O subcomandante Marcos reapareceu para instalar o movimento
zapatista no horizonte da agenda política do recém- eleito presidente Enrique
Peña Nieto, cuja vitória marcou o retorno do PRI ao poder, após 12 anos na
oposição. Artigo de Eduardo Febbro, publicado na Carta Maior.
Já se passaram cerca de duas décadas desde que, logo após a
meia noite de 31 de dezembro de 1993, o então presidente mexicano Carlos
Salinas de Gortari ingressou no ano de 1994 com um brinde aguado: estava a
festejar o ano novo e a entrada em vigor do Tratado de Livre Comércio da
América do Norte quando o ministro da Defesa da época o informou que um grupo
armado acabava de tomar a localidade de San Cristóbal de las Casas e vários
pontos de Chiapas, o Estado situado ao sul da península de Yucatã.
O Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) impôs-se
na política mexicana junto ao seu líder, o subcomandante Marcos. O
subcomandante e os zapatistas romperam o modelo dos tradicionais grupos
revolucionários latino-americanos: eram maioritariamente indígenas e o seu
discurso e as suas exigências estavam distantes das entonações marxistas,
desenhando uma exigência democrática para um México que ainda era governado
ininterruptamente pelo Partido Revolucionário Institucional (PRI). Os combates
daquele primeiro levante duraram quase duas semanas, ao final das quais houve
centenas de mortos. Salinas de Gortari decretou um cessar-fogo e o
subcomandante Marcos ganhou a batalha, não com as armas, mas sim com as
palavras.
Em um inesquecível comunicado dirigido à imprensa, Marcos
respondeu ao suposto “perdão” oferecido pelo governo federal: Do que devemos
pedir perdão? Do que nos vão perdoar? De não morrermos de fome? De não nos
calarmos na nossa miséria? De não acertarmos humildemente a gigantesca carga
histórica de desprezo e abandono? De nos termos levantado em armas quando
encontrámos todos os outros caminhos fechados? De não termos observado o Código
Penal de Chiapas, o mais absurdo e repressivo do qual se tem memória? De termos
demonstrado ao resto do país e ao mundo inteiro que a dignidade humana ainda
vive e está presente nos seus habitantes mais empobrecidos? De nos termos
preparado bem e de forma consciente antes de iniciar? De termos levado fuzis
para o combate, no lugar de arcos e flechas. De termos aprendido a lutar antes
de fazê-lo? De todos sermos mexicanos? De sermos maioritariamente indígenas? De
chamarmos todo o povo mexicano a lutar de todas as formas possíveis em defesa
do que lhes pertence? De lutarmos pela liberdade, democracia e justiça? De não
seguirmos os padrões das guerrilhas anteriores? De não nos rendermos? De não
nos vendermos? De não nos trairmos?
Denso, legítimo, inapagável. Transcorreram quase vinte anos,
houve muitos mortos em Chiapas, repressão, matanças como as Acteal (com 45
indígenas assassinados), centenas de páginas da prosa literária com a qual o
subcomandante Marcos seduziu o mundo, um enorme terremoto político no México e,
sobretudo, o fim do mandato interrompido do PRI e a chegada ao poder de outra
força política, o conservador Partido da Ação Nacional (PAN), que governou o México
durante dois mandatos consecutivos: Vicente Fox (2000-2006) e Felipe Calderón
(2006-2012).
O PRI retornou ao poder em dezembro de 2012, após o seu
candidato, Enrique Peña Nieto, ganhar as eleições presidenciais de julho do ano
passado. E com o PRI voltou também o zapatismo, com a ação e a palavra. Após um
longo período de recesso, o Exército Zapatista de Libertação Nacional irrompeu
no espaço público em dois tempos: primeiro, no dia 21 de dezembro com uma
mobilização silenciosa da qual participaram 40 mil pessoas com o rosto coberto
com o gorro popularizado pelo subcomandante. Marcos divulgou um comunicado
nesta marcha zapatista que percorreu várias comunidades dizendo: Escutaram? É o
som do seu mundo a desmoronar, e o do nosso a ressurgir. A marcha do dia 21 foi
a maior mobilização protagonizada pelos zapatistas desde que pegaram em armas
no dia 1º de janeiro de 1994.
