“O
resultado das eleições para o Parlamento Europeu, no fim de maio, registrou na
prática o fortalecimento dos partidos de extrema direita no continente. Para
sociólogo, discurso com que esquerda explica o crescimento do fascismo pela via
da crise econômica reduz fenômeno e deixa de lado suas raízes históricas”.
A
análise é de Michael Löwy, sociólogo franco-brasileiro, pesquisador emérito do
CNRS, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 15-06-2014.
Eis
o artigo.
1.
As eleições europeias confirmaram uma tendência observada já há alguns anos na
maior parte dos países do continente: o crescimento espetacular da extrema
direita. Esse é um fenômeno sem precedente desde os anos 1930. Em muitos
países, essa corrente obtinha entre 10 e 20%. Hoje, em três países (França,
Inglaterra e Dinamarca), ela já atinge entre 25 e 30% dos votos. Na verdade,
sua influência é mais vasta do que seu eleitorado: ela contamina com suas
ideias a direita "clássica" e até mesmo uma parte da esquerda social-liberal.
O caso francês é o mais grave; o avanço da Frente Nacional ultrapassa todas as
previsões, mesmo as mais pessimistas. Como escreveu o site Mediapart em um
editorial recente: "São cinco para meia-noite".
2.
Essa extrema direita é muito diversa, podendo-se observar uma vasta gama que
vai desde os partidos abertamente neonazistas --como o Aurora Dourada grego--
até as forças burguesas perfeitamente integradas no jogo político
institucional, como a suíça UDC (União Democrática de Centro). O que eles têm
em comum é o nacionalismo excessivo, a xenofobia, o racismo, o ódio contra
imigrantes --principalmente "extraeuropeus"-- e contra ciganos (o
mais velho povo do continente), a islamofobia e o anticomunismo. A isso pode-se
acrescentar, em muitos casos, o antissemitismo, a homofobia, a misoginia, o
autoritarismo, o desprezo pela democracia e a eurofobia. Quanto a outras
questões --por exemplo, ser a favor ou contra o neoliberalismo ou a laicidade--
a corrente se mostra mais dividida.
3.
Seria um erro acreditar que o fascismo e o antifascismo são fenômenos do
passado. É evidente que hoje não se encontram mais partidos de massa fascistas
comparáveis ao NSDAP (Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães)
dos anos 1930, mas já nessa época o fascismo não se resumia a um único modelo:
o franquismo espanhol e o salazarismo português eram bem diferentes do modelo
italiano ou do alemão.
Parte
importante da extrema direita europeia hoje tem matriz diretamente fascista
e/ou neonazista: é o caso do grego Aurora Dourada, do húngaro Jobbik, dos
ucranianos Svoboda e Pravy Sektor etc.; mas isso vale também, sob outro
aspecto, para a Frente Nacional, o FPÖ (Partido da Liberdade Austríaca), o
belga Vlaams Belang (Interesse Flamengo) e outros, cujos quadros fundadores
tiveram ligações estreitas com o fascismo histórico e com as forças de
colaboração com o Terceiro Reich. Em outros países --Holanda, Suíça,
Inglaterra, Dinamarca-- os partidos de extrema direita não têm origem fascista,
mas partilham com os primeiros o racismo, a xenofobia e a islamofobia.
Um
dos argumentos que demonstrariam que a extrema direita mudou e não teria mais
muito a ver com o fascismo é sua aceitação da democracia parlamentar e da via
eleitoral para chegar ao poder. Lembremos que um certo Adolf Hitler chegou à
Chancelaria por uma votação legal do Reich- stag (Parlamento alemão) e que o
marechal Pétain foi eleito chefe de Estado pelo Parlamento francês. Se a Frente
Nacional chegasse ao poder por meio de eleições --uma hipótese que infelizmente
não se pode descartar-- o que restaria da democracia na França?
4.
A crise econômica que castiga a Europa desde 2008 favoreceu, portanto, de
maneira predominante (com exceção do caso da Grécia), mais a extrema direita do
que a esquerda radical. A proporção entre as duas forças está totalmente
desequilibrada, contrariamente à situação europeia dos anos 1930, que via, em
diversos países, um crescimento paralelo do fascismo e da esquerda
antifascista.
A
extrema direita atual, sem dúvida, se aproveitou da crise, mas isso não explica
tudo: na Espanha e em Portugal, dois dos países mais atingidos pela crise, a
extrema direita continua marginal. E na Grécia, ainda que o Aurora Dourada
tenha crescido exponencialmente, segue retumbantemente derrotado pelo Syriza,
coalizão da esquerda radical. Na Suíça e na Áustria, países poupados pela
crise, a extrema direita racista ultrapassa com frequência os 20%. É preciso,
então, evitar as explicações economicistas que a esquerda vem propondo.
5.
Fatores históricos têm sem dúvida o seu papel: uma grande e antiga tradição
antissemita em certos países; a persistência de correntes colaboracionistas
desde a Segunda Guerra Mundial; a cultura colonial, que impregna as atitudes e
os comportamentos muito depois da descolonização --não somente nos antigos
impérios, mas em quase todos os países da Europa. Todos esses fatores estão
presentes na França e contribuem para explicar o sucesso do lepenismo.
6.
O conceito de "populismo", empregado por alguns cientistas políticos,
pela mídia e mesmo por uma parte da esquerda, não é de modo algum capaz de dar
conta do fenômeno em questão, servindo apenas a semear a confusão. Se na
América Latina, desde os anos 1930 até os 1960, o termo correspondia a algo
relativamente preciso --o varguismo, o peronismo etc.--, seu uso na Europa a
partir dos anos 1990 é cada vez mais vago e impreciso.
O
populismo é definido como "uma posição política que está do lado do povo
contra as elites", o que é válido para quase qualquer movimento ou partido
político. Esse pseudoconceito, aplicado aos partidos de extrema direita, leva,
voluntariamente ou não, a legitimá-los, a torná-los mais aceitáveis, e até
mesmo simpáticos --quem não é a favor do povo contra as elites?--, evitando
cuidadosamente os termos que contrariam: racismo, xenofobia, fascismo, extrema
direita. "Populismo" também é utilizado de maneira deliberadamente
mistificadora por ideólogos neoliberais para amalgamar a extrema direita e a
esquerda radical, caracterizadas como "populismo de direita" e
"populismo de esquerda", opondo-as aos políticos liberais, à Europa
etc.
7.
A esquerda, todas as tendências reunidas --com poucas exceções--, tem
subestimado cruelmente o perigo. Ela não viu chegar a "vague brune"1
e, por isso, não achou necessário tomar a iniciativa de uma mobilização
antifascista. Para algumas correntes da esquerda, a extrema direita é apenas um
subproduto da crise e do desemprego, e é contra essas causas que é preciso
lutar, e não contra o fenômeno fascista em si. Esses argumentos tipicamente
economicistas desarmaram a esquerda diante da ofensiva ideológica racista,
xenófoba e nacionalista da extrema direita.
8.
Nenhum grupo social está imune à "peste brune". As ideias da extrema
direita, em particular o racismo, contaminaram um bom contingente, não só de
pequenos-burgueses e desempregados como também da classe trabalhadora e da
juventude. No caso francês, isso é particularmente chocante. Essas ideias não
têm nenhuma ligação com a realidade da imigração: o índice de votação na Frente
Nacional, por exemplo, é especialmente alto em algumas regiões rurais em que
nunca se viu um só imigrante. E os imigrantes ciganos, que foram recentemente
objeto de uma onda de histeria racista bastante impressionante --com a
indulgente participação do então ministro "socialista" do Interior,
Manuel Valls--, são menos de 20 mil em todo o território francês.
9.
Outra análise "clássica" da esquerda sobre o fascismo é a que o
explica como um instrumento do grande capital para esmagar a revolução e o
movimento trabalhador. Bom, como hoje o movimento trabalhador está muito
enfraquecido e o perigo revolucionário inexiste, o grande capital não tem
interesse em sustentar movimentos de extrema direita, então a ameaça de uma
ofensiva "brune" não existe. Trata-se, mais uma vez, de uma visão
economicista, que não abarca a autonomia própria aos fenômenos políticos --os
eleitores podem escolher um partido que não tem a simpatia da grande burguesia--
e que parece ignorar que o grande capital pode se acomodar em todos os tipos de
regimes políticos, sem muitas preocupações.
10.
Não há receita mágica para combater a extrema direita. É preciso se inspirar,
mantendo certa distância crítica, nas tradições antifascistas do passado; mas é
preciso também saber inovar para responder às formas atuais do fenômeno. Há que
saber combinar iniciativas locais com movimentos sociopolíticos e culturais
individuais solidamente organizados e estruturados, em escala nacional e
continental. É possível chegar a uma unidade pontual de todo o espectro
"republicano", mas um movimento antifascista organizado só será
eficaz e confiável se impelido por forças externas ao consenso neoliberal
dominante. Trata-se de uma luta que não pode se limitar às fronteiras de um
país, mas deve se organizar em escala europeia. O combate ao racismo, e a
solidariedade a suas vítimas, é um dos componentes essenciais dessa
resistência.
Nota:
1
- "Vague brune", onda marrom, é como vem sendo chamada, na França, a
expansão fascista. A expressão deriva de "peste brune", praga marrom,
nome dado pelos franceses ao nazismo durante a Segunda Guerra, em referência à
cor do uniforme dos soldados do Reich.
FONTE: ihu / unisinos
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