Ronaldinho encarna os dois grandes sintomas da contemporaneidade: a depressão e o imperativo do gozo*
Embora apaixonado por futebol e leitor dos jogos em suas dimensões técnicas e táticas, evito tratar do assunto nesta coluna. Escrevo no caderno de cultura, não no de esportes. Mas uma das dimensões do futebol é a cultura; quando algum acontecimento no mundo do futebol revela um problema do campo cultural, sinto-me convocado a interpretá-lo. Já disse mais de uma vez que quem pudesse compreender com precisão a transformação de Ronaldinho Gaúcho em algum momento de 2006 estaria tocando no ponto fulcral do espírito do nosso tempo. O que essa transformação tem de singular é precisamente sua recusa à legibilidade. Outros personagens fundamentais de nosso tempo dão-se a ler com maior clareza — a metamorfose infinita de Michael Jackson se revela uma passagem ao ato em consequência do preconceito racial americano, por exemplo. Mas Ronaldinho Gaúcho permanece um enigma. É desse enigma que vou tentar me aproximar aqui.
Antes de tudo, devo assinalar meu mal-estar em interpretar publicamente a subjetividade de alguém. Reconheço que isso é uma forma de violência. Mas se trata de um caso em que o interesse público está em jogo, na medida que lhe serve de espelho. De modo geral, considero que só deve ser tratado publicamente aquilo que um sujeito dispõe deliberadamente na esfera pública. A subjetividade de Ronaldinho aparece na esfera pública, como uma sombra inevitável, a cada vez que ele entra em campo (e como uma luz dura de interrogatório nas informações extra-campo). Vou pensar essa sombra, repito, pelo que ela contém de segredo cifrado de nosso tempo. Mas tenho dúvidas sobre a correção moral da minha atitude.
O enigma, em si, é claro: qual o sentido da transformação de Ronaldinho em algum momento de 2006? De reencarnação exuberante dos valores brasileiros do ludismo, improviso e alegria, ele se tornou uma espécie de autômato desencarnado, duplo triste de si mesmo. Quando estava no auge, chegou a receber de Maradona a declaração de que era o único jogador do mundo a jogar sorrindo. Pouco tempo depois, o sorriso desapareceu, mas não deu lugar a uma paixão qualquer contrária, e sim à ausência absoluta de paixões. As paixões são legíveis. Ronaldo Fenômeno estourando o joelho, o rosto contorcido de dor, a lenta e desacreditada recuperação, a volta por cima na Copa de 2002, a nova contusão, a decadência física, os travestis com a suposta cocaína, a “traição” ao Flamengo, a nova volta por cima, a fúria no alambrado. A própria pança como signo das paixões desenfreadas.
As paixões não são apenas legíveis, elas são também preferíveis. Mesmo as piores paixões despertam mais identificações, mais paixões — pena, revolta, admiração pela superação — do que a ausência de paixões.
A ausência de paixões não produz nenhum tipo de identificação, e assim não pode ser convertida em valor moral pela publicidade. No Flamengo, Ronaldinho Gaúcho foi um fracasso absoluto nesse quesito; é irônico que a paixão da ruptura, terceirizada por ele ao irmão Assis, tenha como motivo justamente o pagamento dos direitos de imagem. O outro nome da ausência de paixões é depressão. Talvez a paixão de repúdio que Ronaldinho desperta venha de que ele traz à cena o que queremos esconder: a depressão como sintoma fundamental de nosso tempo. E isso tem um efeito intensificado por força do contraste: a ausência de paixões justo na ópera dos esportes, no palco das paixões sublimadas e primais.
A psicanálise considera a depressão uma resposta falhada ao excesso de demanda. Isso a explicaria como grande sintoma contemporâneo: diante das altas exigências de performance das nossas sociedades capitalistas, o sujeito recua, desiste, depõe as armas, renuncia ao desejo e ao falo. A convulsão de Ronaldo Fenômeno às vésperas da decisão da Copa de 1998 pode ser lida também por essa chave. Mas em Ronaldinho ela se tornou a resposta permanente. E no entanto dividida, sem deixar, talvez num esforço sobre-humano, de tentar responder desejosamente às demandas do mundo. Quando penso nisso sinto compaixão por ele. Todos nós estamos há anos reproduzindo as demandas opressivas — o que só pode ter como efeito o agravamento da resposta depressiva.
Por outro lado, Ronaldinho demonstra uma paixão desmedida pelas noitadas.
Não é contraditório. Às demandas de produtividade, de ascese, às pressões para corresponder ao desejo do mundo, que quer desejar por ele a todo custo, ele responde com improdutividade, ócio, dissolução, todas as formas da dépense. De modo que Ronaldinho acaba encarnando, intensamente, os dois grandes sintomas da contemporaneidade: a depressão e o imperativo do gozo. São os dois lados da mesma moeda. E a moeda talvez possa virar para qualquer um, a qualquer momento.
A entrevista de Ronaldinho ao “Fantástico” confirma mais uma vez essa leitura. Em postura não relaxada, mas indiferente, com aquele olhar perdido que é uma verdadeira janela da alma vazia, ele respondeu evasivamente às perguntas diretas do entrevistador: respostas acuadas, sem qualquer tipo de afirmação, sem revolta, sem inteligência, sem nada de ativo, sem paixão.
Se ele fosse capaz de nos mandar cuidar das nossas vidas, de recusar o massacre do desejo dos outros pesando sobre ele, talvez, depois de algum tempo, jogando uma pelada, entre amigos, sem as dezenas de câmeras e os milhares de olhos esperando dele uma resposta, talvez, a sós com a bola, pudesse abrir, sem se dar conta, aquele mesmo sorriso que encantou Maradona e o mundo.
*Este artigo foi publicado na coluna de Francisco Bosco, no Segundo Caderno do GLOBO.
FONTE: COLUNA DO ANCELMO N'O GLOBO
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