Documento inédito faz mapeamento da situação dos vendedores ambulantes
no país e mostra que eles já têm sido afetados pelos preparativos para a Copa.
E a Fifa fala sobre suas zonas de exclusão
Durante as Olimpíadas de 1988 em Seul, os vendedores ambulantes foram
removidos das ruas principais e colocados atrás de paredes e becos, como parte
do processo de higienização da cidade. Nas Olimpíadas de 1992 em Barcelona, o
comércio de rua foi completamente proibido*. Na África do Sul, o estatuto da
Fifa vetou o comércio informal perto de edifícios públicos, igrejas, caixas
eletrônicos e das áreas oficiais de exclusão da Fifa – ou “áreas de restrição
comercial” como preferem chamar – que, diferentemente do que se pensa, não se
restringe apenas ao entorno dos estádios mas também aos locais de eventos
oficiais da Fifa (que incluem as fan parks, grandes festas de torcedores
geralmente montadas nos centros das cidades ou em praias), centros de
credenciamento, áreas oficiais de treinamento, hotéis onde as delegações dos
países e as equipes da Fifa estão hospedadas, dentre outros. Na África,
qualquer comércio não autorizado era proibido em um raio de 100 metros destes
locais (2 km no caso dos estádios). Também foi expressamente proibido o uso de
uma lista interminável de termos relacionados à Copa, Fifa e futebol, como a
Pública mostrou no documentário Trade Mark 2010, do jornalista Rudi Boon.
No Brasil os camelôs fazem parte da cultura. Não dá para imaginar São
Paulo sem a 25 de Março ou Salvador sem as incontáveis barraquinhas de
pulseirinhas, acarajés e artigos importados. Cada cidade tem sua feira típica,
sua concentração de barraquinhas famosa. Tem até aquela música do João Bosco: “Veio o camelô vender anel/Cordão, perfume barato/ Baiana vai fazer
pastel/E um bom churrasco de gato”. Mas o comércio informal não faz
parte dos planos do país para o megaevento.
A Lei Geral da
Copa, aprovada na Câmara dos Deputados no dia 28 de março e que espera
aprovação no Senado, diz no artigo 11 que: “A União colaborará com os Estados,
o Distrito Federal e os Municípios que sediarão os Eventos e com as demais
autoridades competentes para assegurar à Fifa e às pessoas por ela indicadas a
autorização para, com exclusividade, divulgar suas marcas, distribuir, vender,
dar publicidade ou realizar propaganda de produtos e serviços, bem como outras
atividades promocionais ou de comércio de rua, nos locais oficiais de
competição, nas suas imediações e principais vias de acesso”. Diz ainda que “os
limites das áreas de exclusividade relacionadas aos locais oficiais de
competição serão tempestivamente estabelecidos pela autoridade competente,
considerados os requerimentos da Fifa ou de terceiros por ela indicados,
atendidos os requisitos desta Lei e observado o perímetro máximo de 2 Km (dois
quilômetros) ao redor dos referidos locais oficiais de competição”. Isso
significa que a Fifa deve negociar estas áreas diretamente com os municípios. A
Pública entrou em contato com as prefeituras das 12 cidades que sediarão a
Copa, mas ainda não há nada acertado em nenhuma delas. Por e-mail, a assessoria
de imprensa da Fifa confirmou que as zonas de restrição comercial se estendem a
hotéis, centros de mídia, etc. e o que mais entender como perímetro de
segurança. Mas garante que o comércio regular dentro desses perímetros “poderão
trabalhar com as marcas que já trabalham se não estiverem visando o evento ou
seus espectadores” – algo bem difícil de comprovar. Também explica que “não vai
comentar sobre o projeto de lei 2014, por ser um processo em curso”.
Para Érick Omena,
pesquisador do Observatório das Metrópoles, há uma falta de clareza na lei e em
todo o processo que envolve a Copa no Brasil. Ele acredita que este “pacote” de
decisões delegado aos municípios é um cheque em branco, pois transfere poder
aos seus governantes: “Eles ganham poder de barganha com a Fifa e com os
comerciantes. Uma simples decisão como esta desencadeia vários processos. O
modus operandi da política municipal é muito voltada para o clientelismo e
fatalmente estas decisões vão passar por isso”. Érick também avalia dois
problemas potenciais nas zonas de exclusão: “O primeiro é o da soberania
nacional sobre o território. Está sendo delegado o controle territorial à
entidades privadas e isso é muito grave. A Fifa e suas empresas parceiras vão
assumir o poder sobre trechos do território brasileiro, inclusive criando
tribunais especiais para julgar os delitos criados por uma legislação de
exceção. O segundo é o da exclusão dos comerciantes que não poderão vender nada
relacionado à Copa. Quanto aos ambulantes nem se fala, já existe uma cultura de
repressão a eles há décadas. Certamente isso vai ser agudo no período da Copa
do Mundo”.
