Valoriza herói, todo sangue derramado afrotupy!

terça-feira, janeiro 29, 2013

‘Django livre’ e ‘Lincoln’, sobre igualdade e protagonismo











Flávia Oliveira comenta a questão que envolve

os dois filmes


Sete anos separam o western fictício de Quentin Tarantino da realista trama política de Steven Spielberg. “Django livre”, assinado pelo primeiro, se passa em 1858; “Lincoln”, obra do segundo, em 1865, quando a Guerra Civil Americana já completara quatro anos. Assistir a esses dois candidatos ao Oscar de melhor filme, neste 2013 de Barack Obama reeleito para o segundo mandato presidencial nos EUA, é oportunidade bem-vinda de reflexão sobre a construção da igualdade para negros de qualquer nacionalidade.

São cinco horas e quinze minutos de reflexões sobre escravidão. E liberdade. De um lado, o humor sádico e o realismo fantástico de Tarantino, em mais uma película sobre vingança. De outro, o enredo entre quatro paredes, que trata da determinação do 16º presidente americano, na pele de um Daniel Day-Lewis impecável, em aprovar, a qualquer preço, a emenda constitucional abolicionista. Num extremo, o justiçamento; noutro, a Justiça.

Nos dois terços iniciais, “Django” empurra o espectador para a indagação que Calvin Candie, em interpretação segura de Leonardo DiCaprio, leva à mesa de jantar, junto ao crânio de Ben, um negro que serviu à família. “Por que não nos matam?” Como resposta, o personagem menciona um improvável determinismo fisiológico à submissão.

No filme de Tarantino, a liberdade é pavimentada sobre a vingança. É nela que o personagem-título, vivido por Jamie Foxx, ancora sua fileira de homicídios de (muitos) homens e (umas poucas) mulheres, todos brancos.

“Django”, não “Lincoln”, mostra as crueldades e as contradições do sistema escravocrata. A mão pesada de Tarantino expõe, além do suportável para os olhos, a tortura imposta pelos senhores a negros fugidios. Perde-se a conta do número de vezes em que a palavra nigger, criolo em tradução livre para o português, é dita como ofensa.

Pela lei ou pela barbárie
Há os escravos obedientes e, por isso, protegidos. Há as negras exploradas sexualmente, chamadas comfort girls. Há os privilégios concedidos aos mulatos. Há o desprezo pelos negros que assumem o trabalho sujo dos brancos. Há a indignação de uma comunidade que se depara com um não branco montado num cavalo. São fragmentos de realidade na ficção inverossímil de Tarantino.

Já “Lincoln” traz a libertação pela lei, ainda que construída com práticas políticas heterodoxas. Igualdade é conceito que se repete no belo e denso roteiro de Tony Kushner, não por acaso candidato ao Oscar, tal como o diretor, o protagonista e Tommy Lee Jones, que dá vida a Thaddeus Stevens, deputado dividido entre idealismo e pragmatismo políticos.

Assistir ao filme de Spielberg depois de ver o de Tarantino dá certeza de que na Justiça estão os alicerces da igualdade. No justiçamento mora a barbárie, que iguala algozes e vingadores. Não se faz democracia assim. Entendido, sr. Candie?

Martin Luther King Jr. ensinou aos EUA, nos anos 1960, que a essência do movimento pelos direitos civis estava na construção da igualdade. Foi ela que emergiu do arcabouço legal que nasceu com a 13ª Emenda, a da abolição, e culminou com a eleição, em 2008, do primeiro negro à Presidência da República.

A preferência pela civilidade de “Lincoln” ao revanchismo de “Django” é quase óbvia. Mas os dois trazem, ao menos, uma reflexão adicional e relevante. É o protagonismo negro.

“Lincoln” apresenta em suas duas horas e meia a liberdade concedida por um grupo de brancos empenhados em inserir a América independente no círculo das grandes nações. A incômoda passividade dos negros no processo está evidente logo na primeira cena, quando o cabo Ira Clark fala ao presidente do sonho de, em meio século, ver coronel um dos seus; em cem anos, votar. Naqueles anos de guerra civil, os escravos recém-emancipados tinham conquistado só o direito de combater por salário igual ao dos brancos. Nos EUA do negro Obama, Spielberg sublinhou o papel dos brancos na abolição.

No filme de Tarantino, o protagonismo do personagem-título também se constrói pelas mãos do caçador de recompensas de origem europeia Dr. King, vivido brilhantemente por Christoph Waltz. Django é um negro que tenta se libertar pela fuga. É capturado, vendido e, então, apresentado ao novo senhor, que lhe propõe a alforria em troca de ajuda na execução dos que lhe açoitaram no passado. É, de novo, a liberdade concedida. Somente no terço final do filme, quando o parceiro morre, o personagem de Foxx assume as rédeas de seu plano.

O par de filmes abre alas para outros tantos, que podem revisitar sob outra ótica, ficcional ou documental, a luta pela abolição. Fará bem aos Estados Unidos. E a negros de todo o mundo.

FONTE:O GLOBO / FLÁVIA OLIVEIRA

Nenhum comentário: