Carlos Moore, um dos mais importantes intelectuais negros da
atualidade, veio à Curitiba para relançar o livro
Racismo e Sociedade - Novas Bases Epistemológicas para entender o racismo, da
editora Nandyala. Cubano radicado na Bahia, é doutor em Ciências Humanas e em
Etnologia pela Universidade de Paris e chefe de Pesquisa na Escola para Estudos
de Pós-Graduação e Pesquisas na Universidade do Caribe, em Kingston, na
Jamaica. Moore conversou com a equipe da Imprensa da APP-Sindicato e falou sobre
falácias sobre a origem do racismo, da importância de se ter estudos sérios
sobre o assunto e afirma:
"o racismo é um problema dos brancos".
Confira na entrevista:
Qual é o tema principal do livro?
É o racismo através dos tempos, porque essa ideia que temos
de que o racismo é algo recente é falsa. As pessoas supõem que o racismo tenha
surgido por causa da escravidão há 400, 500 anos. Esta ideia está enraizada nas
mentes e na academia. O racismo tem entre 3 e 4 mil anos de existência. Temos
indícios claríssimos de racismo há 1.700 anos A.C.
Pode dar um exemplo?
Um exemplo é o Rigveda, que é o livro sagrado do hinduísmo.
Nele estão descritas cenas de extermínio racial, na qual os invasores brancos
dizem que Deus os mandou com a missão de exterminar o que chamavam de
"extirpe" negra.
Já era contra os negros naquela época?
Claro, pois os negros estavam disseminados no planeta
inteiro. A raça negra não era raça neste sentido em que hoje projetamos, porque
eles não se sabiam negros. Os povos melanodérmicos - de pele preta - surgiram
na África. Não havia outros povos. A raça branca é recente, que data entre 12 e
18 mil anos. Antes disso não havia brancos, nem amarelos. As raças
leucodérmicas são recentes (caucásico-europóide e sino-nipônico-mongol).
A raça negra surgiu há 3 milhões de anos, concomitante com o
surgimento da humanidade. Não era uma questão política. Durante 3 milhões de
anos a humanidade teve pele preta porque surgiu em latitudes onde a pele
protegia o organismo humano. Se fosse branca, não haveria existido a
humanidade, pois era necessário um escudo contra os raios solares.
Se não fosse isso a humanidade não teria prosseguido...
Sim. Quando os humanos modernos saíram da África há 50 mil
anos eles foram para climas distintos, onde havia o mínimo de raios
ultravioletas, e aí começaram a morrer. Por processo de seleção natural
surgiram duas outras raças que estava mais adaptadas porque a pele clara pode
captar melhor o pouco de raios violetas que existem nestas zonas
euro-asiáticas, do norte.
Essas três "raças", que não se conheciam, entram
em combates profundos e violentos por recursos. Os grupos que avançaram para o
sul começaram a despejar os negros em lutas cruéis. A partir daí esses grupos
se reconhecem como grupos distintos e surge o conceito de raça.
Essa história é muito antiga, mas em pleno século XXI ainda
não se superou essa disputa...
Não há como superar, porque as pessoas sequer sabem que isso
ocorreu e que isso deu lugar a um tipo de consciência que os domina hoje.
Por exemplo, a disputa entre mulher e homem não está
superada, mas ninguém sabe de onde surgiu. É muito longínqua mas ninguém está
nem aí. As pessoas falam de sexismo em um contexto atual contemporâneo, mas
onde estão os estudos sobre sexismo que se remontam há 5 mil, 10, 15 mil anos?
Não há!
E você acha que o aprofundamento desses estudos ajuda a
combater o racismo hoje?
Claro. Não se pode combater uma coisa que não se conhece a
existência, de como surgiu, como se transformou ou como atravessou os milênios.
São milênios de sedimentação. Tendo essa visão panorâmica e histórica, baseada
no concreto, aquilo que a genética, por exemplo, e a biologia molecular nos
permitem conhecer, assim podemos começar a analisar o problema, a partir de
outras bases epistemológicas.
Outro conceito que
você contesta é que o racismo no Brasil foi mais brando que em outros países
como nos EUA. Porque aqui ele foi mais perverso?
Eu não acredito em um racismo mais suave ou cordial. Racismo
é uma forma de violência total. É uma rejeição total do outro, uma rejeição
genocida. Por trás de todo racismo há uma intenção do genocídio, que não é o
caso do sexismo. Homem não quer eliminar a mulher. Ele quer mantê-la em um
posições subalternas, mas não quer exterminar sua esposa ou filha. A mesma coisa
com homossexuais. As pessoas não querem exterminá-los da face da terra, pois
podem ser às vezes os próprios filhos. No caso do racismo sim.