A StreetNet
internacional – aliança de organizações de vendedores informais de diversos
países, fundada em 2002 na África do Sul, realizou uma pesquisa preliminar em
dez das 12 cidades que sediarão os jogos da Copa de 2014 para avaliar o impacto
potencial sobre os ambulantes. Além de levantamento de dados, foram feitas
diversas entrevistas com lideranças de vendedores informais, representantes do
movimento sindical, de movimentos sociais e de organizações não-governamentais
reunidos no documento “Copa do Mundo para Todos – O retrato dos vendedores
ambulantes nas cidades-sede da Copa do Mundo de 2014”, que a Pública apresenta
aqui em primeira mão.
O objetivo da Streetnet é contribuir para a mobilização e organização
dos vendedores informais para o estabelecimento de redes municipais e de fóruns
de negociação nas cidades-sede dos jogos. O estudo traz um panorama da situação
atual dos vendedores ambulantes no Brasil, mostrando quem são, o que querem e
como serão afetados pelo megaevento de 2014. Enquanto muitos nem sabem da
existência das zonas de exclusão, outros já se articulam e até se reuniram em
um Fórum convocado pela StreetNet no fim do ano passado para se articular. Do
encontro saiu uma nota de repúdio com o título:"Outra Copa do Mundo é possível: Respeitando os direitos dos (as) vendedoras (as) informais. Entrevistada, uma liderança carioca disse: “Copa não é
para pobre porque a população não vai ganhar com o evento e certamente o
ambulante vai sofrer muito, como ocorrido nos jogos Pan-americanos”.
O relatório da
Streetnet ressalta que “nas cidades estudadas, desde o início de 2011, diversas
prefeituras têm revogado unilateralmente as permissões de comerciantes de rua,
principalmente dentro desses perímetros que tendem a ser espaços cedidos à FIFA
durante a Copa”.
E mostra também que
há falhas e falta de articulação entre as leis municipais e federais que emitem
licenças aos trabalhadores informais e que na grande maioria das cidades a
solução encontrada pelo poder público é o de realocar os vendedores para
shoppings populares longe dos centros e das vistas do público. Especificamente
sobre os preparativos para a Copa, o documento diz que “as cidades que
hospedarão jogos da Copa do Mundo vêm passando por um processo de
gentrificação, fortemente relacionado à produção da assepsia urbana, como forma
de adequação das cidades ao megaevento e sua formatação como Cidades Globais” e
aponta que a falta de informação sobre o megaevento é tão grande que muitos
ainda vêem com otimismo a chegada dos jogos à cidade, sem sequer ter ouvido
falar em zona de exclusão.
Nora Wintour,
coordenadora de campanha da StreetNet que acompanhou a Copa na África do Sul,
diz que a falta de informação é característica dos eventos da Fifa: “Acredito
que ao menos 100 mil ambulantes foram afetados pelas zonas de exclusão e fan
parks. Mas somente na metade de 2009 (menos de um ano antes da Copa da África
do Sul, portanto) os ambulantes ficaram sabendo do que iria acontecer. Por isso
não houve tanta mobilização”. Ela conta que com as campanhas de divulgação,
incluindo a da própria StreetNet e temendo a má publicidade, a Fifa disse que
habilitaria vendedores ambulantes para atividades oficiais especiais: “Nunca
vimos isso acontecer”.
