os Olhos do Rei…
Na Terra, a Morada dos Milagres…
No Coração, Um Obá Muito Amado!
Autores: Fernando, Leandro Poeta, Renato Guerra, Rodrigo Minuetto, Thiago e Vitor Gabriel
O rufar do tambor vai ecoar
Tenho sangue guerreiro, sou Mocidade!
A luz de Ifá vai me guiar
Ojuobá espalha axé, felicidade!
Kaô kabecile
Kaô kabecile
Kaô, meu Pai Xangô!
Ouça o clamor de Ojuobá
É fogo! É trovão! É justiça!
E assim, cruzando o mar de Yemanjá
Aponta o seu oxé a nos guiar
Raiou o sol da liberdade a quebrar correntes
E nessa terra o negro vence
Com a proteção do rei de Oyó
Contra o preconceito ao seu povo
Conduz a mão que escreve um mundo novo
No Pelô… Salve a Bahia de São Salvador
No Pelô… Salve a Bahia de São Salvador
Eu vou à capoeira, meu amor
Morada dos milagres, devoção e fé
Um grito de igualdade… Axé!
É magia…
É magia…
Na mistura de raças surgiu
A pele morena, linda é a cor do Brasil
Na crença, um traço cultural
E pelas ruas o povo a cantar
É arte popular que faz emocionar, o Afoxé a embalar
No Ylê a sua luz brilhou
A mão de Mãe Senhora o consagrou
Eternizado, é coroado Obá de Xangô
Jorge… Orgulho da nação
Amado… Em cada coração
Feliz, o povo canta em oração!
Ifá – Orixá responsável pelo destino. O próprio destino. É
também o nome de um oráculo africano utilizado como sistema de
adivinhação, através do jogo de búzios. Originado pelos povos
yorubás, na África (região da atual Nigéria).
Ojuobá – Palavra da língua yorubá que significa Olhos do
Rei ou Os Olhos de Xangô. É um título-de-honra conferido
no Candomblé para aqueles escolhidos pelo Orixá da Justiça para
fazerem valer sua vontade. Os ojuobás são conhecedores dos segredos do axé e
verdadeiros guerreiros na luta por uma sociedade mais justa e feliz.
Axé - força
vital, energia, princípio da vida, força sagrada dos
orixás. Axé é o nome que se dá às partes dos animais que contêm essas forças da
natureza viva, que também estão nas folhas, sementes e nos frutos sagrados. Axé
é bênção, cumprimento, votos de boa-sorte e sinônimo de Amém. Axé é poder. Axé
é o conjunto material de objetos que representam os deuses quando estes são
assentados, fixados nos seus altares particulares para ser cultuados. São as
pedras e os ferros dos orixás, suas representações materiais, símbolos de uma
sacralidade tangível e imediata. Axé é carisma, é sabedoria nas
coisas-do-santo, é senioridade. Axé se tem, se usa, se gasta, se repõe, se
acumula. Axé é origem, é a raiz que vem dos antepassados, é a comunidade do
terreiro. Os grandes portadores de axé, que são as veneráveis mães e os
veneráveis pais-de-santo, podem transmitir axé pela imposição das mãos; pela
saliva, que com a palavra sai da boca; pelo suor do rosto, que os velhos orixás
em transe limpam de sua testa com as mãos e, carinhosamente, esfregam nas faces
dos filhos prediletos. Axé se ganha e se perde. (Extraído de Reginaldo Prandi, Os
candomblés de São Paulo.)
Kaô Kabecile
(Kawó Kabiesielé) – Saudação a Xangô, significa venha
ver o Rei descer sobre a Terra.
Xangô – é o orixá do fogo, do trovão, do governo e da justiça.
Foi sincretizado com São Jerônimo, santo invocado para se pedir
proteção contra os temporais. O poder sobre as intempéries fez de São Jerônimo
Xangô... E vice-versa. Também foi sincretizado com São João, pois o
fogo, elemento de Xangô, está presente na fogueira deste santo católico.
Iemanjá – Deusa
dos mares. Orixá feminino que foi
sincretizada com a Nossa Senhora da Conceição (protetora da
Humanidade) e Nossa Senhora dos Navegantes. Na mitologia, é mãe da
maioria dos orixás.
Oxé – Ferramenta que Xangô carrega. Trata-se de uma
machadinha com duas lâminas, instrumento que ele usa para fazer justiça.
Oyó – Cidade da Nigéria que foi capital de um reino séculos atrás, onde
originou-se o culto a Xangô.
Rei de Oyo – Uma das formas para se referir a Xangô.
Afoxé – Bloco carnavalesco formado por filhos de santo. Também conhecido
como “candomblé-de-rua”. Também é o nome de um instrumento musical.
Ilê – Terreiro de Candomblé (Ilé Axé). Terreiro é o nome que se
dá ao templo de candomblé e de outras religiões afro-brasileiras. Nos primeiros
tempos, os rituais eram celebrados no quintal de alguma edificação urbana ou
numa roça afastada, isto é, no terreiro, ao ar livre. Depois, passou-se a
construir um barracão coberto de sapê onde se realizavam as danças sagradas,
cômodos para abrigar os altares dos orixás e a clausura, onde se fazem as
iniciações secretas. Esse conjunto é chamado ainda hoje de terreiro. O local
das danças cerimoniais, do mesmo modo, é denominado barracão, embora seja agora
um salão de alvenaria, como as demais dependências. Em yorubá, uma das línguas
rituais do candomblé, o templo ou terreiro é chamado de Ilê Axé (Casa
de Axé).
Obá de Xangô
- Título-de-honra vitalício criado em 1936 por Mãe
Aninha no Ilê Axé Opo Afonjá, para homenagear amigos importantes e
grandes defensores do terreiro. Jorge Amado ocupou uma das
doze cadeiras do conselho dos Obás de Xangô - orixá a que esse terreiro é
consagrado. Amado foi condecorado por Mãe Senhora.
Outras
expressões:
Pelô – abreviação de Pelourinho. Referência à famosa ladeira de Salvador,
que serviu de cenário do livro “Tenda dos Milagres” e da minissérie de mesmo
nome.
Morada dos
Milagres – Trocadilho com o nome do livro Tenda
dos Milagres (de Jorge Amado) e a Morada do Samba.
FONTE: Departamento Cultural Mocidade Alegre
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