Quem são e o que pensam os consumidores de cultura que passaram a provedores de shows, discos e outros projetos com o ‘boom’ dos sites de financiamento coletivo
O engenheiro mecânico Rafael Borin, de 26 anos, recebeu um vídeo por e-mail, apresentando o site Catarse (catarse.me), e clicou. Era a primeira vez que ouvia falar do conceito de crowdfunding — modelo de financiamento colaborativo no qual muitas pessoas, com pequenas colaborações em dinheiro, podem tornar possíveis projetos de qualquer natureza (de shows e filmes a viagens e revistas). Entrou no endereço e, no primeiro acesso, decidiu apoiar cinco projetos dos vários que havia lá ("Minha vontade instantânea ao conhecê-los era que se realizassem", argumenta).
Rafael é um exemplo de um novo tipo de mecenas que o crowdfunding fez surgir — pessoas que, de consumidores de cultura, passaram, sem escala, a financiadores.— São sobretudo jovens, entre 25 e 32 anos, que já estão ligados a uma nova forma de consumo, o consumo colaborativo — explica Paulo Monte, sócio do Embolacha (www.em bolacha.com.br), outro site que reúne projetos de crowdfunding. — Eles sabem que ter um produto diferente, nascido de um projeto assim, vale mais do que só ir a uma loja e comprar algo (ele se refere não só ao resultado do projeto em si, mas também às recompensas que costumam ser dadas aos apoiadores de acordo com o valor da colaboração).
O GLOBO conversou com alguns dos mais frequentes apoiadores de iniciativas colaborativas do país — usuários de plataformas como as brasileiras Catarse, Movere (ambas voltadas para projetos variados, de artes a ações sociais), Queremos (shows) e Embolacha (discos), além do site americano Kickstarter. Ora puramente intuitivos e práticos, ora baseados em reflexões sobre a dinâmica da produção de arte no Brasil, eles trazem um novo olhar (e, sobretudo, uma nova ação) para o financiamento cultural, seu papel e seus objetivos. O questionamento dos modelos mais tradicionais — ou a importância de uma alternativa a eles — aparece em várias falas.
— O sistema torna mais democrática a realização de projetos que não necessariamente sejam do interesse do grande público. Viabilizando pequenos projetos, ele abre espaço para que novas ações e ideias apareçam, e não apenas as propostas viciadas por editais e leis de incentivo — nota a produtora Nicole Aun, que costuma colaborar com quantias entre R$ 50 e R$ 100.
A jornalista Patrícia Cornils segue na mesma linha:
— Gosto de ver as pessoas conseguirem pôr em prática boas ideias sem precisar fazer concessões a patrocinadores.
Colaboradora assídua do Queremos (queremos.com.br), a advogada Mariana Rodrigues destaca que esses eventos seriam inviáveis dentro da dinâmica tradicional do mercado de shows da cidade:
— O sistema é genial, principalmente do ponto de vista dos produtores que repassam para os fãs o risco do negócio. Risco que era um ônus muito grande para empresários tradicionais do ramo, a quem faltava um tino mais aguçado para entender o que desperta interesse do público jovem do Rio. Eles promoviam shows com ingressos caríssimos, e nem sempre com a lotação desejada. Todo esse ciclo vinha enfraquecendo a cena de shows na cidade.
O escritor e editor Renato Amado chama a atenção para a não participação do Estado no crowdfunding:
— O sistema é altamente eficaz para valores relativamente baixos e ainda tem a vantagem de não usar benefício fiscal, ou seja, dinheiro público.
Realmente, a ideia do incentivo fiscal não costuma ser levada em conta pelos colaboradores. Só que ele é previsto em lei — a pessoa física pode deduzir do imposto de renda entre 60% e 80% do valor contribuído.
