Vítima
em 1950 de uma das maiores injustiças do futebol, o goleiro passou seus últimos
anos no litoral de São Paulo tentando exorcizar o maracanazo
Final
da Copa do Mundo. Trinta e quatro minutos do segundo tempo. O empate dá o
primeiro título ao Brasil. O ponta Gigghia entra pela direita e, quase sem
ângulo, não cruza, chuta para o gol. A bola entra rasteira no canto esquerdo,
apesar do esforço do goleiro brasileiro Barbosa. Uruguai 2 a 1, de virada.
Silêncio e choro no recém-inaugurado Maracanã com quase 200 mil torcedores.
Luto em todo o país. E o início de uma das maiores injustiças do futebol, que
marca o destino de Barbosa, apontado como o maior culpado pela derrota.
“No
Brasil, a pena máxima (de prisão) é de 30 anos, mas pago há 40 por um crime que
não cometi”, costumava dizer décadas depois do incidente o ídolo do Vasco da
Gama, do Rio de Janeiro, e que, até a fatídica data de 16 de julho de 1950,
havia sofrido quatro gols em cinco jogos no Mundial. A seleção brasileira
chegava à final com grande entusiasmo popular e um favoritismo quase
inabalável, após ter marcado 21 gols e acumulado goleadas como a de 6 a 1 ante
a Espanha e a de 7 a 1 contra a Suécia.
Não
foram poucas as vezes em que o ex-goleiro teve de enfrentar cobranças na rua
após o episódio que entrou para a história como “Maracanazo”. Sobre uma delas,
contou que uma mãe o apontou para o filho em um comércio e o identificou como
“o homem que fez o Brasil chorar”. Em outra, disse ter sido interpelado de
forma ríspida em um bar. “Aqui no Brasil ser vice-campeão do mundo não tem
valor, não vale nada”, dizia, em meio a hábitos de vida simples e muito
distante das fortunas proporcionadas atualmente pelo futebol.
Barbosa,
inclusive, chegou até a passar pelo constrangimento de ser impedido de visitar
os jogadores na concentração da seleção brasileira, em 1993. A situação gera
alguma controvérsia até hoje, com pessoas próximas ao ex-goleiro desmentindo o
ocorrido e atribuindo a polêmica ao sensacionalismo da imprensa da época. O
Brasil decidiria sua sorte dias depois nas eliminatórias para a Copa dos
Estados Unidos contra o mesmo Uruguai, no mesmo Maracanã. Acabaria carimbando o
passaporte ao vencer por 2 a 0, com gols de Romário. O ex-goleiro acabou sendo
recebido por Zagallo, então coordenador técnico da equipe.
Nelson
Rodrigues (1912-1980), um dos maiores dramaturgos brasileiros, escreveu em
1959: “Quando se fala em 50, ninguém pensa num colapso geral. (...) O sujeito
pensa em Barbosa, o sujeito descarrega em Barbosa a responsabilidade maciça,
compacta, da derrota. (...) O brasileiro já se esqueceu da febre amarela, da
vacina obrigatória, da (gripe) Espanhola, do assassinato de (senador) Pinheiro
Machado. Mas o que ele não esquece, nem a tiro, é o chamado frango de Barbosa”.
O
drama de Barbosa fez até com que alguns duvidassem no Brasil da capacidade de
goleiros negros. Irmão de Nelson Rodrigues, o jornalista Mario Filho
(1908-1966), que dá ainda nome ao Maracanã e é autor da obra referencial O
Negro no Futebol Brasileiro, disse que, quando o brasileiro acusou, além de
Barbosa, os também negros ou mulatos Juvenal e Bigode (pela derrota em 1950),
acusou a si mesmo.
Superstição
ou não, o fato é que só o goleiro Dida, ex-Milan, foi o titular absoluto da
amarelinha em uma Copa do Mundo, em 2006. O Brasil acabou eliminado pela França
nas quartas de final. Agora, Jefferson, do Botafogo, do Rio de Janeiro, tem
chance de mudar essa história, ao figurar entre os convocados para o Mundial de
2014. Ele vai, no entanto, ocupar a reserva de Júlio César, como na Copa das
Confederações do ano passado.
Barbosa
nasceu Moacir Barbosa Nascimento, em Campinas, no interior de São Paulo, em
1921. Pela seleção brasileira, conquistou o Sul-Americano de 1949. Defendendo o
Vasco da Gama, do Rio de Janeiro, ganhou seis títulos estaduais e um
continental precursor da Copa Libertadores da América, em 1948. Esse time é
lembrado até hoje como “Expresso da Vitória”. Após deixar os gramados, em 1962,
foi funcionário do Maracanã e, anos depois, deixou o Rio para viver em Praia
Grande, no litoral de São Paulo.
Hoje,
o legado de Barbosa, que não teve filhos, está com Tereza Borba, uma cuidadora
de idosos de 53 anos que vive em Praia Grande. Ela conheceu o ex-goleiro quando
era uma vendedora em uma barraca de praia na cidade, em 1992. “O Barbosa veio
embora porque no Rio cobravam muito dele. Uma irmã dele chamou então ele para
vir para cá. E aí ele se apaixonou pela cidade”, diz.
Leilão
Tereza
Borba afirma que pretende levar a leilão uma relíquia do Mundial de 1950, um
pedaço de uma das traves do Maracanã recebida de um historiador do Estado de
Minas Gerais (região Sudeste). A outra, conta, Barbosa recebeu como presente na
época em que era funcionário no estádio carioca, por ocasião da troca das
traves de madeira por outras mais modernas. “Ele colocou fogo na madeira em
Ramos (bairro do subúrbio do Rio de Janeiro onde morava) e fez churrasco com a
brasa.”
Com
o dinheiro arrecadado com o leilão, ela espera reformar o túmulo do ex-goleiro
e ajudar na construção de uma estátua de corpo inteiro, para colocá-la em uma
praça que teria o nome dele ou mesmo na entrada do cemitério em que está
enterrado próximo à sua esposa, Clotilde, em Praia Grande, “contando a história
dele de glórias e honras”.
“O pior momento foi a perda da mulher dele,
Clotilde. Foi pior que 1950. Ele não tinha sentimento de culpa por 1950. O
Barbosa viveu momentos de intensa felicidade nos últimos anos. Ele foi um dos
melhores seres humanos que conheci na vida”, conta a cuidadora de idosos, que é
casada com um vascaíno fanático que acabou sendo o elo para a aproximação
inicial entre Tereza Borba e o ex-goleiro.
Em
um desses momentos de intensa felicidade, em 2000, Tereza Borba diz ter fechado
seu quiosque para comemorar o aniversário de Barbosa. Um bolo do Vasco da Gama
foi confeccionado, e ela afirma ter entregado ao ex-goleiro um troféu, para
“meu herói de vida”. Ele disse, então, entre os amigos presentes, que se falecesse
naquele dia, faleceria feliz.
Barbosa
morreria aos 79 anos uma semana depois. Ficavam para trás as injustiças do
passado. E, para o futuro, belas memórias.
FONTE: BRASIL / EL PAÍS - FREDERICO
ROSAS
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