Veja um resumo do que diz o documento
sobre cada uma das cidades pesquisadas:
Belo Horizonte
De acordo com a pesquisa, a cidade conta hoje com cerca de 25.000
vendedores informais: 47,8% apresenta uma renda próxima a um salário mínimo e
32% ganha de um a dois salários. Os trabalhadores já enfrentam impactos
gerados pelas reformas para a Copa, com destaque para os que trabalhavam perto
do Mineirão: “Cerca de 130 famílias foram atingidas com o fechamento do Estádio
do Mineirão, sede dos jogos da Copa em Belo Horizonte. Na cidade mineira, os
dois principais estádios foram fechados ao mesmo tempo para a realização de
reformas. Os jogos dos times que participam do campeonato nacional de futebol
foram transferidos para outras cidades do estado, dificultando o trabalho dos
ambulantes. Durante a redação dos relatórios de impacto social da obra de
reforma do Mineirão, ressaltou-se a necessidade de realocação dos feirantes –
que chegavam a trabalhar três dias por semana no comércio durante os jogos e
eventos realizados no estádio e tinham esta atividade como sua principal fonte
de renda. Um ano depois, os vendedores continuam sem nenhuma política de
compensação pela perda da renda.
Brasília
Em Brasília, a maior concentração de camelôs era ao redor da Rodoviária
do Plano Piloto 21. Alguns conseguiram licença para comprar quiosques dentro da
rodoviária e o restante foi transferido para shoppings populares. A maior
reclamação sobre os shoppings – na maioria das cidades – é a de que ficam longe
do fluxo de pessoas. Segundo dados apresentados no documento, os quiosques e
trailers proporcionam emprego direto a 60 mil pessoas e indireto a cerca de 100
mil pessoas em Brasília. Mesmo dizendo que ainda não estão sentindo os impactos
da Copa de 2014, os vendedores já tiveram que arcar com a construção de novos
quiosques, impostos pela necessidade de revitalização da cidade para o
megaevento: “Estes vendedores tiveram que arcar com a edificação (…) se
endividando através de empréstimos facilitados pela Associação Comercial do
Distrito Federal”.
Cuiabá
O comércio informal em Cuiabá, segundo a pesquisa, se caracteriza por uma divisão
nítida entre camelôs e artesãos. Os camelôs estão estabelecidos principalmente
nas calçadas e e em dois shoppings populares. Já os artesãos ficam nas praças,
em feiras que acontecem em dias determinados. Segundo números da prefeitura de
Cuiabá, cerca de 400 vendedores ocupam o entorno da Praça Ipiranga, no centro
da cidade, e são as obras de mobilidade urbana nessa área que apresentam maior
potencial de impacto sobre os vendedores de rua. A construção de corredores de
ônibus, que implica no alargamento de vias e redução dos espaços destinados às
calçadas, não deixa espaço para as barracas dos vendedores informais. Além
disso, a revitalização do entorno tem como um dos objetivos a retirada desses
ambulantes, amparada na legislação municipal que não permite a atividade
informal nas ruas.
Fortaleza
“O comércio informal no centro tornou-se referência e foi se estabelecendo cada
vez mais como saída para os trabalhadores urbanos que precisam de uma atividade
para sobreviver” explica o documento. A atividade também aparece com destaque
em outras áreas da cidade mas, no centro, a feira da praça da estação tem cerca
de 1.200 ambulantes cadastrados. As obras para a realização da Copa do Mundo,
além do centro, atingem áreas como a Av. Beira Mar e a Praia de Iracema. Os
ambulantes que trabalhavam ao redor do estádio Castelão (em reforma) já tiveram
de mudar de local. Os trabalhadores de outros pontos turísticos e públicos se
dizem preocupados com a ameaça de desemprego por causa das zonas de exclusão e
da fiscalização dos artigos falsificados. Há grande falta de informação,
segundo o documento, dificultando a compreensão do que de fato irá acontecer.
Manaus
Em Manaus é possível encontrar vendedores ambulantes em diversos locais da
cidade, como o centro, a área portuária e em pontos turísticos. Além das
bancas, há os “carros camelôs”. Segundo dados do texto, existem 4,8 mil
ambulantes na cidade de Manaus, sendo 2,5 mil deles estabelecidos no centro,
especialmente nas redondezas da Praça Matriz. Na gestão atual, como coloca o
documento da StreetNet, existe um projeto de revitalização chamado “Centro Vivo
28” e os ambulantes não fazem parte dos planos. Eles dizem que não sabem o que
poderá acontecer durante a Copa do Mundo porque não receberão informações.