Mas, diferentemente do que ocorre quase sempre numa dinâmica de benefício fiscal, a recompensa material não é o fundamental ("No crowdfunding, tudo é muito mais na paixão do que na calculadora", resume Amado). Há, sim, um sistema de recompensa — geralmente mimos criativos, suvenires do projeto, edições limitadas especiais, o ingresso gratuito para o show (no caso do Queremos). Mas os principais motivadores dos "mecenas formigas" aparece em respostas como: "A vontade de ver boas ideias tomando corpo e ganhando vida" (da jornalista Graziela Araújo); "Se existe um projeto que te apetece, não há nada mais satisfatório do que saber que aquilo só foi possível graças a você" (do arquiteto Eduardo Caetano); "É como se o projeto se tornasse meu, todo dia entro para ver como está indo a arrecadação, fico feliz a cada novo apoiador e vibro quando se atinge a meta" (do dentista Humberto Figueira); "Fazer coisas é sensacional, e fiz um pouquinho de cada um dos projetos que financiei" (de Pedro Markun, que se autodefine como hacker ); "Quero aquele projeto realizado, quero poder acessá-lo, e se minha ajuda pode ser determinante para isso, ótimo" (do músico Mateus Mira).
— Cerca de 10% das pessoas que participam do Movere (www.move re.me), inclusive, abrem mão das recompensas — conta Vanessa Oliveira, sócia do site, que fez um levantamento e identificou características dos colaboradores. — Oitenta por cento do financiamento vêm da própria rede dos autores do projeto, formada por família, amigos e fãs. Imagino que isso se repita nas outras plataformas de crowdfunding. E as colaborações mais frequentes ficam entre R$ 30 e R$ 50.
No Embolacha, a colaboração média gira em torno de R$ 100. No Queremos, a maioria dos apoiadores entra com o preço de uma cota — cerca de R$ 150 (reembolsável, caso os lucros permitam).
— Mas muita gente compra mais de uma, ou porque é muito fã ou para ir com mais alguém, afinal, é a chance de ir de graça ao show. Já ocorreu diversas vezes de a mesma pessoa comprar até cinco, querendo acelerar a confirmação do show — explica Felipe Continentino, sócio do Queremos.
Márcio Kabke, profissional de TI e "freguês" do Queremos, reafirma que o espírito de realização supera o valor do ingresso:
— Já fui a alguns que nem achava tão interessantes, mas quis colaborar e viabilizar. Sem diversidade a vida cultural de uma cidade morre.
Apesar de todos os entrevistados afirmarem que o desejo de dar vida aos projetos está acima das recompensas, Humberto Figueira cobra compromisso de alguns autores em relação a seus apoiadores.
— A maioria das recompensas simplesmente nunca é entregue. Muitos dos autores dos projetos, depois que conseguem arrecadar o dinheiro, somem e sequer mandam um e-mail de agradecimento, ou sobre o andamento do projeto e a recompensa — diz Figueira, que, mesmo na queixa sobre bens palpáveis, reforça o valor do imaterial (o agradecimento, no caso) para o sistema.
Entre os colaboradores, é comum a presença de artistas ou produtores que têm seus próprios projetos — criados antes do crowdfunding ou motivados por ele — abertos ao financiamento coletivo. É uma forma, ao mesmo tempo pragmática e ideológica, de viabilizar seu mercado. Criador de jogos (seu RPG "Violentina" foi publicado via crowdfunding), Eduardo Caetano argumenta:
— O que me motivou a ajudar outros projetos foi justamente a vontade de estimular a produção de jogos nacionais.
Mateus Mira reforça:
— Como tive o projeto do CD "Sonora parceria — Música súbita" financiado e como acredito muito nessa forma de financiamento, me sinto responsável por ajudar outros projetos a serem realizados. Quero fomentar o meio em que atuo.
Um tanto do perfil dos mecenas do crowdfunding se revela numa visão abrangente da cultura — que inclui preocupações ambientais e sociais. Entre discos e filmes, o educador Rafael Ninno procura apoiar também projetos fora do terreno das artes:
— Quando vejo que é uma iniciativa relevante para comunidades, que envolve trabalhos sociais e ambientais, ajudo sempre que posso.
A designer Gabi Juns tem comportamento semelhante.
— Não sou de comprar coisas. Por consciência ambiental, sigo um estilo de vida de baixo consumo — diz, antes de tocar numa possível chave desse mecenato, uma espécie de consumismo mais nobre. — O prazer que os consumistas descrevem sentir gastando dinheiro em coisas, eu sinto contribuindo com projetos.
FONTE: GLOBO.COM
Nenhum comentário:
Postar um comentário