Quentin Tarantino usa polêmica,
humor e violência extrema
para retratar escravidão.
Até onde vai a liberdade artística?
Mais um filme de Quentin Tarantino chega às telas, e mais uma vez a polêmica se instaura sobre a glorificação da violência, o espetáculo divertido da morte. Desta vez, ao invés de reescrever a morte de Hitler, como fez em Bastardos Inglórios, o cineasta e roteirista propõe nada menos do que reescrever a história da escravidão nos Estados Unidos. Em uma entrevista à televisão, quando perguntado pela enésima vez sobre a violência em sua filmografia, o diretor explodiu. Não aguentava mais a mesma questão.
Em Django Livre, de fato, ele retrata muito, muito sangue, além de corpos cortados, pedaços de vísceras voando, pessoas chicoteadas e comidas por cachorros. Como se trata de uma vingança (Django, um escravo liberto, quer matar aqueles que o mantiveram em cativeiro e o separaram de sua esposa), o espectador é convidado a torcer pelo herói, a vibrar com ele. Na sala de cinema em que assisti ao filme, algumas pessoas aplaudiam com satisfação cada morte provocada por Django (Jamie Foxx).
Recentemente, o público também vibrou com a vingança de Grace (Nicole Kidman) em Dogville, de Lars Von Trier, ou mesmo com a vingança das mocinhas das telenovelas globais contra as carismáticas vilãs. Ora, embora Grace tenha recorrido a métodos cruéis contra seus opressores, e embora as mais recentes vilãs de novelas tenham chegado inclusive a enterrar as adversárias vivas – algo muito tarantiniano, por sinal –, nenhuma delas foi acusada de explorar a violência, ou torná-la leve, agradável. A acusação contra Tarantino encontra no humor seu principal alvo: tolera-se a vingança, contanto que não seja engraçada. Com a morte não se brinca.
Um motivo para tal crença seria o medo das consequências (morais) nefastas na sociedade. O fato é que dificilmente alguém se tornará mais insensível à violência real por ter assistido aos banhos de sangue em Django Livre. Pode-se culpar, com razão, a grande exposição do público jovem a imagens violentas, mas aí seria necessário abrir uma ampla discussão, incluindo as imagens na internet e na TV, a relação do país com guerras, a paixão pelas armas, a cultura do individualismo, o espírito de competitividade, a situação econômica etc.
Por isso, as vozes dos espectadores que exigem a moralização das imagens encontram pouca repercussão neste caso. Mais interessantes e mais complexas são aquelas que questionam o direito de se divertir a partir de qualquer tema, inclusive a morte, a exploração dos negros e a crueldade de modo geral. Além disso, atalhos como “videogames foram responsáveis pelo massacre de crianças nas escolas americanas” sempre foram uma maneira rápida e pouco convincente de o governo se isentar de responsabilidade nestes casos, dissociando-se da tradicional cultura belicista norte-americana.
Talvez Django Livre seja “politicamente incorreto” (curioso, esse termo), mas ao menos ele toma uma precaução, típica da linguagem pop e autorreferencial, que é de explicitar sua paródia, suas referências. Em outras palavras, afastar-se do real. Ninguém confundiria esta obra com uma leitura história precisa sobre os fatos, já que Tarantino coloca elementos suficientes para estabelecer um distanciamento entre a História e sua representação.
O cineasta realiza com este filme uma espécie de vingança simbólica, pessoal, um acerto de contas com episódios que ele não considera terem ganho um desfecho satisfatório. Não é por acaso, aliás, que nas várias cerimônias em que Tarantino recebeu prêmios por este filme, ele aproveitou para repudiar as formas modernas de escravidão. Estas releituras históricas propostas pelo cineasta lembram a diversão de uma criança com seus brinquedos, seus bonecos simbolizando policiais, xerifes e mocinhos. A partir de personagens e contextos reais, imagina-se a História como se deseja.
Por acaso, Tarantino acredita em um acerto de contas de homem a homem, como se a escravidão fosse uma questão de indivíduos, e não de sociedade – este sendo um elemento típico dos faroestes que ele homenageia em Django Livre. Aliás, a política governamental é um elemento praticamente ausente de suas obras, aparecendo apenas como questão fantasmática, marginal. Para ver uma conclusão constitucional e biográfica da escravidão, é melhor assistir a Lincoln.
Django reserva ao espectador a possibilidade de reimaginar a História, de torcer por novos heróis abolicionistas e de criar um fim sem limites. Ao longo de sua história, Tarantino confere plenos poderes ao personagem, que consegue fazer tudo o que quiser, como quiser, com quem quiser. Este divertido desejo de onipotência faz da História um elemento dinâmico novamente, capaz de atualizar os mitos e encontrar novos símbolos com os quais a geração jovem possa se reconhecer.
Tarantino foge do didatismo e da obrigação documental para se ater apenas à obrigação moral: dar um “direito de resposta”, simbólico, à comunidade negra. Ele o faz com prazer, de modo magistral, em um imenso e épico espetáculo de luzes, corpos e sons. Django Livre é um filme que assume seu caráter de ficção, de espetáculo, mas também de obra provocadora, complexa, e – por que não – política.
FONTE: OUTRAS PALAVRAS / *Bruno Carmelo é editor do blog Discurso-imagem / **Texto publicado, originalmente, no site Outras Palavras
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