No Brasil, o extermínio que se está buscando é através da
miscigenação. Uma coisa é falar de casamento entre iguais e outra coisa é
miscigenação programada. Isso é eugenismo. A visão brasileira se baseia na
noção de que se você cruza constantemente a raça negra com a raça branca, numa
situação de inferioridade dos negros, você vai terminar por acabar com essa
raça, porque o inferior quer ascender, e a ascensão no Brasil é branquear-se.
Não é aceitar a diversidade, é eliminar. Esse racismo é mais letal.
Nos EUA se baseia no apartheid, que é agregador. Há dois
grupos compactos e há possibilidade de negação, mas o racismo que temos aqui é
de tipologia ibero-americana, ela é atomizadora. Quando se atomiza, você não
negocia. É um racismo pré-industrial.
Como você acha que está a evolução da luta do movimento
negro atualmente, com a adoção de medidas como cotas e ensino da cultura
africana nas escolas?
Acho que o movimento negro está levando uma luta
extraordinária. Mas ele está levando o peso do racismo da sociedade. Acho que a
sociedade não pode progredir assim. O racismo vem dos brancos, então são os
brancos que tem exercer um movimento e uma força de contraposição ao racismo.
Quais são as distorções que a mídia produz em torno desta
questão? Pode citar?
A imprensa não é diferente da sociedade. Dentro da sociedade
racista a imprensa tem seu papel. Assim como a universidade, ela reproduz os
estereótipos e o sistema dominante. A imprensa não está aí para contestar. Ela
descredita as cotas, o movimento negro, qualquer coisa que o movimento
antirracista propõe a imprensa esta lá para barrar, distorcer, destruir, porque
a imprensa faz parte do status quo - como a academia e a igreja. Em uma
sociedade racista as instituições são racistas.
Há jornalistas que individualmente se dão conta disso e
tentam nadar contra a corrente. Os movimentos antirracistas devem favorecer
essas informações objetivas para atingir estes jornalistas.
Você acha que valorizar as contribuições que a cultura
africana trouxe para a sociedade é uma das formas de modificar este pensamento?
Claro. É contribuir com a verdade. Falar dessa contribuição
é simplesmente falar a verdade. Acontece que as escolas nunca valorizaram isso.
Valorizar estas contribuições é simplesmente ser objetivo. Por exemplo, a ideia
de que egípicios são brancos está bem
enraizada, porque consideram impossível que africanos tenham construídos
a primeira civilização mundial, que é extraordinária. Isso não compagina com
aquilo que eles têm na cabeça como sendo negro.
Tem outro exemplo para me dar?
Olha a televisão: brancos representam a virtude, a pureza e
a nobreza. O negro é bandido, inferior.
Sempre aparece como sendo alguém violento.
Sendo que eles que sofreram violência historicamente.
Publicaram o mapa da violência no Brasil: em 10 anos, mais
de 225 mil negros foram mortos! Em 10 anos, na Guerra Civil do Iraque morreram
138 mil pessoas. Imagina a hecatombe! Mas isso aqui é normal.
No Brasil não se admite que há racismo, mas basta ver que,
por exemplo, na Assembleia Legislativa do Paraná nunca houve um deputado negro.
É muito evidente.
E isso é violência, porque no Paraná 30% da população é
negra. Isso quer dizer que esses 30% que não se vê nas prefeituras, no governo
de estado, nos parlamentos, nas universidades, então sendo excluídos
violentamente. Mas o racismo vê isso como algo normal.
Dê uma resposta para quem diz que defender a cultura negra é
racismo ao contrário.
Não tenho nem que falar sobre isso! Porque racismo é sistema
de poder. Os negros não tem poder em nenhum lugar no mundo. Mesmo na África,
são os brancos que mandam e se os dirigentes se opõem são assassinatos. O negro
não tem poder de ser racista em nenhum lugar, mesmo se fosse possível. Racismo
negro não é nem possível porque os negros não podem reinventar a história. O
racismo surgiu uma vez só. Não posso nem fazer comentários sobre algo tão
absurdo, porque eu estaria na defensiva e é isso o que o racista quer: jogar
essa acusação para que você se defenda. Eu não perco tempo com essa questão, eu
coloco todo o meu tempo no ataque ao racismo.
Fonte: APP Sindicato
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