O avanço da agricultura e da silvicultura, a cada ano, destrói cerca de 140 mil hectares do pampa gaúcho. Se não bastasse ter 40% de sua área de 15 milhões de hectares degradada, a região também é alvo de biopirataria. Essa atividade ilegal gera bilhões de dólares para outros países, que encontram no território gaúcho, espécies nativas bastante rentáveis. Das 2,5 mil espécies de flora presente no pampa, “10% estão ameaçadas e outros 10% são recolhidas e levadas para o mundo inteiro”, denuncia o professor Paulo Brack, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em entrevista feita por telefone e complementada por e-mail à IHU On-Line. Segundo o pesquisador,as empresas estrangeiras vêm ao pampa em busca de petúnias, cactáceas raras e a conhecida jararaca. “Um dos casos que mais chama a atenção é que a empresa norte-americana Bristol Myers-Squibb registrou princípio ativo contra pressão alta com base no veneno da jararaca, uma espécie que também ocorre no pampa, gerando um mercado de US$ 2,5 bilhões, o que equivale ao investimento de algumas destas empresas papeleiras que está se instalando no estado”, compara.
Brack é doutor em Ecologia e Recursos Naturais, pela Fundação Universidade Federal de São Carlos. Atualmente, é docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Confira mais detalhes na entrevista a seguir, concedida com exclusividade à IHU On-Line.
IHU On-Line - Como o senhor define a situação atual do pampa gaúcho? Quais são os principais atores envolvidos na questão dos impactos ambientais que o bioma vem sofrendo? Quem mais sai prejudicado com as alterações no bioma?
Paulo Brack – Uma das questões que ainda não foi levantada em relação à imensa silvicultura que está sendo implantada no Rio Grande do Sul se refere à capacidade de suporte do bioma pampa. Quem pode comprovar a capacidade do bioma para suportar 1 milhão de hectares de silvicultura, considerando que a área, de acordo com dados que nós temos na universidade, já perdeu 40% de espaço preservado? O bioma, originalmente, abrangia cerca de 15 milhões de hectares. Hoje, ele está reduzido a oito ou nove milhões, considerando que parte desse valor, já estaria, em alguma parte, descaracterizado. A cada ano, no mínimo, 140 mil hectares estão se perdendo devido o avanço da fronteira agrícola e também da silvicultura. Segundo a professora Ilsi Boldrin, do Departamento de Botânica da UFRGS, esta taxa chegou a cerca de 400 hectares/ano, como atestam estudos recentes do realizados pela universidade.
Hoje, ocorre o emagrecimento do bioma pampa, e o governo do estado do Rio Grande do Sul não está atento a essa questão. Atualmente, nós temos apenas 0,36% de áreas protegidas por unidades de conservação. Esse valor é muito pequeno, pois cada bioma deveria ter pelo menos 10% dele preservado, segundo recomenda a IUCN (União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos naturais). O Brasil, hoje, tem entre 7 a 8% de áreas protegidas. Assim, o bioma pampa, tendo em vista outros biomas do país, é o menos representado por áreas preservadas.
Espécies ameaçadas
No pampa gaúcho, há, no mínimo, 2,5 mil espécies da flora e de trezentas a quatrocentas espécies de aves. Dessas 2,5 mil espécies da flora, 10% estão em situação de ameaça. O Decreto 42.099, de dezembro de 2002, estabelece a lista da flora ameaçada do Rio Grande do Sul, e há 607 espécies em extinção, sendo que 250 delas estão na região do pampa. O estado, após a publicação deste decreto, não fez nada. Nesse período de cinco anos, já tivemos seis secretários do meio ambiente, e o único discurso deles estava vinculado à idéia de facilitar novos empreendimentos. No entanto, antes de liberar qualquer licenciamento, o governo deveria analisar o que deve ser preservado, antes da implantação desses empreendimentos.
Papeleiras patrocinam campanhas eleitorais
As empresas de celulose doaram cerca de R$ 500 mil à campanha da governadora Yeda Crusius. Outros 75 candidatos receberam dinheiro, também. Eu vejo essa questão como algo muito grave, pois estamos perdendo a nossa biodiversidade dentro de uma visão imediatista e de interesses pouco confessáveis.
Proteção à fauna e à flora
Outro aspecto que pouco se fala é que a perda de espécies do pampa está em curso. E, mais uma vez, se desconsidera que o processo evolutivo que fez com que estas espécies estivessem neste bioma no pampa levou muitos milhões de anos. Esse processo pode ser interrompido por algum interesse imediatista? Qual é o direito que nós temos de colocar essas espécies em extinção? A Constituição diz que a fauna e a flora são patrimônios nossos, e assim, biomas devem ser mantidos e preservados. Eu creio que esses plantios devem ser feitos em áreas nas quais já existe uma degradação. O estudo do Zoneamento da Silvicultura estabeleceu essas áreas, só que infelizmente foi desconsiderado. Esse estudo tinha critérios fantásticos, porque ele considerava as espécies ameaçadas. Nenhum outro critério contemplaria com a amplitude e profundidade que o zoneamento estava estabelecendo. Hoje, a justiça ainda não se deu conta do que representa essa depreciação da nossa biodiversidade.
