Chega às livrarias a primeira
reimpressão de Mata! O major Curió e as guerrilhas do Araguaia,
do jornalista Leonencio Nossa, lançado em junho com tiragem de 8 mil
exemplares. Não é mais um livro sobre luta armada, guerrilha rural,
organizações de esquerda, repressão – embora sejam bem-vindos todos os que
ajudem a entender como o país chegou até aqui. É um livro sobre a história da
terra, de seus habitantes, das violências vividas no passado, no presente. E
que, por um tempo que é impossível prever, voltarão a ocorrer no futuro.
É um relato sobre facetas inglórias
da civilização brasileira, ou, se preferirem, da barbárie brasileira.
Articulação de jornalismo e história. Abre um campo de trabalho intelectual
pouco explorado no país. Até aqui, coube quase exclusivamente à literatura e ao
jornalismo abordar o que aconteceu com as pessoas comuns colhidas na engrenagem
do confronto. Quem eram os militantes? E os militares que os enfrentaram em
condições de mortífera desigualdade?
Nesta entrevista ao programa de rádio do Observatório
da Imprensa, Leonencio Nossa, repórter do Estado de S. Paulo,
diz modestamente que não precisaria ter escrito seu livro se a imprensa, a
polícia, a Justiça, o Ministério Público e entidades profissionais fizessem o
que lhes cabia, depois da redemocratização, para recolher as histórias e
contá-las para a sociedade.
Eis a entrevista.
Dez anos em campo
Faz dez anos que você começou a
pesquisar a guerrilha do Araguaia?
Leonêncio Nossa – O projeto é de 1997. Em 2002 eu comecei a fazer as viagens, a apurar, e
daí passei quase toda a minha carreira jornalística, até aqui, nessa pesquisa.
Quando você se lançou nisso já havia livros sobre o Araguaia.
L.N. −O primeiro livro do Araguaia é de 1979, Guerra de guerrilhas no
Brasil, de Fernando Portela. O Fernando fez a primeira grande reportagem
sobre o Araguaia no Jornal da Tarde, em 1979. Era a segunda vez que
o Araguaia era mencionado na imprensa, porque em 1972 um repórter aqui da
sucursal de Brasília foi mandado para o Araguaia para fazer uma matéria.
O Estadão publicou a primeira reportagem em setembro de 1972.
Essa reportagem furou a censura e acabou entrando no jornal. E ali já tinha
alguns nomes de guerrilheiros e todo aquele trabalho de massa que era feito
pelos guerrilheiros na região, todos os deslocamentos de tropas, essa coisa
toda.
Agora, a guerrilha só foi mesmo ser
contada com detalhes, com mortes de guerrilheiros, a repressão, em 1979, com o
Portela. O Portela se baseou numa entrevista de um oficial importante, um
comandante, que eu suponho seja o Hugo Abreu. Porque no livro tem uma carta em
que o Hugo Abreu diz que tinha gostado do livro, etc. Aí entraram os jornais
alternativos – a imprensa alternativa fez um trabalho também muito legal sobre
o Araguaia.
Depois, em 1980, 1982, o Estadão voltou
ao tema. Em 1992, o Jornal do Brasil fez uma série também
muito importante. E, em 1996, o Globo fez a segunda série que
teve grande impacto, com a foto em que o Genoíno aparece amarrado em uma
árvore, chamada “Guerrilha no Araguaia”. Em 1998, o Globo ainda
publicou algumas matérias do arquivo do [general] Antonio Bandeira, “O baú do
general”, que também foi um momento muito importante nessa cobertura. Nesse
intervalo, o Pedro Cabral – um militar que foi piloto da Aeronáutica – publicou
um romance chamado Xambioá. O PCdoB chegou a publicar um livrinho
chamado Guerrilha do Araguaia. Tem um livro de um professor de
Goiás que o Elio Gaspari cita muito na obra dele [a tetralogia As
ilusões armadas], chamado Guerrilha do Araguaia: a
esquerda em armas [de Romualdo Pessoa Campos Filho].
Em 2005 teve um livro do pessoal
do Correio Braziliense chamado Operação Araguaia: os
arquivos secretos da guerrilha [de Eumano Silva e Taís Morais]. Mais
recentemente, dois militares publicaram livros também. Sempre foi um tema muito
da imprensa, nunca um tema que despertou interesse da universidade ou da
academia, nem de literatos, escritores. Na verdade, é um tema que começa agora
a ter o interesse da universidade. É uma bibliografia muito escassa. E, claro,
o livro do Elio Gaspari tem um capítulo dedicado à guerrilha.
Tem um livro do Hugo Studart...
L.N. –Tem. O livro do Hugo Studart é A Lei da Selva, de 2006.
Repetição de histórias antigas
E ao longo desse tempo em que você já
tinha o projeto nenhum desses livros satisfez sua curiosidade ou suas
indagações mais importantes? Você continuou porque achou que teria outras
coisas que você poderia apurar, dizer?
