Historiadores e movimento negro questionam projeto para
beatificar a responsável por assinar a Lei Áurea, que acabou com a escravidão
no País.
Na mesa do cardeal arcebispo do Rio de Janeiro, d. Orani
João Tempesta, repousa uma indigesta questão que ele está sendo pressionado a
resolver. Desde que o pedido de abertura do processo de beatificação da
princesa Isabel foi oficialmente apresentado ao religioso, autoridade máxima da
Igreja do Rio de Janeiro e única figura com investidura legal para dar início à
causa, o cardeal se encontra em delicada situação, acuado entre grupos de
católicos. De um lado estão os que defendem com fervor a santificação da
princesa, filha de d. Pedro II e signatária da Lei Áurea, liderados pelo
escritor e professor curitibano Hermes Rodrigues Nery, um estudioso da família
real brasileira. De outro, estão historiadores e parte do movimento negro, que
questionam o papel de protagonista de d. Isabel na abolição dos escravos e não
querem vê-la num altar de jeito nenhum. Diante de uma causa de beatificação
envolta em polêmica, d. Orani retarda uma resposta sobre o início – ou não – do
processo. Alheio às questões políticas, Nery, postulador que pesquisou durante
meses documentos em lugares como os arquivos do Museu Imperial de Petrópolis e
bibliotecas do Brasil, para levantar detalhes da vida da princesa e preparar
sua biografia, pede uma definição. Segundo especialistas ouvidos por ISTOÉ, a
causa pela beatificação da princesa até tem força para caminhar, mas uma
avalanche de complicadores certamente surgirão durante o processo. Afinal, d.
Isabel está longe de ser uma unanimidade.
Há uma representativa corrente de historiadores, por
exemplo, que relativizam a atuação da princesa na abolição, tida como um dos
principais argumentos de quem defende sua beatificação. “Canonizar d. Isabel a
partir do episódio da assinatura da lei de 13 de maio é uma tentativa de
reiterar uma memória que silencia sobre o papel do negro na sua própria
história”, diz Wlamyra Albuquerque, historiadora, professora-adjunta da
Universidade Federal da Bahia (UFBA) e autora do livro “O Jogo da Dissimulação”
(Cia. das Letras, 2009). Com o avanço da causa pela santificação, a importância
dos levantes de negros cativos e das lideranças abolicionistas poderia acabar
em segundo plano, o que seria, no mínimo, injusto. “A emancipação foi resultado
da luta desesperada dos cativos, de suas rebeliões e do ódio aos seus
senhores”, afirma a historiadora Mary de Priore, que lança em abril o livro
sobre Isabel e seu marido, o conde D’Eu, intitulado “O castelo de papel” (Ed.
Rocco, 2013). “Mas na pintura da princesa emancipacionista, tudo era
cor-de-rosa como seu palácio em Petrópolis.”
Para os críticos, esse esforço da monarquia em pintar a
princesa e suas ações como fundamentais para o fim da escravidão tinha razão
óbvia e pouco nobre. Em 1888, a realeza vivia seus últimos momentos em um
Brasil já dominado pelos republicanos. Associar-se a uma causa tão popular
quanto o abolicionismo era uma das últimas esperanças de dar sobrevida ao
regime. Não seria fácil, porém, convencer o povo de que os motivos da coroa
para tanto entusiasmo com a abolição eram nobres e legítimos. Afinal, desde
1850, quando a Inglaterra proibiu o tráfico internacional de escravos, a
abolição virou assunto corriqueiro no País. Com leis como a do Ventre Livre, de
1871, e dos Sexagenários, de 1885, a causa ganhou ainda mais visibilidade.
“Quando chegou 1888, era evidente que insistir na manutenção do regime
escravocrata não fazia mais sentido”, afirma Roderick Barman, professor da
University of British Columbia (UBC) e autor do livro “Princesa Isabel do
Brasil: Gênero e Poder no Século XIX” (Unesp, 2005).
Quando a abolição oficial finalmente veio, ela não era nova
nem inesperada. Era quase protocolar. Nesse sentido, era mais fácil o povo
suspeitar da demora da realeza em acabar com esse anacronismo – e o Brasil foi
o último País no mundo a extingui-lo – do que aceitar que o fim veio graças a
uma figura política de pouca ou nenhuma relevância. Até houve celebrações da d.
Isabel e homenagens a ela como redentora dos negros, muitas das quais
patrocinadas pela casa imperial, que organizou festas, regatas, corridas de
cavalo e eventos religiosos para incensar sua figura. Mas quando ela foi
exilada, logo foi esquecida, assim como toda sua família.
Para Nery, críticas impiedosas como essas têm origem
conhecida. Segundo ele, quem escreveu a história da abolição e do papel da
princesa Isabel nesse processo foram historiadores republicanos, pouco
interessados em registrar que, no Brasil, o fim da escravidão veio pelas mãos
de uma princesa. “E mais, ela não só acabou com o regime escravocrata como
negociou para viabilizar uma solução católica para a abolição”, afirma o
postulante da causa. “Em vez de ruptura, como se viu nos Estados Unidos ou no
Haiti, onde houve violência e derramamento de sangue, ela buscou o reformismo
pela via institucional – e conseguiu”, diz. Prova disso seria a Rosa de Ouro
que ela recebeu do papa Leão XIII, como reconhecimento pela boa condução dada à
questão.
Um prêmio de tamanha importância, jamais concedido a outro
brasileiro, certamente terá peso se a causa pela beatificação da princesa
chegar ao Vaticano. Aliada aos detalhes da vida particular de d. Isabel, tida
como inquestionavelmente devota tanto por seus admiradores quanto por seus
críticos, ela fortalece em muito a candidatura à beatitude. “O que importa é o
compromisso do candidato a beato com a missão que Deus deu a ele na Terra”,
afirma a irmã Célia Cadorin, responsável pelas causas que resultaram na
canonização de São Frei Galvão e da Santa Madre Paulina, os dois únicos santos
brasileiros. Na avaliação da religiosa, o retrato biográfico produzido por Nery
tem grande potencial de deslanchar. “Mesmo com as críticas dos historiadores e
do movimento negro, que devem ser incluídas porque fazem parte da história dela,
essa é uma história muito forte e bonita.” O debate está aberto.
FONTE: ISTOÉ / João Loes
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