IHU On-Line – Qual é a sua avaliação da academia e das pesquisas na área da ecologia relacionadas ao bioma pampa?
Paulo Brack – Eu creio que o bioma tem trabalhos fantásticos de flora, ecologia e na área de pastagem. Neste caso, estudos realizados por pesquisadores demonstram que poderíamos aumentar em pelo menos quatro vezes mais a produção de carne se tivesse um manejo mínimo, com orientação dos proprietários para que a pressão de pastagem seja adequada. Existem dados do ponto de vista da sustentabilidade da pecuária. Ela é, secularmente, a atividade menos impactante, mas até agora ela conviveu muito melhor com a biodiversidade do pampa, do que essas imensas cortinas de monoculturas de eucalipto.
IHU On-Line - Quais são as bases do trabalho da ONG Ingá? Pode falar sobre a ação encabeçada pela ONG envolvendo o pampa?
Paulo Brack – Através da Inga , nós temos algumas campanhas que se estendem não só a questões ligadas ao Pampa, mas também às hidrelétricas. Esse outro tema nos preocupa muito, porque a bacia do Rio Uruguai, segundo previsões, será ocupada por dezenas de hidrelétricas.
Existe uma hidrelétrica do PAC, a de Pai Querê. Se construída, ela poderá destruir quatro mil hectares de floresta com araucária. Esse espaço equivale a quatro mil campos de futebol. Das últimas matas que sobraram, essa é uma área considerada prioritária para conservação. Porém, nós percebemos que as campanhas, hoje, estão batendo de frente com esse modelo de crescimento imediatista. A cegueira imediatista é o nosso grande inimigo. Nós temos que pensar na sustentabilidade de uma forma mais profunda, e o Inga, hoje, vai focar menos em questões isoladas, e tentar questionar esse modelo de desenvolvimento, que está trazendo uma insustentabilidade nunca vista para o planeta. Os dados do IPCC revelam que, em 2030, nós teremos a floresta Amazônica reduzida a menos de 50%. Através do Inga, nós estamos percebendo as conseqüências dessas políticas de desenvolvimento, que são resgatadas nos moldes da década de 1970. Esse modelo de desenvolvimento é antigo e não tem nenhum critério de sustentabilidade.
No caso das silviculturas, as áreas de enormes monoculturas servem apenas ao mercado global, que depende dos commodities. E, no momento em que esses empreendimentos não derem mais lucros para as empresas, como as pessoas vão ficar? Nós não vamos diversificar nossa agricultura? Por que nós estamos na contramão da sustentabilidade? Porque os governantes estão reféns de uma lógica insana de mercado, de crescimento de consumo. Nós poderíamos e deveríamos diminuir também o consumo de papel. Mas isso não interessa ao modelo atual, e isso significa que nós vamos querer continuar crescendo ilimitadamente. O mercado precisa fazer esse questionamento: até que ponto essa hipertrofia dos capitais internacionais não irá colocar a sustentabilidade do planeta em xeque?
IHU On-Line - O senhor, como ambientalista, como analisa a preocupação da sociedade civil em relação à preservação do pampa? Quais são os maiores desafios para internalizar nas pessoas a preocupação ambiental relacionada ao bioma pampa?
Paulo Brack – A população, aos poucos, está percebendo que esse modelo de monocultura considera a biodiversidade como um empecilho, e considera a diversidade como um empecilho também. Qualquer atividade econômica, hoje, que vier a criar barreiras para a monocultura, será combatida. A população está começando a perceber que não serão gerados tantos empregos assim, e, mais cedo ou mais tarde, as pessoas vão perceber que o Brasil está se tornando um país exportador de produtos com baixo valor agregado, que é o caso da pasta de celulose. O Primeiro Mundo, utilizando-se desse produto, vai criar o papel. E quem irá ganhar mais dinheiro com isso é ele. Nós vamos ficar aqui com desertos verdes, com a poluição e menos trabalhos. Atualmente, talvez, algumas pessoas devem achar que nós, ambientalistas, somos malucos. Mas há 30 anos, já se falava das mudanças climáticas. E hoje ela está acontecendo. A grande mídia nos rotula, tentando nos desqualificar nas nossas intervenções, mas nós temos conhecimentos. Eu atuo há 30 anos na universidade, viajo muito pelo interior e vejo que a situação do meio ambiente no estado está pior do que há 20 anos. Nós estamos retrocedendo. É absurdo ver que, em 2007, ao invés de avançarmos nas políticas de meio ambiente, nós estamos retrocedendo.
Políticos são dominados pelas papeleiras?