L.N. – Não é crítica, mas todos esses que nós falamos, o livro do Portela, o
livro do Eumano, do Hugo, são baseados em depoimentos em off,
personagens aparecem com nomes fictícios. São momentos dessa história. E hoje
eu acho que não dá mais para fazer como a gente fazia na imprensa alternativa,
aqueles livros com textos únicos de personagens, você chegava, o cara falava,
falava, falava. Hoje não faz muito sentido você se basear no off.
Nos últimos anos houve muita
repetição de histórias antigas que vêm à tona. Eu vou colecionando jornais,
essas coisas. E tem uma foto, por exemplo, de um guerrilheiro morto, que foi
publicada em minha conta oito vezes. Sempre dada como inédita.
Respondendo a sua indagação, é uma
história muito complexa. Primeiro porque são 70 guerrilheiros, incontáveis
militares, você tem todo um aparato militar, a única guerrilha que a esquerda
conseguiu estruturar no século 20. Então, tem muitas nuances essa história. Eu
acredito que o Araguaia ainda vai depender de uns 15 anos para a gente ter uma
compreensão perto do total. E a minha pesquisa é sobre o Araguaia histórico,
sobre a ocupação da região de 1790 até 2005. Eu conto a história de uma região
que passou por vários movimentos sociais, movimentos políticos, movimentos
guerrilheiros. E outra coisa: como já tinha muito livro, não sobre o Araguaia,
mas outros livros que falam de histórias da época da ditadura, que na verdade
são capítulos da Guerra Fria, eu tentei mostrar o Araguaia do ponto de vista de
um episódio da história do Brasil.
A barbárie como identidade
Pode parecer uma coisa meio boba, mas
tem uma diferença muito grande, porque os livros geralmente colocam o Araguaia
como um episódio a partir daquele momento político internacional, o mundo
disputado entre duas potências. Eu acho que a origem do Araguaia pode estar
realmente nessa Guerra Fria, mas o que ocorreu lá – eu falo a barbárie – está
mais conectado a uma história nacional, como se fosse uma construção de país,
de identidade nacional. Por isso, quando escrevo sobre o Araguaia coloco-o como
um capítulo da história brasileira, cito outros momentos da história
brasileira, faço comparações, cito outros personagens, mais antigos. Então eu
estava sentando diante de um livro, na minha avaliação, inédito.
Agora, do ponto de vista
jornalístico, se você me perguntar, com toda sinceridade eu diria o seguinte:
se as coisas tivessem ocorrido como deveriam ter ocorrido eu talvez não
precisasse ter escrito este livro.
Porque se o Estado brasileiro tivesse
cumprido sentença judicial de setembro de 2003, para abertura dos arquivos,
para explicar o que ocorreu lá, acho que meu livro não faria sentido. Se o
Ministério Público (MP) tivesse feito o seu papel investigativo desde que
surgiu, lá em 1988, como deveria, eu não precisaria publicar meu livro agora. O
MP recolheu dezenas de depoimentos no Araguaia em 2002. Por que só agora vêm
ações?
População esquecida
Que tipo de ação?
L.N. −Eu falo o seguinte, você tem uma população que sofreu no Araguaia, uma
população civil que ficou no meio da guerra, não vou entrar nem nessa discussão
entre militares e guerrilheiros, mas do ponto de vista da população, por que
até hoje essa população não foi olhada pelo MP?
Desde a redemocratização?
L.N. −Eu diria desde o início do anos 1990, quando tivemos uma compreensão
maior, as pessoas começaram a falar mais da região. Eu pergunto outra coisa. A
OAB, que é uma instituição de classe, mas teve um papel meio de organismo da
sociedade civil, no final dos anos 1990 ouviu milhares de camponeses no
Araguaia: onde estão os depoimentos? O que a OAB fez com esses depoimentos?
Essa coisa de livro não fazer sentido
eu acho que é uma visão um pouco torta que a gente tem no Brasil. Você vai
pegar qualquer episódio em outros países, tem dez livros sobre o episódio,
cinquenta, se for importante; a história vai sendo reescrita.
L.N. −Você me perguntou o que causava insatisfação nas narrativas que existem.
O livro não precisava trazer novidade, não tem absolutamente que revelar nada.
O livro por si só se justifica. Eu concordo com você. Aquela sua pergunta, por
que eu escrevi o livro, de certa forma foi um pouco disso. Meu trabalho é mais
jornalístico. Desse ponto de vista eu acho que sobre alguns pontos não
precisava realmente escrever. Agora, se você perguntar sobre a importância, eu
também acho que todo livro é importante. É aquilo que eu falei: a gente vai
esperar mais uns 15 anos para essa história do Araguaia ser bem contada.
***
FONTE: OBSERVATORIO DA IMPRENSA / [Transcrição de Lucas Campos]
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