Porto Alegre
Apesar de não haver estatísticas públicas oficiais sobre o número de vendedores
informais na cidade, estimativas de lideranças populares apontam que em
2007 havia cerca de 4 mil na região central da cidade. O texto da StreetNet diz
que especialistas do Observatório das Metrópoles de Porto Alegre entendem que a
construção de um camelódromo na cidade é parte de um projeto de higienização e
exclusão da população de baixa renda dos pontos turísticos para a Copa do
Mundo. Existe também a preocupação com um pequeno bolsão de ambulantes do
Parque da Marinha, que é bastante próximo do estádio Beira Rio e com vendedores
de lanches e bebidas do entorno dos estádios “que serão os principais
prejudicados pela zona de exclusão prevista pela FIFA”.
Natal
A zona leste de Natal, considerada centro da cidade, além de dispor de diversos
comércios, serviços e prédios governamentais, é uma área caracterizada por
forte presença de trabalhadores da economia informal, sejam eles ambulantes,
camelôs, trabalhadores de quiosques, entre outros. A pesquisa aponta que estão
cadastrados 1.600 ambulantes, 1548 feirantes e 222 boxes de mercado. Sobre o
impacto da Copa, há grande desinformação e descontentamento por parte dos
vendedores de rua. Estima-se que 670 famílias serão afetadas no projeto
inicial. Muitos dos que vendiam nas proximidades dos estádios tiveram que mudar
de local de venda por causa das obras para o megaevento.
Rio de Janeiro
As lideranças de vendedores de rua calculam a existência de 60 mil
ambulantes no município. Um levantamento feito pelo Movimento Unido dos Camelôs
(MUCA) em 2009 apontou no centro 6 mil vendedores informais chamados de “pulo”,
aqueles que vendem a cada dia num local diferente, não possuem ponto fixo e que
são caracterizados por exporem suas mercadorias em uma estrutura de venda que é
fácil de desmontar para que possam escapar da fiscalização.
O relatório explica
que o principal impacto causado pela Copa, é o “estado de exceção” que vigora
desde os preparativos do megaevento, permitindo que projetos sejam realizados
sem controle social, ignorando a violação de direitos sociais, atingindo também
vendedores de rua. O governo expulsou ambulantes do entorno do Maracanã
para execução das obras de reforma e a expectativa das lideranças populares é
que os comerciantes informais que costumavam vender na região antes da obra não
sejam autorizados a voltar quando a reforma for concluída. As organizações de
vendedores ambulantes e artesãos preocupam-se com a atitude das autoridades
municipais durante a Copa. Os vendedores de feiras de artesanato da orla dizem
já sofrer com eventos esportivos menores, quando são impedidos de montar a
feira.
Salvador
Em Salvador, até o fechamento do relatório, não havia muitas obras de
infraesturura, com exceção da reforma do estádio Fonte Nova, local onde
ocorrerão os jogos da Copa na cidade. Os vendedores que antes trabalhavam neste
local, hoje exercem suas atividades no outro estádio da cidade e não se sabe
quais seriam as possíveis remoções. Há projetos de alargamento de vias no centro
da cidade que farão com que o espaço disponível para a colocação de barracas e
bancas sejam diminuído e projetos de realocação dos vendedores de rua da
cidade, hoje presentes em grande quantidade em ruas importantes. Caso haja a
remoção maciça destes vendedores, o número de afetados pode ultrapassar a
marca de 12 mil famílias, número aproximado de vendedores de rua presentes nos
principais bolsões de camelôs, segundo as associações entrevistadas.
São Paulo
Entre 2009 e 2010 existiam 158 mil vendedores ambulantes em São Paulo
segundo a pesquisa. 43,1% tinha renda mensal de até um salário mínimo. Em
média, os vendedores trabalham 40 horas semanais na cidade. “O cenário é de
total intimidação dos vendedores informais por parte da prefeitura. (…) Através
do convênio que a prefeitura estabeleceu com a polícia militar na chamada
‘Operação Delegada’ e diminuiu em 91% o número de licenças” diz o texto. Na
análise da StreetNet, o principal desafio colocado aos vendedores informais no
enfrentamento da exclusão social da Copa é que as organizações representativas
são fragmentadas e algumas acreditam e mantém uma relação de clientelismo com
vereadores. Para a organização, é necessária a articulação de uma rede capaz de
enfrentar as ações arbitrárias da prefeitura e, na Copa, da FIFA.
*Fonte: Implications for Street Traders of the 2010 Soccer World Cup in
South African Host Cities By Patrick O’Callaghan
FONTE: apublica.org / Colaborou Jessica Mota
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