A escolha da data não foi casual: coincidiu com o
décimo-quinto aniversário do massacre de Acteal perpetrado por paramilitares e
no qual morreram 45 indígenas, na sua grande maioria mulheres e crianças. O
governo mexicano atribuiu à matança a um conflito étnico e condenou 20
indígenas. Após 11 anos de prisão, os acusados recuperaram a liberdade devido a
irregularidades no processo.
O segundo tempo da instalação do zapatismo na agenda
política foi assumido pelo subcomandante Marcos mediante duas cartas e um
copioso comunicado nos quais, com sua verve habitual, entre crítico, poético e
guerreiro, interpela e despedaça a classe política no seu conjunto, esquerda e
direita, os meios de comunicação e o presidente Enrique Peña Nieto, a quem
exige que cumpra com os acordos de San Andrés (Acordos de San Andrés sobre
Direitos e Cultura Indígena firmados em 16 de fevereiro de 1996 pelo governo mexicano
do presidente Ernesto Zedillo e pelo EZLN).
Estes textos que figuram nas cartas do Comité Clandestino
Revolucionário Indígena são os primeiros em extensão que, nos últimos dois
anos, levam a assinatura do subcomandante Marcos. O líder mexicano anuncia uma
série de ações cívicas e, desde o princípio, assinala o caminho que será
seguido: “A nossa mensagem não é de resignação, não é de guerra, morte ou
destruição. Nossa mensagem é de luta e de resistência”.
O subcomandante arremete contra o atual presidente,
acusando-o de ter chegado ao poder mediante um “golpe mediático” e destaca que
“estamos aqui presentes para que eles saibam que se eles nunca se forem, nós
tampouco”. O insurgente zapatista não livrou ninguém: critica a esquerda de
Manuel López Obrador, os governos passados e presentes e a imprensa por ter
pretendido sentenciar a desaparição do zapatismo. “Nos atacaram militar,
política, social e ideologicamente. Os grandes meios de comunicação tentaram
fazer com que desaparecêssemos, com a calúnia servir e oportunista em um
primeiro momento, com o silêncio e cumplicidade, depois”.
Marcos celebra o nível de vida que gozam os indígenas da
região, muito superior, escreve, “ao das comunidades indígenas simpáticas aos
governos de plantão, que recebem as esmolas e as gastam em álcool e artigos
inúteis. As nossas casas melhoraram sem danificar a natureza, impondo-lhe
caminhos que lhe são alheios. Nas nossas comunidades, a terra que antes era
usada para engordar o gado de latifundiários, agora é para cultivar o milho, o
feijão e as verduras que iluminam nossas mesas”.
Este comunicado constitui um aparato crítico e um programa
de ação que compreende “iniciativas de caráter civil e pacífico”, uma tentativa
de “construir as pontes necessárias na direção dos movimentos sociais que
surgiram e surgirão”, e, sobretudo, a preservação irredutível de uma “distância
crítica frente à classe política mexicana”.
O subcomandante Marcos coloca o
governo ante o desafio de demonstrar “se continua a estratégia desonesta de seu
antecessor, que além de corrupto e mentiroso, tomou dinheiro do povo de Chiapas
para o enriquecimento próprio e de seus cúmplices”. Sem piedade ante o novo
Executivo, Marcos dedica extensos parágrafos a lembrar o passado de alguns
membros do atual governo.
Com o PRI no poder, o zapatismo voltou a ocupar espaço na
agenda nacional como soube fazer com tanto êxito em anos anteriores. Os
analistas, partidários e adversários de Marcos, estão divididos acerca da
capacidade que o subcomandante ainda possui para mobilizar um país açoitado
pela violência gerada por esse novo ator decisivo que é o narcotráfico.
FONTE: ESQUERDA NET / Tradução: Katarina Peixoto
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