Tanto a direita como a esquerda atual estão recebendo dinheiro das empresas favoráveis à monocultura. No governo federal, a situação é grave, pois até o PT recebeu bilhões de reais das empreiteiras, as quais também querem construir hidrelétricas. Os setores da esquerda, que deveriam se aliar com a população que está questionando isso, se esqueceram de todas as lutas. Saber que grande parte das pessoas críticas da esquerda, que estavam alinhadas aos movimentos sociais, estão de cabeça baixa diante desse modelo insano de crescimento, me deixa atordoado. Está acontecendo uma grande traição das lideranças sociais que foram para o governo. Eles esqueceram das bandeiras levantadas na época do Fórum Social Mundial, que também foi esquecido. Restamos apenas nós, náufragos nesse modelo insano de insustentabilidade.
IHU On-Line – Qual é a responsabilidade da mídia e dos órgãos governamentais em relação às ações das grandes indústrias de celulose?
Paulo Brack – A mídia está cada vez pior. Chargistas do Jornal do Comércio, nessa semana, foram despedidos, por questões ideológicas. Eles faziam desenhos irônicos das papeleiras e do papel submisso deste governo. A pressão econômica se dá na Mídia e também no governo. A secretária e o diretor da Fepam foram derrubados pelos interesses das empresas. Nós estamos vivendo quase que um estado de guerra. A legislação está sendo derrubada, e nós estamos entrando num tipo de “estado de exceção”. A mídia não nos dá espaço e os políticos estão alinhados ao capital que os financia. A democracia no Brasil, hoje, com o financiamento privado de campanha, está refém desse modelo. Assim, nós estamos vivendo o pior lado da globalização.
IHU On-Line - O senhor pode falar sobre os principais casos de biopirataria no pampa, obtidos no estudo que o senhor tem feito com seus alunos?
Paulo Brack – O pampa gaúcho é alvo de biopirataria há décadas, e está gerando bilhões de dólares e ganhos para outros países. Das 2,5 mil espécies presentes no pampa gaúcho, 10% estão ameaçadas e outros 10% são recolhidas e levadas para o mundo inteiro. Nós temos 47 espécies de cactos que ocorrem no Rio Grande do Sul, criticamente ameaçados.
Qual valor damos a nossas espécies nativas do pampa? Aqui não, mas lá fora sim. Empresas estrangeiras vêm para o pampa em busca de muitas espécies, consagrando uma região de maior biopirataria no mundo, há décadas. Os japoneses e norte-americanos buscam petúnias. Estes últimos já patentearam princípios ativos de nossa espinheira-santa, por meio da empresa Nippon Mektron Japan. Os alemães levam cactáceas raras e ornamentais. Os neozelandeses buscam sementes da feijoa , ou goiaba serrana. Por sinal, a Nova Zelândia é a maior produtora mundial do fruto desta espécie que é nativa do sul do Brasil. Um dos casos que mais chama a atenção é que a empresa norte-americana Bristol Myers-Squibb registrou princípio ativo contra pressão alta com base no veneno da jararaca, uma espécie que também ocorre no pampa, gerando um mercado de US$ 2,5 bilhões, o que equivale ao investimento de algumas destas empresas papeleiras que estão se instalando aqui, neste momento. O governo, do estado quando fala em investimentos, sabe disso?
IHU On-Line - Quais são as principais conseqüências da monocultura de eucalipto para a biodiversidade do pampa? O faturamento das grandes multinacionais da celulose equivale ao valor da biodiversidade brasileira?
Paulo Brack – Esta é a grande questão. Segundo o IBGE, se fosse estimado o valor econômico da biodiversidade brasileira, esta valeria o equivalente a, no mínimo, quatro trilhões de dólares. Outro dado que chama a atenção é que, segundo o Ibama, perdemos por ano mais de 5,5 bilhões de dólares pelo patenteamento estrangeiro dos produtos de nossa biodiversidade. Onde estão os estudos que a Fepam (Fundação Estadual de Meio Ambiente) e a FEE (Fundação de Economia e Estatística) deveriam realizar sobre estes aspectos? O valor dos bens e funções, tradicionalmente chamados de serviços, do patrimônio natural do pampa, deve ser uma obrigação primeira do governo e também da universidade. Se o governo não providenciar esta valoração, nós iremos fazê-la. Queremos demonstrar que os investimentos destas empresas, que colocam em risco nossa biodiversidade, representam uma fração menor do que 10% do que vale a biodiversidade do pampa. Outra coisa pouco falada é se não haverá mais falta de leite e falta de carne no prato do gaúcho com estes empreendimentos. Até que ponto os pecuaristas não trocarão seus bois por eucalipto? Qual é o valor econômico da manutenção da pecuária, com manejo sustentável, fornecimento de carne, que hoje falta ao gaúcho, e convivência secular com o pampa?
FONTE: IHU ONLINE
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